(Disponível no YouTube em 6/2024.)
Durante boa parte dos 113 min de A Trapaça/Il Bidone, os personagens estão alegres, brincalhões, sorridentes. Bem no meio do filme, há uma longa sequência passada em uma festa de fim de ano, as pessoas muito descontraídas, à vontade – muitas à vontade demais, exageradamente. No entanto, é um filme profunda, profunda, profundamente triste.
Me parece um dos filmes mais tristes entre todos os de Federico Fellini que já vi. Ao lado, creio, do que viria logo em seguida, Noites de Cabíria.
Exatamente como acontece com Noites de Cabíria (1957), quando A Trapaça (1955) termina é impossível o espectador não estar com um gosto tremendamente amargo na garganta, e aquela sensação de que, diabo, a humanidade de fato parece ter sido uma invenção que não deu certo.
O filme mostra um período da vida de um grupo de vigaristas, embusteiros, velhacos, ladrões. Centra-se, sobretudo, no mais velho deles, um sujeito que vive há décadas de golpes, embustes, roubos. Chama-se Augusto, e é interpretado – com um brilhantismo absurdo – pelo norte-americano Broderick Crawford (à direita na foto abaixo).
Augusto. Só agora, no momento em que escrevo, me ocorreu a grande ironia que é o nome desse homem triste, solitário, amargurado, mas que não consegue renunciar à profissão de trapaceiro. Augusto – o nome pelo qual ficou conhecido Caio Otávio, o sobrinho-neto e herdeiro de Júlio César, o fundador do Império Romano. O nome que virou adjetivo, sinônimo de respeitável, venerando, elevado, sublime, magnífico, majestoso, segundo enumera o Aurélio.
Os trapaceiros que Fellini criou, juntamente com Ennio Flaiano e Tullio Pinelli, são do pior tipo de ladrão que pode haver: roubam de gente pobre, muito pobre.
Executam planos muito elaborados para levar todas as economias da vida de donos de pequenos, miseráveis sítios, de favelados, de frentistas de posto de gasolina.
Um horror, um nojo, uma baixeza inconcebível.
Dois dos meliantes se fazem passar por religiosos
Por mim, a história, a trama, o argumento – o soggeto – do filme a rigor já foi apresentada nos parágrafos acima. Mas tenho sido levado a crer que cada comentário sobre filme tem necessariamente que ter uma sinopse, e então aqui vai uma. Uso como base a da Wikipedia, mas acrescento muitos pitacos.
Um trio de escroques age nas cercanias de Roma, seguindo esquemas traçados por um “barão” do crime, Vargas (Giacomo Gabrielli). Dois deles se fantasiam como homens da Igreja para, mediante uma história um tanto complexa, extorquir de pobres sitiantes todas as suas economias. O mais velho, Augusto (o papel, como já foi dito, de Broderick Crawford), faz o papel de um monsenhor; o mais jovem, Carlo, conhecido pelo apelido de Picasso (Richard Basehart, nas fotos acima e abaixo), finge ser um padre, um assistente do monsenhor; e o terceiro, Roberto (o papel de Franco Fabrizi), faz as vezes do motorista dos dois religiosos.
Em outro de seus esquemas, o trio visita favelas na periferia de Roma fazendo-se passar por funcionários da Prefeitura que vão recolher as primeiras prestações das casas próprias a serem entregues posteriormente às famílias.
Já velho, Augusto começa a se cansar de ser ladrão
Roberto não parece ter qualquer ligação afetiva ou familiar. Picasso é casado com uma moça simpática, Iris – simpática mas um tanto avoada, já que não faz idéia da profissão do marido. O casal tem uma filhinha que é a paixão da vida de Picasso. Iris é o papel de Giulietta Masina – e, ao ver agora a maravilhosa atriz, fiquei pensando que este talvez seja o papel em que Giulietta está mais assim pessoa comum, gente como a gente, “normal”.
De Augusto, o mais velho do trio de trapaceiros e o protagonista da história, o que o filme vai mostrando aos poucos é que ele já foi casado, e teve uma filha, Patrizia (Lorella De Luca), que, na época em que a ação se passa, é uma adolescente. Da mesma maneira que Iris em relação ao marido, Patrizia não sabe nada a respeito da profissão do pai.
