Vítimas do Divórcio / A Bill of Divorcement

Nota: ★★★☆

(Disponível no YouTube em 3/2023.)

A Bill of Divorcement, produção de 1932 de David O. Selznick para a RKO, dirigida por George Cukor, começa em uma festa bem alegre, às vésperas da comemoração do Natal. Estão todos muito elegantes, em roupas de noite, na ampla casa no campo inglês em que vivem Margaret, mulher aí de uns 40 anos, sua filha Sydney e a tia da moça, Hester. Todos muito elegantes, e muito alegres.

Mãe e filha estão noivas de homens por quem estão muito apaixonadas, e os dois já as pediram em casamento.

É um filme bem curto, de apenas 69 minutos. Quando estamos com pouco menos de 20 minutos, a história que começou alegre, numa festa onde todos estavam felizes, se transforma em um drama pesado, denso. A jovem Sydney, 24 anos de idade, e a mãe, Margaret, que se preparava para ter a felicidade de se casar com um homem gentil, agradável, que ela amava de paixão, terão suas vidas alteradas para sempre, e arrastadas para um redemoinho de emoções de onde parecerá impossível sair.

Tia Hester, que a rigor não tem importância fundamental na bela, fascinante e triste trama criada pela romancista e dramaturga inglês Clemence Dane, é interpretada por Elizabeth Patterson. Margaret é o papel da bela, simpática Billie Burke (à direita na foto abaixo). Kit Humphrey, o namorado-noivo da jovem Sydney, é interpretado por David Manners, e Gray Meredith, o noivo de Margaret, por Paul Cavanagh. Todos eles podem ser bem pouco conhecidos hoje, mas eram atores de fama na época de lançamento do filme, 1932.

A jovem Sydney Fairfield é o papel de uma atriz estreante em Hollywood, depois de uns quatro anos de carreira respeitável no teatro na Broadway – e se transformaria, ao longo dos 62 anos e 52 filmes seguintes, em uma das maiores estrelas do cinema mundial.

Katharine Hepburn tinha 25 anos quando interpretou Sydney neste filme lançado em 1932. Os créditos iniciais até erraram a grafia de seu prenome, que aparece como Katherine. Por sua atuação no terceiro filme da carreira, Manhã de Glória/Morning Glory, de 1933, ganhou o Oscar de melhor atriz. Foi a primeira das 12 indicações ao Oscar, e o primeiro dos quatro que ela levou para casa.

O grande astro do filme era o já então lendário John Barrymore. Ele surge pela primeira vez na tela quando estamos exatamente com 17 minutos de filme – e é o momento em que o clima pesado, denso, de drama, se instala na trama.

O marido reaparece de repente

Depois da festa doa início do filme, há algumas sequências – sempre dentro da casa de tia Hester, Margaret e Sydney – em que, na manhã seguinte, as três mulheres conversam. Pelo que é dito na festa e nas conversas das duas senhoras e da jovem Sydney, o espectador fica sabendo do seguinte sobre aquela família e seu passado:

Margaret havia se casado bem jovem, mas bem jovem mesmo, com Hillary Fairfield, o irmão de Hester. Pouco tempo depois, Hillary se alistou no Exército para lutar contra os alemães na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Margaret teve então a filha do casal, Sydney. Quando voltou do front, Hillary estava com o sistema nervoso profundamente abalado, no que a irmã e a mulher sempre descreveram como mais um caso, entre tantos e tantos e tantos, de trauma de guerra. E ele permaneceu internado em um hospital para doentes mentais.

Não reconhecia Margaret quando ela o visitava. Os médicos a aconselharam a evitar novas visitas, para que ele não ficasse nervoso com a presença dela.

Sydney nunca conhecera o pai. E, com o passar dos anos, Margaret, ainda jovem, cheia de vida, bonita, ficara conhecendo Gray Meredith e se apaixonado por ele. Com a ajuda de Gray, havia conseguido se divorciar do homem internado em asilo – e agora estava pronta para se casar com o homem que amava.

Conseguido se divorciar. Conseguido obter a certidão de divórcio – a bill of divorcement, o nome da peça de teatro e do filme baseado nela.

Há um belo diálogo entre mãe e filha, naquela manhã do dia seguinte ao da festa. É quando Sydney conta para Margaret que Kit Humphrey a havia pedido em casamento:

Sydney:- “Mãe, quero te contar uma coisa. Kit quer que a gente se case imediatamente e vá para o Canadá.”

Margaret: – “Querida, você é tão jovem para pensar em se casar…”

Sydney: – “Você se casou com a minha idade.”

Margaret: – “Eu sei. Eu era jovem demais. Achava que estava apaixonada… Sei agora que era apenas a guerra.”

Sydney: – “Sempre que sua geração quer uma desculpa sobre alguma coisa, usa a guerra. Ninguém a forçou a se casar.”

