A Taverna do Caminho / Road House

Nota: ½☆☆☆

Road House, no Brasil A Taverna do Caminho, um preto-e-branco com pretensões a ser noir da Fox, dirigido por Jean Negulesco em 1948, tem duas coisas capazes de atrair as atenções dos cinéfilos: as risadas macabras, tenebrosas de Richard Widmark, fazendo mais um vilão horripilante, e a presença forte, magnética, de Ida Lupino.

A maravilhosa atriz até canta – e canta diversos standards da Grande Música Americana.

No entanto, nem mesmo Ida Lupino cantando lindas canções, com uma voz grave, rouca, impressionante, arranhada por mil cigarros, consegue salvar o filme. Road House é insalvável. É um abacaxi azedo, horrendo, pavoroso. E a culpa é basicamente da história. Meu Deus do céu e também da terra, mas o que que é aquilo? É uma seriíssima candidata ao troféu Framboesa Eterna de pior história jamais filmada.

Hum… Na verdade, não é só a história. Tudo é péssimo, muito, muito abaixo do nível do ruim: a trama, sim, mas também a construção dos personagens. Os personagens não resistem a uma boa olhada, não ficam de pé. É tudo tremendamente artificial, forçado, antinatural, nada real. Parte-se de uma coisa esquemática, e se vai em frente – depois se perde a noção de para onde se estava indo, e o filme consegue ir piorando e piorando e piorando a cada cinco minutos que passam.

É bom dar logo o nome dos caras que cometeram a estultice. O roteiro é assinado por Edward Chodorov, que foi também o produtor. E o roteiro é baseado em história de Margaret Gruen e Oscar Saul. Esses são os nomes que aparecem nos créditos iniciais. O IMDb, que tudo sabe, acrescenta que trabalharam no roteiro, sem ter seus nomes nos créditos, os profissionais Serge Bertensson e David Hertz, mais o próprio diretor Jean Negulesco.

A mão experiente de Negulesco bem que tenta

Só essa informação do IMDb, de que três pessoas foram chamadas para ajudar a dar um jeito no roteiro, já demonstra que de fato aquela trama, com aqueles personagens, não prestava mesmo, e precisava de ajuda externa para tentar tornar o filme palatável, passável.

Do roteirista Edward Chodorov não tenho notícia, nem interesse em ter. Jean Negulesco, conheço desde sempre – mas para mim seu nome sempre esteve mais ligado a musicais, romances, filmes leves, do que a a dramas pesados, filmes policiais, quanto mais noir. Vejo agora, no entanto, que minha avaliação não era bem correta. Romeno de nascimento, longevo (morreu em 1993, aos 93 anos de idade), fez, sim, filmes leves, como eu me lembrava: A Fonte dos Desejos (1953), Como Agarrar um Milionário (1953), Papai Pernilongo (1957), A Lenda da Estátua Nua (1957). Mas também fez dramas: Acordes do Coração (1946), Belinda (1948), Rua Proibida (1949), Feras Que Foram Homens (1950), Náufragos do Titanic (1953).

A mão experiente de Jean Negulesco bem que tenta. Cornel Wilde, por exemplo, que é tido como um ator bastante ruim, quase rivalizando assim com um Victor Macture, me pareceu surpreendentemente bem. As tomadas em que Lily Stevens – a personagem de Ida Lupino – canta aquelas belas canções, acompahando-se ao piano, com o eterno cigarro teimando em queimar a madeira do alto do instrumento, são bem feitas. Admito que são até fascinantes.

O problema não é a direção. É o roteiro. Mais que o roteiro propriamente, o que está atrás dele – a história, a trama, o enredo, o entrecho.

Quando a porcaria beirava os 30 minutos, Mary, a meu lado, reclamava que seria preciso começar uma história. Lá pelos 35 minutos, não tendo ainda começado história alguma, Mary se levantou e foi fazer alguma outra coisa mais interessante, e estava certíssima ela. Qualquer coisa seria mais interessante – para ela, que não tem um site de filmes. Como eu inventei de ter um, fiquei lá, firme, vendo o abacaxi.

A partir dos 30 minutos, a história piora. Aos 44 minutos, Lily Stevens-Ida Lupino conta um pedaço de sua triste história de vida, e aí finalmente Pete-Cornel Wilde puxa a moça e tasca-lhe um beijo.