A sinopse da Wikipedia em Francês tem uma frase que é um resumo duro, cru, terrível, da situação absurda que Il Bidone apresenta:
“Os rendimentos da fraude (dos três trapaceiros) são consumidos em despesas luxuosas e frívolas.”
E termina de uma forma extremamente bonita – e triste, claro:
“O mais velho fica preso ao passado familiar à medida que começa a se cansar de seu modo de vida. A hora do último golpe está se aproximando.”
Fellini expõe a dura vida dos pobres – mas sem proselitismo
Sim: de fato, o mais absurdo, o mais chocante, o mais apavorante da trama é que aquelas pessoas roubam os muito pobres… para gastar fortunas da maneira mais desregrada, mais sem sentido que pode haver, em jantares, festas, mulheres. São como Robin Hood às avessas: retiram dos muito pobres tudo o que eles têm para viver durante alguns rápidos momentos como os muito ricos.
Mais do que qualquer outro, o cinema italiano – a partir do neo-realismo surgido no imediato pós-guerra, mas também depois dele, ao longo dos anos 50, 60 e 70 – foi um cinema de esquerda. Sempre uma denúncia da imensa injustiça social do capitalismo, sempre uma elegia da classe trabalhadora, sempre uma defesa da luta de classes, visando à chegada da nova sociedade igualitária, solidária. Vários dos grandes cineastas italianos tiveram laços fortes com o socialismo, com o comunismo, como Luchino Visconti e Ettore Scola, para citar apenas dois.
Michelangelo Antonioni foi uma exceção – e, meu Deus do céu e também da Terra, como foi duramente criticado por não fazer parte da imensa maioria.
Fellini não fez parte da imensa maioria. Especialmente em seus primeiros filmes, ele expõe, sim, a miséria do povo, a dureza da vida dos paupérrimos, dos miseráveis. Mas, ao contrário do que acontece nas obras de vários grandes diretores italianos dos anos 40 aos 70, seus filmes não têm um tom político, aquele tom de que é preciso mudar o regime para que não haja tanta injustiça. Não fazem proselitismo.
A gente se pega esperando que eles deixem a vigarice
Há uma sequência especialmente bela quando Il Bidone está chegando à metade de seus 113 minutos. Especialmente bela, e especialmente triste.
Augusto está caminhando pelo centro de Roma quando, inesperadissimamente, cruza com sua filha, sua única filha, Patrizia. A garota caminha entre duas amigas, vê o pai, e o chama. Augusto fica sem jeito, incomodado – o espectador percebe claramente que ele não gostaria de estar sendo visto ali pela filha. Tinha medo de que a garota percebesse que ele era um trapaceiro, um escroque, um ladrão. Patrizia, ao contrário, se mostra inteiramente à vontade, e feliz de ver o pai que andava distante dela, depois da separação da mãe.
Mais adiante, bem mais adiante, Augusto junta coragem e convida Patrizia para um encontro. Almoçam juntos, o clima está gostoso. Vão ao cinema – mas, no cinema, uma dupla de pessoas que havia sido ludibriada por Augusto em um antigo golpe o identifica, e inicia-se uma briga. Chamam a polícia, Augusto é levado preso – morrendo, morrendo de vergonha de que a filha estivesse vendo a cena.
Essas duas sequências me fizeram lembrar de Umberto D,, que Vittorio De Sica havia lançado em 1952, três anos antes, portanto, deste Il Bidone. Há um momento no filme de De Sica, escrito pelo grande Cesare Zavattini, comunista de carteirinha, em que Umberto D., aposentado, pobre, sozinho no mundo, se vê obrigado a pedir esmola numa rua de Roma, como via tantos outros idosos fazendo. Chega a começar a estender a mão para a frente – mas o orgulho, o brio, a vergonha falam mais forte e ele recua a mão que nem chegou a estender completamente.
