Nota:
Parece que os irmãos Coen, que fazem filmes de todos os gêneros, gostaram mesmo desse negócio de western. Depois de refilmarem Bravura Indômita/True Grit, que Henry Hathaway fez com John Wayne em 1969, resolveram fazer não um, mas seis westerns, de uma vez só.
E, em vez de contar uma história séria, pesada, como True Grit, fizeram seis westerns à moda deles, com aquele humor escrachado, inteligente, irônico, corrosivo, às vezes abertamente negro.
A Balada de Buster Scruggs é isso: seis pequenos westerns. Seis curta-metragens, reunidos em um longa – aliás, o longa mais longo da fantástica carreira dos irmãos Joel e Ethan Coen, iniciada em 1984 com Gosto de Sangue/Blood Simple: são 133 minutos. Mas, como é tudo maravilhosamente bem realizado, e há vários momentos engraçadíssimos, são 133 minutos que passam depressa demais.
Até porque 133 divididos por 6 dá uma média de 22 minutos para casa um dos episódios.
O IMDb traz um tópico fascinante na página de trívia sobre A Balada de Buster Scruggs. Conta que, quando se anunciou que os irmãos Coen iriam fazer vários episódios, e o filme seria lançado na TV, muita gente acreditou que seria uma minissérie. Mais tarde, especulou-se que os episódios foram remontados e reorganizados para virar um filme de esquetes, de segmentos – um anthology movie, como se diz em inglês. Essas especulações – diz o IMDb – foram negadas pelos irmãos. Eles garantiram que o filme que chegou às telas e foi também distribuído no mundo inteiro pela Netflix seguiu fielmente o roteiro escrito por eles.
Aqui no meu cantinho, acho que Joel e Ethan Coen, espertos como são, marqueteiros de si mesmos competentes – quase tanto quanto Alfred Hitchcock e Federico Fellini, os melhores marqueteiros de si mesmos da História do cinema –, devem ter se divertido muito com todas essas especulações, essas histórias que rondaram a produção da Balada. Talvez até mesmo – quem sabe, né? – incentivado um pouco os boatos.
Aqui vão sinopses dos seis segmentos
O quarto episódio, “All Gold Canyon”, é baseado em uma história de Jack London, o incensado autor de Caninos Brancos e O Lobo do Mar, entre outros grandes títulos. O quinto, “The Gal Who Got Rattled”, é inspiradoem uma história de um escritor muitíssimo menos famoso, Stewart Edward White.
Os outros quatro episódios são criações originais da imaginação fértil e maluca de Joel e Ethan Coen.
O que eles fizeram para costurar essas seis histórias absolutamente diferentes entre si foi fantasiar que elas pertencem a um único livro, que aparece no início do primeiro episódio, e no início de cada um dos outros cinco, chamado Buster Scruggs & Other Tales of the American Frontier, outros contos da fronteira americana. O livro, é claro, é uma ficção, uma criação dos Coen – mas o esquema de aparecer na tela a capa de um livro, e as páginas passarem, e a câmara focalizar o início de um capítulo, foi usado em diversos filmes dos anos 1930 até os 1960.
É um bela sacada – uma das muitas belas sacadas dos Coen no filme.
Aqui vão os nomes, sinopses e elenco dos seis episódios:
1 – “The Ballad of Buster Scruggs”
Com Tim Blake Nelson (Buster Scruggs), Willie Watson (O Garoto), Clancy Brown (Çurly Joe), Danny McCarthy (o irmão de Curly Joe), David Krumholtz (o francês), E.E. Bell (o pianista)
Buster Scruggs, o herói que dá nome ao filme, e é interpretado – maravilhosamente, engraçadíssimamente – por Tim Blake Nelson, um dos atores que estão sempre nos filmes dos Coen, uma figuraça. É um pistoleiro que se veste todo de branco e passeia pelos espaços infinitos do Velho Oeste cavalgando o seu cavalo Dan e cantando.
Sim, um pistoleiro que canta – e fala numa linguagem empoladíssima, digna de advogado chato em discurso entusiasmado diante de um júri. É danado de bom no gatilho, mas…
Uma das canções que aparecem neste episódio, “When a Cowboy Trades His Spurs for Wings”, quando um caubói troca suas esporas por asas, escrita David Rawlings e Gillian Welch, figuras importantes da música folk, teve indicação ao Oscar de melhor canção original.
O episódio é uma absoluta delícia.
2 – “Near Algodones”, perto de Algodones
Com James Franco (caubói), Stephen Root (o caixa do banco)
Um caubói – o papel de james Franco – se vê diante de um banco isolado no meio do nada – e resolve assaltá-lo. O velhinho que está no caixa é bem mais esperto do que ele poderia esperar.
Esse segmento é tremendamente engraçado, delicioso.