No momento do beijo, acontece um fade-out – a tomada se dissolve, a tela fica cinza escuro e negra por alguns pedacinhos de segundo, e o espectador tem todo o direito de achar que a partir do beijo partiu-se para os finalmentes, algo que a rigor era proibido pelo Código Hays, o código de autocensura acordado pelos grandes estúdios no início dos anos 1930.

A primeira metade é um horror. A segunda é pior

Diacho! Falo do beijo que acontece quando o filme está com 44 minutos sem ter dado uma sinopse da história! Um absurdo.

É assim:

Era uma vez numa pequena cidade que provavelmente fica no Meio Oeste americano, bem lá em cima, perto da fronteira do Canadá, um gigantesco bar-restaurante-boliche-boate, à beira de uma estrada. Não bem dentro da cidade, e sim junto de uma estrada bem pertinho da cidade, sacumé? O lugar pertencia a Jefty (Richard Widmark), um sujeito muito rico – a gente nunca fica sabendo se ele é rico porque tem aquele lugarzão, ou se é rico de herança e então mantém aquele lugarzão para ter algo que fazer na vida.

Mas na realidade ele não faz quase absolutamente nada na sua super big Road House – quem faz tudo é o gerente, Pete Morgan (o papel de Cornel Wilde). A única coisa que Jefty faz é contratar entertainers, cantoras – e, quando a ação começa, ele havia contratado em Chicago, por um salário muito alto, a cantora Lily Stevens-Ida Lupino.

Fica muito claro, logo de cara que a) o patrão Jefty vai se apaixonar perdidamente por Lily; b) depois de tentar rejeitar Lily de todas as formas, o gerente Pete vai se apaixonar perdidamente por Lily; c) depois de dar um tapa na cara de Pete, Lily fará tudo para seduzi-lo, e evidentemente conseguirá, porque ela é fodinha.

A tudo aquilo assiste Susie (o papel de Celeste Holm), que é a segunda funcionária mais fundamental da casa, cuida do caixa – e, evidentemente, é apaixonada por Pete, embora Pete goste dela mas não perceba que da outra parte há amor.

Quando o filme está com 44 minutos, Pete finalmente beija Lily, há um fade out e a gente intui que do beijo os dois partiram para os finalmentes.

Mas aí reaparece o patrão Jefty, que tinha ido caçar – e ele está absotamente convencido de que vai se casar com Lily. Dá-se o impasse. Não chega a ser propriamente um triângulo amoroso, porque Lily jamais deu a mínima pelota para o babaca do Jefty, mas…

Relatei o que rola até o meio do filme. Garanto que o que rola depois é ainda muito pior.

Os guias de Maltin e Tulard acham o filme ótimo

No DVD da excelente Versátil Home Vídeo (o filme foi lançado na caixa Filme Noir Vol. 7), há um especial sobre o filme. Ainda não vi, e tenho sérias dúvidas se verei. Mas estou curiosíssimo por saber o que dizem sobre Road House os doutos guias.

Leonard Maltin dá 3 estrelas em 4! “Psicótico dono de casa junto de estrada Widmark se ilude achando que ele ‘possui’ a cantora Lupino; quando ela se apaixona por seu amigo de infância e empregado (Wilde), saem faíscas neste interessante melodrama. Ida até mesmo canta, introduzindo o standard ‘Again’.”

Falo sobre as canções mais adiante. Vamos a outras doutas opiniões.

Hê hê… Na França, o filme teve o título de La Femme aux Cigarettes. De fato: como fuma a tal da Lily Stevens, meu! Ela fuma sem parar, o filme inteiro, mais que Bette Davis, mais que Joan Crawford. E tem horror a cinzeiros. Jamais coloca o cigarro acesso que está fumando num cinzeiro, e sim num móvel, no qual vai necessariamente deixar uma marca.

Por que será isso, meu Deus? Será que os roteiristas imaginaram que, fumando assim, demais, e de uma maneira rebelde, a personagem ficaria mais próxima de uma femme fatale, ou coisa parecida? Olha, eu não sei, não, mas acho esse filme deveria ser mostrado nos cursos de aspirantes a roteiristas –como algo que demonstra tudo o que tem que ser evitado quando se constrói um roteiro.

Ah, meu, ferrou! O Guide des Films de Jean Tulard adorou o filme! Dá 3 estrelas em 4, honraria dada a pouquíssimos grandes filmes! Este é o meu maior desacordo com o guia do Tulard, até hoje.