Il Bidone me fez lembrar também de outro filme que, à primeira vista, não tem nada com o filme de Fellini: Golpe de Mestre/The Sting (1973). aquele tremendo sucesso de George Roy Hill que reuniu pela segunda vez Paul Newman e Robert Redford.
Diacho: como realça o título em Português, o filme hollywoodiano trata de um golpe. Os personagens dos dois belos atores (belos em todos os sentidos do termo) são vigaristas, embusteiros, velhacos, ladrões – só que o espectador torce para que o golpe deles dê certo. Porque eles estão planejando um golpe contra um sujeito que é mau caráter e cheíssimo da grana.
Aqui é exatamente o contrário. Não há como torcer por aqueles vigaristas. Não há como torcer por velhacos que roubam as suadíssimas economias de gente muito pobre. Fellini faz o espectador ter uma certa simpatia pelo jovem Carlo, o Picasso, e em especial pelo velho Augusto. Uma certa simpatia – e pena, muita pena.
Aconteceu comigo, e creio que deve acontecer com a maioria dos expectores: a gente se vê tendo uma pequenina esperança de que Carlo e Augusto saiam dessa. Que abandonem a vigarice, procurem alguma decente para fazer.
Há um momento em que Carlo chega a exprimir para o amigo Augusto que gostaria de sair daquela vida – mas logo demonstra ter orgulho de seu talento para a profissão.
E é de emocionar um frade de pedra a sequência em que, logo após o último golpe, Augusto conversa com a filha da família que acabou de roubar. Não chega a ser propriamente um spoiler dizer que a moça, Susanna (Sue Ellen Blake, na foto abaixo, extraordinária, fantástica), paraplégica devido à poliomielite, impressiona demais o velho vigarista, chacoalha seu coração e sua cabeça, ao se mostrar alegre e positiva porque ama a vida e ama a Deus.
Aí, logo depois dessa sequência emocionante, vem o final – e o final de Il Bidone apresenta uma concentração de crueldade e amargura de que, olha… poucos filmes são capazes.
A primeira opção de Fellini era Humphrey Bogart
Antes de transcrever algumas opiniões de críticos, gostaria de fazer alguns registros.
É voz corrente que Fellini pensava em Humphrey Bogart para o papel central, o do veterano Augusto. Com a informação de que o grande ator estava doente (Bogey morreria em janeiro de 1957, um ano e pouco após o lançamento deste filme), optou, então, por Broderick Crawford.
Crawford (1911-1986) vinha em uma grande fase – havia ganho o Oscar de melhor ator por A Grande Ilusão/All the King’s Man (1949), de Robert Rossen, e tido imenso sucesso com Nascida Ontem/Born Yesterday (1950); um ano antes de Il Bidone, em 1954, havia sido dirigido por Fritz Lang em Desejo Humano/Human Desire.
Baita ator – e uma figura que é o perfeito oposto do galã de Hollywood. Volumoso, gorducho – e feio feito a fome. Fazia piada com isso. Ficou famosa a sua frase: “Minhas marcas registradas são uma voz rouca e áspera e o rosto de um pugilista aposentado: pequenos olhos estreitados inseridos em feições inchadas que parecem, anos atrás, ter perdido por pontos”.
Assim como Crawford, Fellini também vinha de um sucesso extraordinário. Seu filme imediatamente anterior, lançado em 1954, La Strada, no Brasil A Estrada da Vida, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro e abriu para ele as portas do maior mercado do mundo. La Strada, como boa parte de seus filmes, tinha sua mulher e musa Giulietta Masina no elenco. Tinha também dois atores de Hollywood, Anthony Quinn e Richard Basehart.
Fellini deu bis para o então jovem Richard Basehart – como já foi dito, é dele o papel de Carlo, o Picasso, o vigarista casado com a personagem interpretada por Giulietta Masina.
E aí não tem como não registrar: é interessante como alguns dos grandes diretores italianos gostavam de ter atores de Hollywood em seus filmes – fazendo papéis de italianos!
