O Vendedor de Passados

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 12/2021.)

Deu-se muito bem o produtor, diretor, roteirista, documentarista, um dos criadores da Conspiração Filmes, Lula Buarque de Hollanda, neste O Vendedor de Passados, seu segundo filme de ficção, de 2015.

É um drama com tons de mistério e uma pitada de fantasia; a trama é  interessante, fascinante mesmo; fotografia e direção de arte são impecáveis, e o elenco é ótimo – Lázaro Ramos e Alinne Moraes nos papéis centrais, mais Odilon Wagner e uma participação especial da grande dama Ruth de Souza.

Mas, sobretudo, a ficção desse dedicado documentarista tem uma qualidade especial: ela parte de grande, maravilhoso, genial achado – a fantástica, incrível profissão de Vicente, o protagonista da história, interpretado por Lázaro Ramos.

Como mostra o título atraente, simpático, um tanto enigmático, Vicente vende passados.

E o que não falta é freguês. Quando a personagem interpretada pela bela Alinne Moraes toca a campainha da sua casa, Vicente a princípio negaceia: – “Só atendo com hora marcada”, diz.

Está cheio de gente querendo um passado novo. Um passado melhor mais charmoso, mais rico, mais feliz que o verdadeiro,.

E Vicente – o espectador vai vendo isso ao longo das primeiras sequências do filme – é muito bom de serviço. Na verdade, é muito mais que um vendedor: é um criador de passados.

Ele cria, bola, inventa um passado para o freguês, baseado em algumas informações que obtém dele. Depois passa a construir, meticulosamente, cuidadosamente, as lembranças daquele passado fictício: fotos, cartas, anotações…

É um senhor talento, um mestre nessa arte da qual boa parte dos espectadores, posso garantir, jamais tinha ouvido falar, jamais poderia ter imaginado.

Com itens antigos e o Photoshop, ele faz milagres

E nós, espectadores, vemos como Vicente trabalha.

É um colecionador de itens antigos – roupas, acessórios, aparelhos. Aparelhos de rádio, por exemplo, televisores, máquinas fotográficas, bolsas, álbuns de fotos, exemplares de revistas, jornais velhos – tudo isso são peças fundamentais para o trabalho do criador de passados.

Vicente frequenta feiras que vendem essas peças de antiguidade no Rio de Janeiro.

Ah, sim, não havia mencionado isso antes. Vicente, como o diretor do filme, vive no Rio de Janeiro. Toda a ação se passa naquela cidade de deslumbrante beleza.

De nada serviriam as pequenas antiguidades que cata aqui e ali se ele não fosse também um excelente usuário do PhotoShop.

Ao juntar itens antigos com o trabalho no PhotoShop, Vicente produz provas de que o freguês de fato viveu aquilo que na verdade não viveu. Produz uma memorabilia de algo que nunca existiu.

(Memorabilia. Adoro essa palavra…)

O filme nos mostra, com alguns detalhes, o caso de Ernani (Anderson Muller) – e com esse exemplo podemos ter uma ótima idéia sobre como as coisas funcionam entre os clientes e Vicente. Ernani sempre foi gordo, desde criança. Quando apresentou os dados básicos de sua história de vida para Vicente, contou que, aos 8 anos, pesava 60 quilos. Aos 14, tinha 90. Aos 16, 130 quilos. Passou uns 20 anos sem sair de casa. Mas a família tinha meios, e então ele fez operação bariátrica, passou a ter um corpo absolutamente aceitável para os mais rigorosos padrões que exigem magreza. Só não tinha um passado que pudesse contar para uma eventual namorada…

E então Vicente criou um belo passado para o agora ex-gordo Ernani. Em vez de ele ser, ali pelos 45 anos, um virgem, que jamais tinha sequer feito carinho em uma mulher na vida, graças a Vicente ele passou a ser um divorciado – com fotos do casamento, fotos da lua de mel em Paris…

E aí chega, bem no início da narrativa, a personagem interpretada por Alinne Moraes. Toca a campainha da casa de Vicente, ele tinha sido indicado por um cliente. A princípio ele negaceia, como já foi dito – só atende com hora marcada. Ah, diabo, mas pra uma moça bonita, por que não abrir uma exceção, né mesmo?