3 – “Meal Ticket”, tíquete para a refeição
Com Liam Neeson (o empresário). Harry Melling (o artista)
Aqui os irmãos Coen atacam de humor negro. Na minha opinião, drama negro, sem humor algum. Um empresário do showbusiness vagueia pelas cidadezinhas do Velho Oeste apresentando sua atração artística: um homem sem pernas e sem braços que recita, com uma voz sensacional, trechos de Shakespeare, do Discurso de Gettysburg de Abraham Lincoln, do Gênesis, de Percy Shelley.
O empresário é interpretado por um Liam Neeson barbado, cabeludo, sempre com um chapéu – é difícil reconhecê-lo. E o ator que faz o artista, o orador, e dá um show de interpretação, é Harry Melling (na foto acima), o Dudley Dursley dos filmes da franquia Harry Potter.
É um episódio triste, apavorantemente lúgubre, pesado, duro. Os Coen são geniais, mas são doidos de pedra.
4 – “All Gold Canyon”, canyon todo de ouro
Com Tom Waits (o velho minerador), Sam Dillon (o bandido)
Neste episódio, em especial, brilham a trilha sonora de Carter Burwell, o compositor de 10 em cada 10 filmes dos Coen, e a fotografia do francês Bruno Delbonell. A ação se passa em um vale que parece um pedaço do paraíso, um lugar belíssimo, cortado por um riacho lindo de águas claríssimas. A câmara focaliza em majestoso veado, uma bela coruja, um pequeno cardume de peixinhos, enquanto ouvimos uma melodia suave, linda, campestre, pastoral.
É o paraíso intocado, perfeito – até que chega um homem com seu cavalo, e então os peixinhos somem, o veado se manda, a coruja desaparece.
O homem – interpretado por Tom Waits, o compositor e cantor, ator nas horas vagas – é um velho mineiro, que começa a cavoucar a terra, em diferentes pontos, atrás de ouro.
5 – “The Gal Who Got Rattled”, a garota que foi chacoalhada
Com Zoe Kazan (Alice Longabaugh), Bill Heck (Billy Knapp), Grainger Hines (Mr. Arthur), Jefferson Mays (Gilbert Longabaugh), Prudence Wright Holmes (a dona da pensão), Eric Petersen (pensionista)
Zoe Kazan, com aqueles olhões claros dela, faz a garota do título do episódio, the gal who got rattled, a garota que foi chacoalhada, irritada, atrapalhada, sacudida, agitada – e Zoe Kazan, a neta do grande Elia, se demonstra uma comediante extraordinária.
Neste episódio, quem brilha especialmente, além de Zoe Kazan, é Ellen Chenoweth, a diretora de casting do filme. O episódio começa durante uma refeição em uma pensão numa cidade do Meio Oeste, de onde está para partir uma caravana de pioneiros rumo ao Far West, o Oeste bem longínquo, o Oregon. As caras das oito ou dez pessoas que estão ali na refeição da pensão são absolutamente fellinianas. O velho mestre de Rimini seguramente aplaudiria de pé como na ópera o trabalho que Ellen Chenoweth teve para encontrar aqueles figuras exóticas, estranhas, que mais parecem ter saído da imaginação de um desenhista de quadrinhos enlouquecido.
Entre os comensais de caras esquisitíssimas estão Gilbert Longabaugh e sua irmã Alice – os papéis de Jefferson Mays e Zoe Kazan.
Assim que a caravana parte rumo aos perigos do Oeste Distante, Gilbert morre. A jovem Alice se vê sozinha no mundo – mas terá a ajuda dos dois homens que dirigem a caravana, Mr. Arthur e Mr. Knapp.
6 – “The Mortal Remains”, os restos mortais
Com Jonjo O’Neill (o inglês), Brendan Gleeson (o irlandês), Saul Rubinek (o francês), Tyne Daly (a dama), Chelcie Ross (o caçador de peles)
Praticamente toda a ação do sexto segmento se passa dentro de uma diligência, esse elemento básico do western, desde muito antes de o mestre John Ford fazer um dos maiores clássicos do gênero, No Tempo das Diligências/Stagecoach (1939).
É um episódio fantasticamente bem realizado – e estranho, esquisito, inusitado, inquietante, desconcertante, intrigante.
Viajam ali, de um lado, um jogador de cartas francês, janotinha. uma dama chique, elegante, e um caçador de peles bem maltrapilho, e, do outro lado, diante daqueles três, um inglês e um irlandês. O inglês e o irlandês formam uma dupla, um par – vão se apresentar aos demais como caçadores de recompensas, e estão levando, naquele momento, na parte de cima da diligência, os restos mortais de um sujeito que era procurado pelas autoridades.
Fora os dois que trabalham juntos, todos os passageiros desconheciam os demais. Estão juntos naquele espaço exíguo por uma dessas coincidências da vida.
Conversam – todos falam um tanto de si mesmos, e emitem opiniões sobre todos os assuntos. Todos usam um linguajar empolado – exatamente como o Buster Scruggs do primeiro episódio, exatamente como boa parte dos personagens de todos os episódios. É uma das marcas do filme: os discursos dos personagens já são engraçados só pela empolação, pelo uso de palavras não comuns nas conversações do dia-a-dia.