Fellini teve esses três, Anthony Quinn, Broderick Crawford, Richard Basehart. Luchino Visconti escalou Burt Lancaster duas vezes, em O Leopardo (1963) e Violência e Paixão (1974). E escolheu Farley Granger para fazer um tenente austríaco em Sedução da Carne/Senso (1954). Vittorio De Sica teve Montgomery Cliff como um italiano filho de norte-americana em Stazione Termini (1953).
Acho isso fascinante.
“Um grande e muito belo filme”
Pauline Kael, a crítica americana que acompanhava bem de perto os filmes europeus, informa, abrindo o verbete sobre Il Bidone, que o filme, de 1955, só foi lançado nos Estados Unidos em 1964. Incrível!
“Este filme de Fellini, realizado logo após A Estrada, não fez sucesso na Itália, nem neste país. O tom é incerto; ficamos esperando que o filme seja um pouco diferente da história dura que revela ser. Broderick Crawford (num papel concebido para Bogart), Richard Basehart e Franco Fabrizi são vigaristas que enganam camponeses crédulos. O filme não funciona bem, mas não é descartável; tem alguns dos trechos mais realistas de Fellini, e o remorso de Broderick Crawford por seus crimes, e seu final (…) são dolorosos de uma maneira simples e direta.; Giulietta Masina faz a esposa de Basejart. Escrito por Fellini, Tullio Pinelli e Ennio Flaiano. Em italiano.”
Coloquei aquele sinal (…) porque ali, em poucas palavras, Dame Kael dá um spoiler bravo.
Diz o Petit Larousse des Films, um guia de que gosto cada vez mais, sobre Il Bidone (o filme foi lançado na França com o título original, sem tradução):
“Este filme trágico nunca teve o sucesso que merece. Fellini dá a razão: ‘Meus heróis (…) oferecem aos espectadores uma imagem pouco lisonjeira deles mesmos, que muitos devem repelir’. No entanto, o humor amargo e nostálgico das sequências, a beleza das imagens, a emoção dos olhares, são do melhor Fellini.”
E, finalmente, o que diz o Guide des Films de Jean Tulard:
“Brilhantemente realizado, esta obra é uma sequência de cenas autônomas que desenham uma sociedade decadente de onde emergem três retratos luminosos de mulheres. Todo o universo de Fellini se encontra aqui com suas praças desertas, suas ruas escuras, seus cabarés gastos, suas festas orgiásticas (a sequência do réveillon filmada em um estilo nervoso e conciso é extraordinária). Um branco brilhante se opõe ao negro mais sombrio; a música de Nino Rota abrange tudo, e os atores, em especial Broderick Crawford, estão maravilhosos. Um grande e muito belo filme do período neo-cristão de Fellini.”
Anotação em junho de 2024
A Trapaça/Il Bidone
De Federico Fellini, Itália-França, 1955
Com Broderick Crawford (Augusto Rocco)
e Richard Basehart (Carlo, o Picasso), Giulietta Masina (Iris, a mulher de Carlo), Franco Fabrizi (Roberto Giorgio), Lorella De Luca (Patrizia, a filha adolescente de Augusto), Alberto De Amicis (Rinaldo, o ex-trapaceiro que ficou rico), Xenia Valderi (Luciana, a mulher de Rinaldo), Sue Ellen Blake (Susanna, a jovem paraplégica), Giacomo Gabrielli (“Barão” Vargas, o criador das trapaças), Irene Cefaro (Marisa), Riccardo Garrone (Riccardo, um escroque), Maria Zanoli (Stella Florina, a primeira camponesa vítima de trapaça), Sara Simoni (a irmã mais velha de Stella), Mara Werlen (Maggie, a bailarina), Sara Simoni (a segunda camponesa trapaceada), Cristina Pall (a mulher da cigarreira de ouro na festa), Tiziano Cortini (o louro no cinema)
Argumento e roteiro Federico Fellini & Ennio Flaiano & Tullio Pinelli
Fotografia Ortello Martelli
Música Nino Rota
Montagem Mario Serandrei, Giuseppe Vari
Direção de arte Dario Cecchi
Produção Titanus, Société Générale de Cinématographie (S.G.C.)
P&B, 113 min(1h53)
***1/2
Título nos EUA: “The Swindle”.