Em 1941, Alfred Hitchcock lançou o seu terceiro filme americano, depois de Rebecca, a Mulher Inesquecível e Correspondente Estrangeiro: Mr. & Mrs. Smith, no Brasil Um Casal do Barulho.
O terceiro que dirigiu depois de se mudar para os Estados Unidos, contratado pelo todo-poderoso produtor David O. Selznick, mas o primeiro inteiramente passado lá, pois a ação dos dois anteriores acontecia na Europa.
O terceiro da fase americana, o primeiro inteiramente passado nos Estados Unidos – e a única comédia romântica de sua carreira.
O humor sempre esteve presente nos filmes de Hitchcock, mas como um elemento secundário. Mr. & Mrs. Smith é diferente: é uma screwball comedy, como se chamavam as comédias românticas amalucadas dos anos 30 e 40, tipo Cupido é Moleque Teimoso/The Awful Truth (1937), de Leo McCarey, e Levada da Breca/Bringing up Baby (1938), de Howard Hawks.
É voz corrente que Hitchcock topou fazer o filme porque foi um pedido insistente de sua amiga Carole Lombard, à época uma das grandes estrelas de Hollywood, uma das atrizes mais amadas pelo público americano, uma especialista em screwball comedies. Dela dizia o figurinista Travis Banton: “Você pode lançar um pedaço de pano em Carole Lombard, e fosse onde fosse que ele caísse, ela pareceria perfeita.” Linda, loura, olhos de magnífico azul, Carole Lombard deve seguramente ter impressionado o diretor inglês que logo em seguida teria como uma de suas marcas registradas uma atriz loura em cada um de seus filmes.
Consta também que Hitchcock não interferiu em nada na história e no roteiro, ambos de autoria de Norman Krasna, sob o argumento de que não estava familiarizado com os costumes americanos, e não entendia nada a respeito dos muito ricos de Manhattan, como são os personagens centrais da história.
Está no livro The Films of Alfred Hitchcock, de Robert A. Harris e Michael S. Lasky: “Mr. and Mrs. Smith é uma comédia com a qual Hitchcock não podia mesmo se associar, porque era claramente um terreno pouco familiar ao Mestre do Suspense. Ele aceitou dirigir o filme como um favor para a amiga chegada Carole Lombard, que insistiu para que ele o fizesse.”
Não era um filme que ele quisesse fazer – fez como um favor para a amiga. Não mexeu no roteiro, simplesmente dirigiu as cenas que estavam escritas ali. São duas boas desculpas para limpar a barra do realizador – porque o filme é um abacaxi azedo, uma porcaria, um absoluto horror.
É uma comédia absolutamente sem graça! É tudo forçado, bobo, pobre, rastaquera. Bocó.
Na minha opinião, é claro, e, como eu adoro repetir, a minha opinião vale no máximo uns três guaranis furados.
Mas os próprios autores do livro citado admitem, com todas as letras: “O filme é uma típica screwball comedy dos anos 40, mas não com o ritmo ágil de clássicos anteriores como Bringing up Baby e The Awful Truth. Partes dela simplesmente não funcionam.” Mas aí entra a babação, a veneração pelo ídolo: “Quando não funcionam, no entanto, é mais por culpa do roteiro de Norman Krasna do que pela direção de Hitchcock.” E o livro cita uma crítica do New York Times da época do lançamento do filme, que diz que por mais que o trabalho de câmara de Hitchcock seja excelente, não consegue esconder a pequenez do material, e o filme tem momentos de “dullness” – um adjetivo educado que significa monotonia e chatice mas também estupidez.
Mr. and Mrs. Smith é de uma chatice e de um estupide atrozes. Aguentei até o fim apenas por obrigação. Olhei quanto tempo faltava para terminar o abacaxi umas cinco vezes.
Uma mulherzinha chata a não mais poder
A trama é mais ou menos assim:
David e Ann Smith (os papéis de Robert Montgomery e Carole Lombard) se amam imensamente, mas gigantescamente. Estão casados há três anos; ele é um advogado estrondosamente bem sucedido, dono de um escritório que dá rios de dinheiro, em que ele é sócio de um velho amigo, Jeff Custer (o papel de Gene Raymond).
