Um Inverno em Nova York / The Kindness of Strangers

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível no Amazon Prime Video em 11/2024.)

O filme que a dinamarquesa Lone Scherfig escreveu e dirigiu em 2019, e no Brasil ganhou o título de Um Inverno em Nova York, fala de superlativos. A miséria, os miseráveis, os despossuídos de tudo, exatamente na capital financeira do planeta, a cidade mais rica do país mais rico que já houve na História. A violência brutal do homem contra quem é mais indefeso – os filhos e a mulher –, isso que é uma das mais horrendas invenções da humanidade.

E do superlativo do lado oposto, o lado positivo – a solidariedade. Essa dádiva, essa bênção que é capacidade de os seres humanos ajudarem os outros quando eles mais precisam, quando estão no fundo do fundo do fundo do poço. Essa maravilha que é The Kindness of Strangers – o título original da obra. A gentileza de estranhos.

Diacho: por que raios os distribuidores brasileiros fugiram do título original, tão forte, tão impactante, e escolheram este Um Inverno em Nova York? Além de não ter a força do original, de não expressar o tema, que é a gentileza de estranhos, Um Inverno em Nova York é um título falso, mentiroso, pois a ação não se passa apenas durante um inverno. Parte dela acontece na primavera, ou no verão, conforme mostra claramente uma sequência.

Há que ter paciência. Os distribuidores brasileiros têm uma longa, longa tradição de criar títulos absurdos, ridículos, babacas, tipo Noivo Nervoso, Noiva Neurótica para Annie Hall, Os Brutos Também Amam para Shane, Assim Caminha a Humanidade para Giant, Depois Daquele Beijo para Blow-up.

Mas isso é um detalhe.

A diretora, autora e roteirista Lone Scherfig fez, em The Kindness of Strangers, uma exposição do que nossa raça conseguiu fazer de pior – a miséria de tantos, a violência, o abuso. Mas seu filme é, sobretudo, uma ode ao que a humanidade tem de melhor: a amizade, a solidariedade. A capacidade de as pessoas terem gentileza com os estranhos.

Uma mulher e os dois filhos na absoluta miséria

A personagem mais importante da trama é Clara – o papel dessa atriz (e também roteirista) interessante, simpática, de rosto marcante mas não propriamente belo, filha, neta e mulher de diretores e roteiristas, Zoe Kazan.

Clara, mulher aí de uns 35 anos, mãe de dois filhos, um de uns 13 anos, o outro de uns 7 ou 8, resolve fugir de sua casa em Buffalo, e do marido, Richard, um policial brutal, que espancava os filhos e obrigava Anthony, o mais velho, a bater em Jude, o mais novo.

Richard é o papel de Esben Smed. Anthony, o de Jack Fulton, e Jude, o de Finlay Wojtak-Hissong. Os dois atores mirins são impressionantes.

O filme abre com tomadas de Clara acordando bem cedinho, madrugada ainda, chamando os dois meninos, colocando-os no carro e dirigindo até Manhattan – onde os dois garotos nunca haviam estado. Ela vai com a cara e a coragem, e nada mais que isso. Não conhece ninguém na metrópole gigantesca, não tem dinheiro, o marido controla e guarda seu cartão de crédito.

Na ilha que é o umbigo do mundo, o coração do capitalismo, vão comer o pão que o diabo amassou os dois garotos e aquela pobre mulher sem um parente, um amigo no mundo. Clara se verá obrigada a furtar comida e roupa; dormem no carro – mas lá pelas tantas o carro desaparece, provavelmente rebocado por causa das constantes multas. Com o sumiço do carro, as três criaturas perdem não apenas o teto sob o qual dormir, mas também o restinho de tranquilidade que tinham: sendo policial, tendo – ao contrário da mulher – muitas amizades, Anthony certamente ficaria sabendo que os fugitivos estavam em Nova York, e poderia ir atrás deles.

A descida de Clara ao inferno mais pavoroso da absoluta miséria na cidade mais rica do mundo é de deixar um frade de pedra emocionado, triste, amargurado. Eu, cada vez menos frade de pedra, sofri com o sofrimento daquela mulher como se ela fosse uma amiga próxima.

Mas a vida não é feita apenas de miséria, crueldade e sofrimento, e então, pouco a pouco, Clara começa a receber a gentileza de estranhos.

Além da pobre Clara, há cinco personagens importantes

O drama de Clara e seus filhos já seria suficiente para um filme. Mas a autora Lone Scherfig queria mais, muito mais. Clara e os meninos são apenas alguns dos personagens deste The Kindness of Strangers. O filme é um mosaico, uma trama com diversos personagens, à la Short Cuts – aquilo que os críticos chamam de estrutura multiplot. Diversos personagens cujos caminhos acabam se cruzando.

Além de Clara, são cinco os personagens mais importantes na trama tecida por Lone Scherfig. E há um detalhinho interessante: de maneira bem pouco usual, nos créditos iniciais do filme, vemos, junto do nome dos atores, também o nome do personagem que cada um interpreta.