Margaret, depois de algum tempo, sentando-se nos degraus de uma escada que dava de uma das salas para o andar superior, onde seguramente ficavam os quartos: – “Havia um sentimento no ar. Fazíamos coisas loucas. Hillary estava prestes a sair para as trincheiras. Ele gostava tanto de mim que me assustou. Eu estava tão sentida que achei que queria casar. Agora sei que o que sentia por ele não era na verdade amor. Você consegue entender?”

A filha diz que não, não entende: – “Ou você ama ou você não ama. Eu amo Kit.”

Margaret: – “Sério, querida? Se você tem tanta certeza, eu tenho que deixar que você vá… Quero que seja feliz.”

Daí a pouco Gray Meredith vem pegar Margaret para os dois fazerem um passeio.

Ligam do sanatório – é Sydney que atende – dizendo que Hillary havia fugido, escapado. Sim, ele estava muito melhor ultimamente, tinha melhorado de maneira fantástica – mas ainda não tinha tido alta. E aproveitara para fugir.

E então, quando o filme está exatamente com 17 minutos, Hillary Fairfield reaparece na casa que havia sido sua. Espanta-se ao ver a filha já adulta, mas ela o recebe muito bem, e ele logo fica muito à vontade com ela. Só quer saber é onde está Margaret. Está morrendo de saudade de Margaret, agora que está bem, e quer voltar o quanto antes a viver com a mulher que ama demais.

A peça de teatro deu origem a três filmes

Clemence Dane – o nome de uma igreja de Londres – foi o pseudônimo escolhido pela escritora inglesa Winifred Ashton (1888-1965). Como Clemence Dane assinou dezenas de romances e peças, entre 1917 e 1964. Era uma mulher atraente, bonita; o grande multiartista Noël Coward a definiu como “a gallant old girl” – e o IMDb registra que ela pode ter inspirado Coward a criar a personagem de Madame Arcati em Blythe Spirit, que David Lean filmou em 1945 e no Brasil se chamou Uma Mulher do Outro Mundo; Madame Arcati foi interpretada por Margaret Rutherford.

A Bill of Divorcement foi sua quarta obra, encenada pela primeira vez no West End de Londres em 1921. O cinema britânico foi rapidíssimo, e em 1922 já lançava a primeira versão da peça, com o título original – no Brasil, modificado idiotamente para Vítima do Divórcio. O filme foi dirigido por Denison Clift, e teve Constance Binney como Sidney Fairfield, Fay Compton como Margaret Fairfield e Malcolm Keen como Hilary Fairfield – grafado no IMDb com um l só.

Em 1940, apenas oito anos após esta versão aqui, feita por um diretor de prestígio e com elenco respeitável, a própria RKO Radio Pictures lançou uma terceira versão, de novo com o título original da peça, A Bill of Divorcement, e lançado no Brasil com o mesmo título desta versão de George Cukor, Vítimas do Divórcio. Parece ter sido, como esta aqui, uma versão caprichada. O diretor foi John Farrow, e a belíssima ruiva fordiana Maureen O’Hara fazia o papel de Sydney. O galã Adolphe Menjou fazia Hilary Fairfield e Fay Bainter, Margaret.

Vítima do Divórcio, título brasileiro do filme de 1922, e Vítimas do Divórcio, adotados aqui para as versões de 1932 e 1940, são ruins, e não traduzem o que a história mostra. O título original de todos, A Bill of Divorcement, o papel do divórcio, a certidão do divórcio, é perfeito; não faz julgamento, não toma partido. Apenas realça que é um elemento importante da trama o fato de Margaret já ter obtido a certidão quando seu marido dado como insano para sempre reaparece. O título Vítimas do Divórcio culpa o divórcio pelo drama da família, como se a instituição divórcio fosse responsável pelo sofrimento daquelas pessoas.

Bem. O Brasil tem longa tradição de títulos idiotas, de Os Brutos Também Amam a Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, passando por Depois Daquele Beijo… (Na foto, David Manners e Katharine Hepburn.)

Cukor e Katharine fizeram dez filmes juntos

Há um elemento na história criada pela escritora inglesa há mais de cem anos atrás que ficou um pouco velho, antigo, datado, démodé – embora, a rigor, só um pouco: o medo que toma conta de Sydney ao saber que a loucura do pai não era apenas uma neurose de guerra, e sim um traço da família, uma marca genética.

Creio que, ao longo destes cem anos, diminuiu bastante o pavor das pessoas de achar que a doença mental passa de pai para filho sempre, obrigatoriamente. Que todo filho de doente mental será necessariamente doente mental. A preocupação ainda existe, é claro, e isso é absolutamente natural – observo isso na minha própria família. Mas não impede que as pessoas tenham filhos – e, diacho, nascem filhos sem qualquer traço de doenças dos pais a dar com o pau…

Se todas as pessoas reagissem como Sydney, a população mundial não teria explodido ao longo deste século, e sim decrescido estupidamente…

Um registro necessário: A Bill of Divorcement não foi apenas o primeiro filme da extraordinária carreira dessa maravilha que é Katharine Hepburn. Foi também o primeiro de nada menos de dez filmes em que ela seria dirigida por George Cukor, esse realizador que passou para a História como o cineasta que entendia a alma das mulheres.