Os dois pombinhos se amam tanto, mas tanto, mas tanto, que às vezes simplesmente se trancam em seu quarto no imenso apartamento de Manhattan, e ficam lá trancados dias. As empregadas só podem entregar as refeições em bandejas – mas eles sequer devolvem as bandejas usadas. Quando o filme começa, o sr. e a sra. Smith estão trancafiados dentro do quarto já fazia três dias – e o quarto está uma absoluta bagunça.
É uma combinação deles: se por acaso surge alguma rusga entre os dois, eles ficam trancados no quarto até que tudo se resolva e eles fiquem em paz.
O recorde de trancafiação dentro do quarto – muito antes de John Lennon e Yoko Ono transformarem essa coisa de ficar na cama em um ato político – havia sido de oito dias.
Dessa vez que acontece quando a ação está começando, são três dias só. Aí eles se entendem, voltam às boas, e David consegue ir para o escritório.
No dia em que volta ao trabalho, recebe a visita de um advogado da cidade natal de Ann, na fronteira de Nevada com Idaho, o senhor Deever (Charles Halton). Deever dá uma longa explicação a respeito dos cartórios do local, que em síntese significa o seguinte: por questões geográficas e burocráticas e legais, os casamentos realizados entre os anos tais e tais naquela cidade fronteiriça, registrados naquele determinado lugar de registro civil, não são legalmente válidos. O que é o caso do sr. e da sra. Smith.
Seria necessário que eles se casassem novamente.
O tal Deever vê uma grande foto de Ann no escritório de David e conta que, quando criança, Ann era amicíssima de uma sobrinha dele, vivia frequentado a casa da irmã dele.
E, depois de sair do escritório de David, para dar o mesmo informe a outras pessoas de caso semelhante que ora residem em Nova York, Deever passa pela rua em que moram o sr. e a sra. Smith – e resolve dar uma passadinha lá para dar um alô para a jovem senhora que quando criança brincava com a sobrinha dele.
Quando chega lá, a mãe de Ann a está visitando – a sra. Krausheimer, que é o sobrenome de nascimento de Ann (o papel de Esther Dale). Conversa vai, conversa vem, ele conta a história do casamento não mais válido.
Ann – uma moça tão cintilantemente bela quanto chata, pentelha, que por qualquer pequeno motivo arma gigantescas tempestades – fica absolutamente certa de que o marido, quando chegar em casa, contará a história para ela e a pedirá de novo em casamento.
Mas David não fala nada sobre o assunto. Convida a mulher para irem jantar no mesmo lugar onde haviam ido no início do namoro, uma cantina italiana chamada Momma Lucy’s – o que para Ann é sinal de romantismo, de que ele aproveitará para pedir sua mão em casamento de novo. Mas, para absoluta frustração da mulher, ele não toca na questão licença de casamento.
Ann fica furiosa e o expulsa de casa.
Isso acontece quando o filme está ali pelos 25, 30 minutos. Depois que David é expulso de casa ainda há uma hora – longa, interminável de filme, em que o sr. Smith tenta convencer a sra. Smith a aceitá-lo de volta e se casar novamente com ele.
Argh!
Uma rara sequência de denúncia social
Há, na sequência em que o casal vai ao tal restaurante italiano, um momento de denúncia do abismo entre as classes sociais – algo bastante inusitado na filmografia de Hitchcock. Ao mesmo tempo em que há também uma demonstração de como toda a montagem da trama é frágil, ruim, mal ajambrada.
Ann fica deliciada quando David liga do escritório e a convida para voltarem ao Momma Lucy’s. Resolve colocar o mesmo vestido preto que havia usado quando, lá no inicinho do namoro, tinham estado naquele lugar. O vestido não cabe nela, porque, com o tempo, ela havia engordado um pouquinho – e por várias vezes a câmara mostra que o vestido sofreu um rasgo pela insistência de Ann em usá-lo.