É de fato algo pouquíssimo usado nas últimas décadas todas. Bem lá atrás, na época de ouro de Hollywood, algumas poucas vezes os créditos iniciais traziam imagens dos atores, com seus nomes e os de seus personagens. Por coincidência, vimos, poucos dias antes deste The Kindness of Strangers, uma dessas raridades, Nas Garras da Lei/Special Agent, de 1935, com Bette Davis e George Brent.

Eis algumas informações básicas sobre as pessoas que terão seus destinos cruzados com os de Clara e seus filhos, seguindo a ordem em que aparecem nos créditos iniciais:

* Alice (o papel de Andrea Riseborough) é uma mulher na faixa dos 30 e tantos que dedica todas as horas da vida a ajudar os outros. Trabalha como enfermeira no pronto-socorro de um hospital em Manhattan – e, diabo, o trabalho de pronto atendimento em hospital de uma metrópole é um dos mais estafantes, estressantes que existem. Só poderia se comparar, me ocorreu agora, no momento em que escrevo, ao dos motoristas e para-médicos de ambulância, como o de Frank Pierce (Nicholas Cage) em Vivendo no Limite/Bringing Out the Dead (1999) de Martin Scorcese.

Mas, da mesma forma com que mostrar uma história dramática ao extremo parece pouco para a autora e diretora Lone Scherfig, o trabalho insano no pronto-socorro não basta para Alice – e então a moça faz um trabalho social intenso em uma igreja, atendendo a um grupo de ajuda a pessoas solitárias, sofredoras, que têm dificuldade de se perdoar por alguma falta que cometeram.

* Marc (Tahar Rahim) é um homem também na faixa dos 30 e tantos anos que acaba de sair da prisão, em liberdade condicional, após cumprir parte da pena. Não parece um criminoso; ao contrário, é uma pessoa gentil, educada. O roteiro adia – propositadamente, é claro – o momento de revelar para o espectador o motivo de Marc ter sido preso e condenado. Não havia cometido crime algum – ao contrário, assumira como sendo dele crimes financeiros cometidos por um irmão.

* Jeff (Caleb Landry Jones), de uns 30 anos de idade mas aparência e jeito de garotão mais novo, nos é apresentado como um descalabro, um sujeito absolutamente sem jeito para nada, que não consegue executar nenhum tipo de serviço, e está sempre sendo demitido. Sempre sem trabalho, é expulso do quarto de pensão que ocupava.

* John Peter (Jay Baruchel) é um jovem advogado que, bem ao contrário de Jeff, é competente no que faz, apesar de talvez não aparentar isso e se mostrar um tanto pouco seguro de si. Foi ele que conseguiu apresentar os recursos que permitiram que Marc saísse da prisão.

* E, finalmente, temos Timofey – o papel de um Bill Nighy (à direita na foto abaixo)  quase em uma participação especial, tipo aceitando o papel pequeno por respeito à diretora Lone Scherfig). Timofey é uma figura. Herdeiro de russos aristocráticos e ricos fugidos da Revolução Comunista de 1917, tem um restaurante num lugar amplo mas um tanto mal localizado, sombrio, esquisito.

Acasos, coincidências, situações improváveis – como na vida

Para promover o encontro dos destinos dessas pessoas, há bastante daquele conjunto de coincidências, de acasos, de situações aparentemente improváveis, até impossíveis, de que é feita a vida real e tramas de alguns belos filmes. Jacques Demy, Claude Lelouch, Krzysztof Kieslowski são mestres nesse tipo de trama.

Assim, por exemplo, a cadeira de escritório que Jeff, num acesso de raiva, ao ser demitido mais uma vez, lança pela janela, e cai lá embaixo no meio da rua, é encontrada por Jude, o caçula de Clara – e o garoto diz que gostaria de ficar com ela, para quando eles voltassem a ter uma casa. Bem mais tarde, a mesma cadeira vai reaparecer outra vez, no apartamento no último andar do prédio do restaurante de Timofey, então ocupado por Marc, que havia sido contratado como gerente do lugar.

O restaurante ficava perto de onde Clara havia estacionado seu carro à noite, para ela e os meninos dormirem – isso nos tempos em que ainda tinham o carro, antes que ele fosse levado embora. O mesmo restaurante em que Clara às vezes passava para tentar roubar alguma comida para dar aos filhos – e Marc observava a mulher, mas não fazia nada contra ela. Por pena, dó, piedade, gentileza.

(Na foto abaixo, Caleb Landry Jones e Andrea Riseborough.)

Um filme feito por gente de diversos, diversos países

Embora a ação se passe quase totalmente na cidade de Nova York (há umas poucas sequências em Buffalo, a cidade de onde Clara foge com os filhos), as filmagens – iniciadas em março de 2018 – foram em sua maior parte Toronto e Copenhagen, mas há algumas sequências feitas, sim, em Nova York. Nenhum espectador, creio eu, seria capaz de distinguir umas das outras.