O destino dos cinco passageiros é um forte do exército – mas será mesmo? Quando chegam ao destino, não vemos um forte – vemos o portal de algo que parece ser uma mansão. Mary acha que não, que não há nada de realismo fantástico ali, mas, para mim, aqueles passageiros desembarcam é no céu – ou no inferno, ou no purgatório, mas, de qualquer forma, do outro lado. No além.
“Um dos filmes mais negros dos irmãos Coen”
O grande site AllMovie deu ao filme 4 estrelas em 5, mas, até o final de janeiro de 2019, ainda não havia feito uma crítica. A sinopse diz o seguinte: “Seis diferentes histórias de humor e miséria são contadas neste western de episódios dos Irmãos Coen. Cada capítulo retrata o Oeste Selvagem através das lentes de seis diferentes personagens, incluindo o cantor e pistoleiro Buster Scruggs (Tim Blake Nelson), um aspirante a ladrão de banco (James Franco), um empresário viajante (Liam Neeson), um garimpeiro de ouro (Tom Waits), uma mulher trágica (Zoe Kazan) e uma dama fantasmagórica (Tyne Daly).”
No New York Times, o crítico A. O. Scott começou sua crítica assim:
The Ballad of Buster Scruggs é um dos filmes mais negros de Joel e Ethan Coen, e é também um dos mais tolos. Ele se desvia do pateta para o sinistro tão habilmente e tantas vezes que você não sabe o que é o quê. Este é um paradoxo familiar (e em geral não bem-vindo) para os fãs dos Coens. Desde Blood Simple, os irmãos tendem a tratar excentricidade e fatalismo como lados de uma mesma moeda. As piadas que o universo cria para as desafortunadas criaturas humanas podem ser cruéis, mas também são engraçadas, e os Coens são brincalhões hábeis e espertos.”
Já Glenn Kenny, escrevendo no site RogerEbert.com, define o filme como maravilhoso e perturbador. Ele termina assim a longa análise de A Balada de Buster Scruggs:
“Seus prazeres – a sucessão interminável de tomadas perfeitas em um cenário notável, a música deslumbrante de Carter Burwell que ondula como a própria paisagem – são reais, e reconhecidos como tal, mas há algo mais real por baixo de tudo. As páginas do livro no começo do filme são viradas rapidamente demais para que o espectador possa ler sua dedicatória e epígrafe, mas esta última poderia muito bem ser um trecho do livro de gramática russa que Vladimir Nabokov usou para abrir sua novela de 1952 The Gift, o presente: “Um carvalho é uma arvore. Uma rosa é uma flor. Um veado é um animal. Um pardal é um pássaro. A morte é inevitável.”
Anotação em janeiro de 2019
A Balada de Buster Scruggs/The Ballad of Buster Scruggs
De Ethan e Joel Coen, EUA, 2018
Com Tim Blake Nelson, James Franco, Liam Neeson, Harry Melling, Tom Waits, Zoe Kazan, Bill Heck
Argumento e roteiro Ethan e Joel Coen
Episódio “All Gold Canyon” baseado em história de Jack London;
Episódio “The Gal Who Got Rattled” inspirado em história de Stewart Edward White
Fotografia Bruno Delbonnel
Música Carter Burwell
Montagem Ethan e Joel Coen (sob o pseudônimo de Roderick Jaynes)
Casting Ellen Chenoweth
Produção Annapurna Pictures, Annapurna Television, Mike Zoss Productions.
Cor, 133 min (2h13)
***
Não consigo gostar desse filme (mas não me esforço muito, também). O seu texto, sim, é maravilhoso.
Vi ontem na Netflix.
Creio que é o segundo filme dos irmãos Coen que vejo; o outro foi “No Country for Old Men” que em Portugal teve o título “Este país não é para velhos”.
Comecei por embirrar com o título que não faz sentido para mim, depois embirrei com o filme que achei detestável.
Esta Balada é mais aceitável mas nunca chega a entusiasmar, vai-se vendo, não aquece nem arrefece.
Quanto ao humor (e eu até gosto muito do humor negro) não dei por ele.
Sobre o último capitulo, concordo ctg Sérgio.
Não tinha visto da mesma forma que você, no entanto me pareceu claro que os caçadores de recompensam também estavam levando mais 3 pessoas além do defunto do teto da diligencia. Ou seja, os 3 passageiros que estavam ali.
Outra dica disso, é com relação a quem conduz a diligencia, o motorista praticamente não aparece, e os relances em que se vê a carruagem de fora, ele esta andando em uma velocidade absurda. E ele não me pareceu nenhum pouco amigável.
Portanto, não sei dizer se aquilo era o céu ou inferno. Mas aquelas pessoas estavam indo para o além.
Nossa, Felipe, você prestou atenção a muito mais detalhes do que eu!
De qualquer forma, concordamos: aquelas pessoas estavam mesmo indo para o além!
Sérgio