Rever agora A Pantera Cor-de-Rosa de Blake Edwards, o primeirão, o original, quase meio século depois que o filme foi feito, traz diversas sensações. Uma delas: como é tudo tão bobo! Outra: como é tudo delicioso, saboroso, bem feito e estonteantemente engraçado.
Outra: como A Pantera Cor-de-Rosa, o filme original, e suas várias seqüências, e a série de desenhos animados criada a partir dela, fizeram tanta gente alegre, ao longo de cinco décadas!
Muito provavelmente a única pessoa que A Pantera Cor-de-Rosa fez sofrer foi Peter Sellers.
Peter Sellers (1925-1980) demorou muito para ter seu talento reconhecido. Filho de pai e mãe atores de teatro, estreou no show business quando tinha cinco anos de idade. Com aptidão para a música, aprendeu bem jovem a tocar piano, bateria e ukelele, e, durante a Segunda Guerra Mundial, participou da trupe das forças armadas britânicas que entretinha as tropas.
Ainda em 1955 teve um papel em uma comédia de sucesso, Quinteto de Morte, estrelada por Alec Guinness (e que seria refilmada pelos irmãos Coen em 2004 como Matadores de Velhinhas), mas só alcançaria fama internacional a partir de dois filmes americanos rodados em 1963: Dr. Fantástico/Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, em que interpreta três papéis diferentes, um falando com sotaque americano, outro com sotaque de alemão, outro em inglês inglês, e este A Pantera Cor-de-Rosa.
Por sorte, o papel de Clouseau foi para Sellers
Os estranhos caminhos da vida. O papel do Inspetor Clouseau – um policial atrapalhadão, trapalhão, bastante bobo, bastante ingênuo – tinha sido reservado para outro ator inglês, este já com carreira feita, Peter Ustinov. Mas, quando as filmagens estavam para começar, nos estúdios da Cinecittà, em Roma, Peter Ustinov não apareceu, e aí contrataram Peter Sellers.
Não era para o Inspetor Clouseau não era para ser o protagonista da história. O principal papel era o de Sir Charles Lytton, o charmoso milionário e playboy (embora já um tanto idoso para ser boy) interpretado por David Niven. David Niven (1910-1983) já era um ator absolutamente consagrado, com larga experiência em diversos gêneros – começara a carreira na primeira metade dos anos 1930, e em 1961 havia feito um dos papéis principais do drama de guerra de imenso sucesso Os Canhões de Navarone –, mas sua especialidade era mesmo interpretar charmosos milionários, o que fazia com os pés nas costas. Tinha o perfeito physique du rôle para isso; parecia mesmo um autêntico charmoso, elegante milionário inglês.
Mas o Inspetor Clouseau criado por Peter Sellers era uma figura tão fascinante, tão engraçada, tão rica, que roubou o filme. Roubou todas as cenas em que aparece, na verdade. E, apenas três meses depois do lançamento do filme, ainda em 1964, já surgia uma sequência, Um Tiro no Escuro/A Shot in the Dark.
O Inspetor Clouseau acabou eclipsando os três papéis desempenhados com brilhantismo por Peter Sellers em Dr. Fantástico – que, aliás, deram a ele uma indicação ao Oscar.
Os estranhos caminhos da vida. Peter Sellers teria uma oportunidade de ouro, naquela mesma época, 1963, 1964, para trabalhar com outro grande mestre, Billy Wilder – e a partir daí estabelecer-se com um ator de papéis importantes em filmes de diretores importantes. Ele foi escolhido por Wilder para o principal papel de Beije-me, Idiota. Um ataque cardíaco, no entanto, o afastou do início das filmagens. Foi substituído por um ator de pouca fama, Ray Walston; o filme – embora excelente – foi um fracasso comercial.
O grande sucesso de Clouseau foi motivo de imensa frustração para Sellers
Com um talento tão gigantesco quanto suas oscilações de humor, Peter Sellers criaria fama, na segunda metade dos anos 1960, de ator problemático.
E Blake Edwards tinha sempre um novo projeto com o Inspetor Clouseau para oferecer a ele. O público queria mais filmes de Peter Sellers como o Inspetor Clouseau, e então houve vários. Entre 1964 e 1993, foram feitos nove filmes com o Inspetor Clouseau, ou relativos ao personagem. Mesmo depois da morte de Peter Sellers – de ataque cardíaco, em 1980 –, foram feitos novos filmes com o Inspetor Clouseau, alguns deles aproveitando restos de filmes não usados na montagem final dos anteriores.
Isso sem falar, é claro, da retomada dos nomes A Pantera Cor-de-Rosa e Inspetor Clouseau nos filmes recentes com Steve Martin no papel principal. (Gosto bastante de Steve Martin, mas não me animei a ver as refilmagens. Deu preguiça.)