Os créditos finais dizem, literalmente, que o filme é uma co-produção Dinamarca-Canadá, e também, em segundo lugar, de Suécia-França-Alemanha. São nada menos que 20 empresas produtoras citadas nos créditos. Ou seja: é um filme absolutamente multinacional, global.

Basta ver a nacionalidade dos atores. Zoe Kazan (na foto abaixo) é norte-americana de Los Angeles, a cidade em que seu avó Elia fez alguns dos melhores filmes da História. Andrea Riseborough, que faz Alice, a abnegada enfermeira e ativista social, é inglesa. Tahar Rahim, que faz Marc, nasceu na França, descendente de argelinos. Jay Baruchel, que interpreta o advogado John Peter, é canadense de Ottawa. Bill Nighy, que faz o descendente de russos Timofey, é inglês do Surrey.

A autora e diretora Lone Scherfig, dinamarquesa de Copenhagen, tem carreira internacional. Muitos dos 24 títulos de sua filmografia como diretora e 18 como roteirista são produções dinamarquesas, é claro, como a simpática comédia romântica Italiano para Principiantes (2000). Vários são co-produções Dinamarca e outros países europeus, como a comédia dramática Meu Irmão Quer Se Matar (2002). Um Dia (2011), baseado no best-seller de David Nichols, com Anne Hathaway e Jim Sturgess, é uma co-produção EUA-Reino Unido. E Educação (2009), aquela absoluta maravilha com Carey Mulligan, é tão absolutamente britânico quanto a família real de Elizabeth II e Charles III.

Lone Scherfig coleciona 32 prêmios internacionais e 29 indicações, inclusive ao Bafta de melhor filme para Educação e ao Urso de Ouro do Festival de Berlim para Italiano para Principiantes.

O filme não foi bem recebido pela crítica

Este The Kindness of Strangers foi admitido para a mostra competitiva do Festival de Berlim – mas não foi premiado.

A verdade é que, diferentemente de outros da autora e diretora, não foi muito bem recebido pela crítica – embora a avaliação do público seja bem mais positiva. No IMDb, tem a nota 6,5 em 10, média de mais de 5 mil avaliações de usuários – o que não chega a ser um mau resultado. No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, o Popcornmeter, o índice dos leitores do site, mostra aprovação de 85% – mas o Tomatometer, o índice dos críticos, é de apenas 29%.

O chamado consenso da crítica do Rotten Tomatoes é arrasador: “Um conjunto de pessoas talentosas não recebe nenhum favor de The Kindness of Strangers, que busca significado e vem vazio”.

Acho essa avaliação absurda, absurdamente desproporcional. O filme não busca significado – ele parte de um significado absolutamente claro já no próprio título. É sem dúvida alguma uma ode à solidariedade, essa característica que impede a gente de aceitar como legítima a idéia de que a raça humana é uma invenção que não deu certo.

Mas também não chega a ser, na minha opinião, um grande filme. E o problema não é de responsabilidade da equipe técnica – o filme é muito bem realizado em todos os quesitos como fotografia, montagem, música, direção de arte –, nem do elenco, que está todo muito bem. O problema é de fundo. Não me parece que os personagens tenham sido muito bem construídos pela autora. Em muitos momentos, são pouco críveis. Seus gestos, suas ações parecem simplesmente pouco reais, pouco verossímeis.

Eu, particularmente, me senti incomodado por essa sensação de inverossimilhança, enquanto via o filme. Acontece que o que ele quer dizer, a crença nesse valor maravilhoso que é a solidariedade entre as pessoas, é tão belo, e tão forte, que é impossível não gostar do filme.

         Anotação em novembro de 2024

Um Inverno em Nova York/The Kindness of Strangers

De Lone Scherfig, Dinamarca-Canadá, 2019.

Com Zoe Kazan (Clara),

Andrea Riseborough (Alice, a enfermeira e ativista social),

Tahar Rahim (Marc, o ex-presidiário), Caleb Landry Jones (Jeff, o rapaz atrapalhado), Bill Nighy (Timofey, o herdeiro da família russa), Jay Baruchel (John Peter, o advogado), Jack Fulton (Anthony, o filho mais velho de Clara), Finlay Wojtak-Hissong (Jude, o filho caçula de Clara), Esben Smed (Richard, o marido de Clara), Nicolaj Kopernikus (Sergei), Kola Krauze (Alexander), David Dencik (Lars), JoAnn Nordstrom (Ellen), Scott Anderson (Lloyd), Catherine Fitch (Donna), Lisa Codrington (Bonnie), Chris Baker (Cameron)

Argumento e roteiro Lone Scherfig

Fotografia Sebastian Blenkov

Música Andrew Lockington

Montagem Cam McLauchlin

Casting Deirdre Bowen

Desenho de produção Carol Spier

Figurinos Louize Nissen

Produção Malene Blenkov, Sandra Cunningham, HanWay Films, Ingenious Media, Apollo Media, Entertainment One,

Creative Alliance e outras.

Cor, 152 min (2h32)

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Título em Portugal: “Histórias Que Fazem o Coração Crescer”.

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