Vicente pede a ela que conte sobre sua vida, que diga que tipo de passado ela gostaria de ter…

A moça não quer dizer coisa alguma. Não quer falar um a sobre sua vida passada, não quer sequer dizer seu nome. Só tem uma exigência: gostaria que no seu passado a ser adquirido ali com Vicente ela tivesse cometido um crime.

Profissões estranhas em belos filmes

Um sujeito que inventa passados e vende para o freguês! Mas que idéia extraordinária, que maravilha!

Fiquei absolutamente encantado com essa sacada genial – e depois, nos dias seguintes, antes de escrever esta anotação, pensei em Relatos do Mundo/News of the World (2020), de Paul Greengrass. O protagonista desse belo western, o Capitão Jefferson Kyle Kidd, interpretado por Tom Hanks, é um contador de notícias de jornal. Ganha a vida indo de cidadezinha em cidadezinha do Texas, ali por 1870, para ler para as pessoas, reunidas em algum celeiro de fazenda, as notícias dos últimos dias contadas nos jornais.

Eu nunca tinha ouvido falar nessa profissão – um sujeito que ganha uns trocados para ler para pessoas que não lêem jornais, em geral pessoas que sequer sabem ler, os relatos do mundo, the news of the world. Talvez tenha de fato havido, no Velho Oeste, ou no Sul profundo, ou no Texas, ali por 1870, os contadores de notícias de jornal.

Me ocorreu que havia pontos em comum entre o Capitão Kidd interpretado por Tom Hanks e o Lorde Cigano de José Wilker em Bye Bye Brasil. Embora um distribua sonhos e o outro fale de coisas reais, notícias, relatos do mundo, os dois dependem, para ter sucesso, da ignorância de suas platéias. Precisam que as cidades que visitam sejam pequenas, que não recebam jornais, que sejam isoladas do resto do mundo. Precisam que haja nas cidades que visitam gente iletrada, gente muito humilde, gente de pouca ou nenhuma educação.

Vendedores de sonhos, de ilusões, artistas de variedades, gente de circo mambembe como o Lorde Cigano de José Wilker sempre existiram e existem aos milhares, no mundo todo.

Contador de notícias de jornal, como o Capitão Kidd de Tom Hanks, isso aí sei lá se de fato houve, ou se foi só a criação da imaginação louca de um escritor.

Agora, criador e vendedor de passados, isso eu tenho certeza: isso nunca existiu na vida real. Isso saiu da cabeça de um inventor de histórias.

Quem criou a história foi a roteirista Isabel Muniz

A figura do vendedor de passados é uma criação do escritor angolano José Eduardo Agualusa. O romance O Vendedor de Passados foi lançado em 2004 – mas é interessante notar que, fora o ofício, a profissão, há muito pouco em comum entre o carioca Vicente do filme e o Félix Ventura do livro.

A ação no livro se passa em Luanda, durante a guerra civil que se iniciou em 1975, com o fim do domínio português sobre o país africano. Os três grupos armados que haviam lutado pela independência – MPLA, FNLA e Unita – passaram a disputar o poder, num conflito sangrento que se prolongaria por várias décadas.

Entre os clientes que procuram Félix Ventura em busca de um passado idealizado, heróico, honroso, estavam empresários, políticos, generais. Muito diferentemente do Vicente do filme – um rapaz de muitos amigos, bonito, simpático, atraente, festeiro –, Félix Ventura, albino, não tem contato com mulheres, é uma pessoa solitária. Sua única companhia é Eulálio, uma lagartixa – ou osga, palavra mais usada no Português de Portugal. Eulálio é o narrador da história.

Do romance de José Eduardo Agualusa, pelo que pude perceber, o filme tirou apenas o título e o ofício do protagonista. Todo o resto da história é diferente.

Assim, a trama do filme é mesmo de autoria de Isabel Muniz, que assina o roteiro. Isabel escreveu roteiros de várias produções da Globo; junto com Paula Amaral e Heloísa Périssé foi a autora do seriado Segunda Dama (2014). Participou da criação e da elaboração dos roteiros de Sob Nova Direção (2005-2007), Cheias de Charme (2012), Geração Brasil (2014) e Haja Coração (2016).