Desses dez, seis já estavam aqui neste site.

Vivendo em Dúvida/Sylvia Scarlett (1935),

Boêmio Encantador?Holiday (1938),

Núpcias de Escândalo/The Philadelphia Story (1940),

A Costela de Adão/Adam’s Rib (1949),

A Mulher Absoluta/Pat and Mike (1952),

O Coração Não Envelhece/The Corn is Green (1979).

Ficam faltando apenas três:

As Quatro Irmãs (1933),

O Fogo Sagrado (1942),

Amor Entre Ruínas (1975).

Uma atriz de “personalidade ousada e única”

O livro The RKO Story traz o seguinte sobre o filme:

“A peça de Clemence Dane A Bill of Divorcement é memorável pela estréia de Katharine Hepburn assim como por outras razões. O grande astro John Barrymore (na foto acima) interpretava um homem que havia sido confinado em uma instituição mental por 25 anos (opa: são 15…), mas escapa no dia em que sua mulher (Billie Burke) se divorcia dele (epa: não se fala que é no mesmo dia…). A interpretação de Barrymore para o diretor George Cukor foi contida e comovente – uma evidência sólida de quão soberbo o ‘grande perfil’ podia ser quando bem tratado e com um papel desafiador. Mas a história real se centrava em Hepburn como a filha de Barrymore. Com a sua compreensão de que há doença mental na sua família, e que a única coisa que sobra para ela é abrir mão de seu amor (David Manners) e não ter filhos, o filme se transformou em uma tragédia emocional que foi tornada dolorosamente crível por essa personalidade ousada e única. Tinha havido sérias dúvidas entre os chefes da RKO sobre as habilidades da srta. Hepburn antes que o filme fosse feito. Ela apagou as dúvidas com sua performance, embora se duvide que nem mesmo David Selznick tenha sonhado que ele estaria lançando a carreira de uma das maiores atrizes da História do Cinema.”

Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Barrymore tem uma interpretação sensível como homem solto de instituição mental que retorna para a esposa Burke e fica conhecendo sua filha pela primeira vez. Datado, mas vale a pena ser visto: notável pela estréia de Hepburn nas telas. Refeito em 1940.”

Aqui, o que diz Pauline Kael:

“O diálogo tem o som rangente de teatro classudo, super civilizado; o filme foi pouco adaptado da peça de Clemence Dane sobre pai e filha condenados por insanidade hereditária – o tipo de peça em que a filha tem o nome de Sydney Fairchild, seu pai de Hilary Fairchild, e o namorado da filha Kit. Katharine Hepburn, em sua estréia no cinema, era algo que jamais havia sido visto na tela. Não que ela fosse boa, exatamente (na verdade, sua atuação era horrível), mas ela era tão angular e educada, com sua boca com uma cicatriz de sofrimento, que ela ficava incrível. E John Barrymore, que interpreta o pai, tinha uma atuação incrível – embora seu papel aqui seja melancolicamente subserviente. O jovem George Cukor dirigiu, no estilo apropriado ao material. Com David Manners (Kit, é claro), Billie Burke, Elizabeth Patterson, Paul Cavanagh e Henry Stephenson. RKO.”

Ai, ai. “Sua atuação era horrível”? Ah, dona Kael, vá catar o caminhãozinho de lixo do qual a senhora caiu…

Anotação em março de 2023

Vítimas do Divórcio/A Bill of Divorcement

De George Cukor, EUA, 1932 

Com John Barrymore (Hillary Fairfield),
Billie Burke (Margaret Fairfield),
Katharine Hepburn (Sydney Fairfield, a filha),

David Manners (Kit Humphrey, o namorado de Sydney), Paul Cavanagh (Gray Meredith, o noivo de Margaret), Elizabeth Patterson (tia Hester), Henry Stephenson (doutor Alliot), Gayle Evers (Bassett, a empregada), Julie Haydon (convidada na festa)

Roteiro Howard Estabrook, Harry Wagstaff Gribble

Baseado na peça de teatro de Clemence Dane

Fotografia Sid Hickox

Música Max Steiner

Montagem Arthur Roberts

Direção de arte Carroll Clark

Maquiagem Mel Burns

Figurinos Josette De Lima

Produção David O. Selznick, RKO Radio Pictures.

P&B, 69 min

***

 

2 Comentários para “Vítimas do Divórcio / A Bill of Divorcement”

  1. John Barrymore foi um dos grandes das telas. Aqui no Brasil, há muito tempo anda esquecido, mas era e é do porte de Spencer Tracy, Charles Laughton, Laurence Olivier, Fredric March, Marlon Brando, James Cagney, Lon Chaney, Montgomery Clift…

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