Em 2005, a BBC inglesa e a HBO americana uniram seus talentos e seu dinheiro para filmar A Vida e Morte de Peter Sellers, com o competentíssimo australiano Geoffrey Rush fazendo o papel do ator, e uma penca de gente boa nos papéis secundários – Charlize Theron, Emily Watson, Stanley Tucci, John Lithgow, Miriam Morgolyes, Stephen Fry.
A bela cinebiografia enfatiza muito o fato de que Peter Sellers desenvolveu uma relação de profundo ódio contra o Inspetor Clouseau, e daí contra Blake Edwards – mais ou menos como a relação de Arthur Conan Doyle com sua criatura Sherlock Holmes. Conan Doyle chegou a matar seu herói, mas a reação dos leitores foi tão acachapante que ele o escritor foi obrigado a trazê-lo de volta.
Como Conan Doyle em relação às histórias de Sherlock, Sellers queria mostrar que tinha muito mais talento do que o necessário para interpretar o detetive trapalhão e impagável.
Seu grande sucesso foi a causa de imensa frustração.
Duas atrizes deslumbrantes, ótimas piadas, seqüências hilariantes, bela música
Talvez eu tenha me estendido muito ao falar de Peter Sellers e sua relação com o Inspetor Clouseau. Mas o fato é que o mais marcante do filme, o que fez com que Blake Edwards criasse diversas sequências, foi mesmo o Clouseau que Sellers incorporou, mesmo contra sua vontade.
E olha que não faltavam outros atrativos ao filme.
Tem Capucine no papel de Simone, a sra. Clouseau – e, meu Deus, como é linda Capucine.
Tem Claudia Cardinale no papel da Princesa Dahla, filha do rei de uma nação qualquer não identificada, que ganha do pai, quando criança, um dos diamantes mais graúdos e belos do mundo, um diamantão cor-de-rosa que tinha uma ligeira, pequena falha, onde se podiam ver os traços de uma pantera – daí o nome dado à jóia, a Pantera Cor-de-Rosa.
Claudia já era uma grande estrela, em 1964, quando o filme foi lançado. Já havia feito filmes com Luchino Visconti (um minúsculo papel em Rocco e Seus Irmãos, o principal papel feminino em O Leopardo), Federico Fellini (Oito e Meio), Mauro Bolognini (O Belo Antônio, Caminho Amargo), Valerio Zurlini (A Moça com a Valise).
A Pantera Cor-de-Rosa foi sua primeira participação em uma produção americana. Segundo o IMDb, não é dela a voz que ouvimos: como seu inglês não foi considerado bom o suficiente, ela foi dublada por uma garota de 20 anos chamada Gale Garnett.
A beleza de Claudia Cardinale em A Pantera é um absurdo. Um atentado contra as leis da natureza. Um acinte.
O bonitão (e fracote como ator) Robert Wagner, cujo papel mais invejável na vida foi o de sr. Natalie Wood, faz o sobrinho de Sir Charles Lytton.
Um bando de gente bonita, rica, que vive em festas chiques na Europa – há cenas em Paris, Roma e, sobretudo, em Cortina D’Ampezzo. Figurinos assinados por Yves Saint-Laurent.
Diálogos engraçados, gags fenomenalmente hilariantes.
A seqüência, quase ao final, dos diversos carros passando a toda por uma pequena pracinha italiana, e passando de novo, e passando de novo, para a total surpresa de um senhorzinho italiano que acabava de sair de uma trattoria, é antológica. Um brilho – talento puro.
Uma trilha caprichadíssima de Henry Mancini, eterno parceiro de Blake Edwards tanto em suas comédias quanto em seus dramas – com, de quebra, uma canção gostosa, “It had better be tonight”, com letra do grande Johnny Mercer, apresentada em italiano como “Meglio stasera” numa festa por uma cantora de derrière avantajada, Fran Jeffries.
Um desenho animado genial nos créditos iniciais – tão bem feito, tão gostoso, que deu início a uma série de cartoons com a Pantera Cor-de-Rosa.
A trama, em si, que envolve um ladrão de jóias à la Ladrão de Casaca/To Catch a Thief, de Alfred Hitchcock, e o sequestro do cãozinho da Princesa Dahla, não chega lá a ser essas coisas. Mas, com tudo isso que listei acima, quem precisava de uma boa trama?
A menção a Ladrão de Casaca não é à toa. Os roteiristas – o próprio Blake Edwards e Maurice Richlin – beberam de canudinho na história contada pelo mestre Hitchcock com Cary Grant no papel que aqui é de David Niven e Grace Kelly fazendo as vezes de Claudia Cardinale. Há o ladrão famoso, elegante, que só rouba belas jóias sem fazer mal a uma mosca; há a festa de gente milionária vestida com fantasias; e há até os fogos de artifício do filme de 1955.