É dela também a peça infantil A Mulher que Matou os Peixes e Outros Bichos.

Assim, pelo que se pode perceber, saiu da cabeça de Isabel Muniz tudo o que envolve a segunda personagem mais importante da história, a jovem e bela mulher que encomenda a Vicente um passado que inclua um crime – e não fornece a ele sequer seu nome.

Vicente dá a ela o nome de Clara – e, como inventa que ela nasceu na Argentina, filha de casal que combatia a ditadura militar, seu sobrenome será Ortega. Clara Ortega, argentina filha de militantes políticos, que mais tarde foi viver em Curitiba.

Clara Ortega-Alinne Moraes adora o passado que Vicente inventa para ela. Adora tanto que resolve escrever um livro de memórias. E o livro (no que me parece um ponto ruim da trama criada por Isabel Muniz) tem um tremendo sucesso, não só no Brasil como também na Argentina, o que causa uma série de problemas.

Se comete esse tropeço (na minha opinião) sobre o sensacional sucesso da autobiografia fajuta de Clara Ortega, a criadora Isabel Muniz acerta em cheio ao fazer com que esse Vicente criador de passados desconheça o seu próprio passado, sua origem.

É uma grande sacada.

Vicente foi adotado bem criança por um casal branco. A diferença na cor da pele sempre deixou evidente para ele a condição de adotado – e, como a imensa maioria das pessoas adotadas, na vida real e na ficção, Vicente tem um eterno e profundo desejo de saber sobre seus pais biológicos.

Quando finalmente fica sabendo mais sobre sua origem, tem um choque apavorante. Mas revelar mais que isso seria spoiler.

Um documentarista bom na ficção

Antes deste O Vendedor de Passados, Lula Buarque de Hollanda havia dirigido apenas um outro longa de ficção – e não poderia ser mais distante deste segundo aqui. A estréia havia sido numa comédia, Casseta & Planeta: A Taça do Mundo É Nossa, de 2003. Na trama deliciosa, criada pelo pessoal do Casseta & Planeta (Beto Silva. Bussunda, Cláudio Manoel, Hélio de la Peña, Hubert Aranha, Marcelo Madureira), militantes comunistas, no período da ditadura militar, tentam roubar a Taça Jules Rimet.

Lula tem grande ligação com música. Dirigiu e produziu documentários com Milton Nascimento, Gilberto Gil, Marisa Monte. Em 2008, realizou O Mistério do Samba (2008), sobre a Velha Guarda da Portela. Em 2000 havia feito o documentário Pierre Fatumbi Verger: Mensageiro Entre Dois Mundos.

Deveria fazer mais filmes de ficção. Neste O Vendedor de Passados aqui demonstra ser competente, talentoso e um ótimo diretor de atores.

Ah, sim. Fiquei curioso para saber o parentesco entre Lula e Chico, e então imagino que o eventual leitor também fique. Ele é primo em segundo grau do compositor, por parte de seu pai, Luiz Buarque de Hollanda.

Anotação em dezembro de 2022

O Vendedor de Passados

De Lula Buarque de Hollanda, Brasil, 2015

Com Lázaro Ramos (Vicente),

Alinne Moraes (“Clara”)

e Mayana Neiva (Stela), Ruth de Souza (Dona Célia), Odilon Wagner (Jairo), Débora Olivieri (Sonia), Patrícia Araújo (travesti), Marcelo Escorel (Heitor), Anderson Muller (Ernani), Carol Fazu (Mila), Giselle Motta (Luana), Pedro Brício (Davi), Isabella Masiero (âncora da TV),

Fábio Ferreira Dias (Leon Kauffman)

Roteiro Isabel Muniz

Inspirado no livro homônimo de José Eduardo Agualusa

Fotografia Toca Seabra

Montagem Natara Ney

Figurinos Leticia Barbieri

Produção Eliana Soárez, Conspiração Filmes.

Cor, 100 min (1h40)

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