Ao chegar ao Momma Lucy, levam diversos sustos. O lugar parece a eles, agora, muito pobre, mal localizado, sujo, com fregueses de aparência horrorosa. Momma Lucy se aposentou e não está mais lá, e o novo dono é um sujeito grosseiríssimo. Mas o sr. e a sra. Smith fazem um danado de um esforço para levar tudo numa boa, numa atmosfera de romantismo do início de namoro. E insistem em comer bem perto da rua, onde tinham ficado daquela outra vez.
E é aí que surge uma inesperadíssima denúncia da injustiça social: crianças pobres, maltrapilhas, famintas, ficam encarando o casal bem vestidíssimo com uma expressão de surpresa e de fome. David fala uma frase imbecil do tipo: – “O que será que houve? Nunca viram duas pessoas jantando?”
E aí é que está. Ao receber o convite para ir ao Momma Lucy’s, por telefone, Ann se derrete: – “Querido, nem sabia que você tinha guardado o nome daquele lugar! Não vamos lá desde que nos casamos!”
É dito e repetido que eles estão casados há três anos.
Como assim? Em apenas três anos, eles deixaram de ser pobres – porque o Momma Lucy’s é uma cantina estupidamente simples – e viraram podres de ricos daquele tanto?
Inverossímil, absolutamente sem sentido. Coisa de roteiro ruim, mal feito, mal pensado, mal construído, mal ajambrado.
Hitchcock fala pouquíssimo sobre o filme
Mas é Hitchcock, e então os críticos adoram.
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 para a porcaria: “Comédia doida de Lombard e Montgomery descobrindo que seu casamento não é válido. Um dos filmes menos típicos de Hitchcock, mas animado apesar disso. Escrito por Norman Krasna.”
O guia de Mick Martin e Marsha Porter dá 4 estrelas em 5 e carrega nos elogios: “Este filme trata da relação de ódio-amor-ódio entre Carole Lombard e Robert Montgomery, que interpretam um casal que descobre que seu casamento não é legal. O diálogo animado de Norman Krasna é famoso, e com justiça, e o filme inclui algumas das mais clássicas cenas cômicas jamais feitas. Dirigindo essa farsa agradável, em sua única comédia pura, está Alfred Hitchcock.”
Vixe Maria!
E o próprio gênio, o que diz?
“Esse filme nasceu de minha amizade com Carole Lombard”, ele disse a François Truffaut em uma das muitas conversas que tiveram e que resultou no fabuloso livro HitchcockTruffaut. “Nessa época ela estava casada com Clark Gable e me perguntou: ‘Você faria um filme comigo?’ Não sei por que aceitei. Segui mais ou menos o roteiro de Norman Krasna. Como não compreendia o tipo de personagens mostrados no filme, eu fotografava as cenas tais como estavam escritas.”
E é tudo o que Alfred Hitchcock tem a dizer sobre Mr. & Mrs. Smith.
Então tá.
Anotação em abril de 2019
Um Casal do Barulho/Mr. & Mrs. Smith
De Alfred Hitchcock, EUA, 1941.
Com Carole Lombard (Ann Smith, née Ann Krausheimer), Robert Montgomery (David Smith)
e Gene Raymond (Jeff Custer, o amigo e sócio), Jack Carson (Chuck Benson, o colega da sauna), Philip Merivale (Mr. Custer, o pai de Jeff), Lucile Watson (Mrs. Custer, a mãe de Jeff), William Tracy (Sammy), Charles Halton (Mr. Deever, o advogado), Esther Dale (Mrs. Krausheimer, a mãe de Ann), Emma Dunn (Martha),William Edmunds (o dono do Momma Lucy’s), Betty Compson (Gertie, a amiga de Chuck), Patricia Farr (Gloria, a amiga de Chuck), Pamela Blake (Lily)
Argumento e roteiro Norman Krasna
Fotografia Harry Stradling Sr.
Música Edward Ward
Montagem William Hamilton
Produção RKO Radio Pictures. DVD
P&B, 95 min (1h35)
1/2
Título na França: M. et Mme Smith. Em Portugal: O Sr. e a Sra. Smith.
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