“Deliciosa comédia que introduziu o desastrado Inspetor Clouseau”
O CineBooks’ Motion Picture Guide deu 3.5 estrelas em 5. “Este foi o primeiro da duradoura série. Muita gente não se lembra é de que a ‘Pantera Cor-de-Rosa’ do título do filme não se refere a Peter Sellers, mas ao nome de uma jóia lendária. Quando a série de desenhos animados baseada no filme apresentou uma pantera como o personagem título, no entanto – e o tema de Henry Mancini grudou no ouvido do público –, Sellers e o título se confundiram na mente dos espectadores. Os filmes seguintes da série mantiveram a mistura e usaram sempre o tratamento de cartoon nos créditos.”
E depois:
“Embora ele tivesse menos tempo na tela do que a maior parte dos outros atores principais, Peter Sellers roubou o filme, e os filmes da série que viriam depois provaram seu poder. Fantástica fotografia, e cenários, e imensas gargalhadas, e muita diversão. (…) Não é fácil sustentar uma comédia de ação rápida durante 113 minutos, mas A Pantera Cor-de-Rosa consegue muito bem. O filme foi um sucesso em todos os lugares em que foi mostrado. As sequências incluem Um Tiro no Escuro (1964), Inspetor Clouseau (1968, com Alan Arkin no papel central), A Volta da Pantera Cor-de-Rosa (1975), A Vingança da Pantera Cor-de-Rosa (1975), A Nova Transa da Pantera Cor-de-Rosa (1976).”
Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4: “Deliciosa comédia que introduziu o desastrado Inspetor Clouseu ao mundo (assim como o personagem do desenho animado que aparece nos créditos iniciais), tão obcecado por apanhar o famoso ladrão de jóias ‘O Fantasma’ que não percebe sequer que seu alvo é também o amante de sua mulher! Repleto de grandes palhaçadas e uma sequência especialmente inteligente de caçada; belas paisagens da Europa, memorável trilha de Henry Mancini. Foi seguido imediatamente por Um Tiro no Escuro.”
É isso. De fato, uma delícia de comédia. Depois de tanto tempo passado, e depois que se vê A Vida e Morte de Peter Sellers, dá pena do extraordinário ator – tanto talento, e tanta infelicidade.
Assim como dá uma dozinha do Inspetor Clouseau, tadinho. A tal da Simone Clouseau feita por Capucine não é das mulheres de melhor caráter que já apareceram no cinema – muito antes ao contrário.
Anotação em dezembro de 2012
A Pantera Cor-de-Rosa/The Pink Panther
De Blake Edwards, EUA, 1964
Com David Niven (Sir Charles Lytton), Peter Sellers (Inspetor Jacques Clouseau), Robert Wagner (George Lytton), Capucine (Simone Clouseau), Claudia Cardinale (Princess Dala)
e Brenda de Banzie (Angela Dunning), Fran Jeffries (“primo” grego), Colin Gordon (Tucker), John Le Mesurier (advogado de defesa), James Lanphier (Saloud), Guy Thomajan (Artoff)
Roteiro Blake Edwards e Maurice Richlin
Fotografia Philip H. Lathrop
Música Henry Mancini
Montagem Ralph E. Winters, Marshall M. Borden e David Zinnemann
Figurinos Yves Saint-Laurent
Cartoon por Corny Cole (principal desenhista), produzido por David H. DePatie e Friz Freleng
Cor, 113 min
Produção Mirisch G-E Productions. DVD MGM.
R, ***
Tudo nesse filme é super legal. Seu texto ficou fantástico, você não esqueceu de comentar NADA do filme!!! Uma delícia para quem curte o melhor do cinema.
Ainda bem que você escapou dos “remakes”. Certa vez, tive um encontro com um deles durante cinco minutos, e não ficava tão horrorizado desde a minha tentativa de ler uma obra Paulo Coelho… Grande abraço!
A garota Gale Garnett que dublou Cardinale é uma das belas vozes femininas da canção Folk dos anos 60. E teve um sucesso imenso em 1964 com a canção We’ll Sing In The Sunshine, vencedora do Grammy no ano seguinte. Abraço.
Caro Rodrigo,
Muito obrigado pela mensagem e pelas informações. Rapaz, gosto especialmente de música folk, mas nunca tinha ouvido falar na Gale Garnett nem dessa canção “We’ll Sing In The Sunshine”.
Vivendo e aprendendo! Ou, como dizem os cinéfilos, wimwenders e aprendenders!
Um abraço.
Sérgio