Transcrevo tudo, a sinopse e a avaliação:

“Dono de cabaré, Jefty contrata Lily como cantora. Ele se apaixona por ela, mas ela prefere seu amigo Peter. Para se vingar, Jefty o faz condenar por roubo e depois obtém da Justiça que cuide dele.”

Aí o Guide conta a última sequência do filme, algo que me recuso a fazer. E então ele avalia: “Notável filme noir: atmosfera pesada e opressiva, composição deslumbrante de Richard Widmark.”

“Composition éblouissante de Richard Widmark.”

Éblouissante – deslumbrante, brilhante, impressionante,  espetacular, fantástico – o cazzo! Richard Widmark repete as caretas e as risadas que se pretendem apavorantes de tantos outros filmes da Fox em que interpretou bandidos cruéis. Coisa grotesca, sem sentido algum.

Mas tudo bem: se o eventual leitor acreditar no que diz o Guide, vá atrás: a caixa da Versátil tem outros cinco filmes, alguns bem bons.

Quatro belos standards cantados por Ida Lupino

Vamos ao que interessa. A única coisa que presta neste filme horroroso.

Ida Lupino interpreta – com a sua própria voz, e não dublada na hora da canção, como havia sido em Meu Único Amor (1947) – diversas, diversas belas canções. Bem, não anotei enquanto via o filme, e, segundo o IMDb, são apenas quatro:

“One for My Baby (And One More for the Road)” (Harold Arlen-Johnny Mercer),

“Again” (Lionel Newman-Dorcas Cochran),

“The Right Kind” (Lionel Newman-Charles Henderson-Don George),

“There’ll Be Some Changes Made” (Billy Higgins-W. Benton Overstreet).

Ida Lupino é uma figura magnética. Enquanto ela canta esses standards, a gente pode até se esquecer do filme.

Anotação em fevereiro de 2019

A Taverna do Caminho/Road House

De Jean Negulesco, EUA, 1948

Com Ida Lupino (Lily Stevens), Cornel Wilde (Pete Morgan), Celeste Holm (Susie Smith), Richard Widmark (Jefty Robbins)

e O.Z. Whitehead (Arthur), Robert Karnes (Mike), George Beranger (Lefty), Ian MacDonald (o capitão de polícia), Grandon Rhodes (o juiz)

Roteiro Edward Chodorov      

Baseado em história de Margaret Gruen e Oscar Saul    

Trabalharam no roteiro, sem crédito: Serge Bertensson, David Hertz, Jean Negulesco

Fotografia Joseph LaShelle e, não creditado, Norbert Brodine

Música Cyrill Mockridge e Alfred Newman

Montagem James B. Clark

Produção Edward Chodorov, 20th Century Fox. DVD Versátil.

P&B, 95 min (1h35)

1/2

Título na França: La Femme aux Cigarettes. Em Portugal: Com o Amor Nasceu o Ódio.

6 Comentários para “A Taverna do Caminho / Road House”

  1. Toda vez que você chama de ABACAXI, eu fico louca pra ver.

    Cornel Wilde era maravilhoso.

  2. Parei de ler ainda no começo, pois a sua escrita não é nada convidaditiva. Quem escreveu essa resenha, tem muita certeza do que pensa ser ruim, mas pouco sabe identificar onde estão os defeitos daquilo que despreza. Ousa ainda um linguajar boçal, tipicamente masculino, incapaz de compreender as amarras femininas das personagens e dos próprios homens na trama. Boçal, repito, por não ter a presteza em olhar a coisa como experimento cinematográfico, núcleos narrativos, literatura, imagem, fotografia, trilha, autenticidade, como uma feliz tentativa de fazer um Noir, que, cá entre nós, nem você, nem eu conseguiríamos, você menos que eu, pois queres demais, almejas demais daquilo que não te pertence, aquilo existe para além de ti. As pessoas apressadas acham que um filme precisasse provar algo, precisa tirá-las do tédio de suas próprias vidas, precisa como qualquer coisa fácil, entretê-las. Digo apenas uma coisa, esse filme não é pro teu bico e você deveria excluir essa post equivocado.

  3. Gostaria de desdizer o dito: não acho que devas excluir esse post, quem sou eu? Acho inclusive que as informações técnicas do filme que vc publicou são muito importantes e curiosas. O que me chateia é tudo o que eu disse no outro comentário. Abraço.

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