Let Them All Talk

2.5 out of 5.0 stars

(Disponível no HBO Max em julho de 2021.)

Há duas maneiras de se fazer uma sinopse de Let Them All Talk, que Steven Soderbergh rodou em 2019 e lançou em dezembro de 2020, na HBO Max. Antes, porém, gostaria de comentar que tem sido uma moda, uma praxe nessas grandes plataformas de streaming lançar os filmes no Brasil sem título em Português, apenas com o título original.

Acho meio esquisito isso – mas de fato é uma moda, uma tendência, uma praxe.

Deixe Todos Eles Falarem, literalmente.

Um título perfeito para o filme. Serve como uma luva. Por que não dar o título na língua do país?

Aqui vai a sinopse normal, tradicional – inspirada na primeira frase da curtíssima sinopse que está no IMDb, com muitos acréscimos meus:

Uma famosa escritora (o papel de Meryl Streep) embarca no transatlântico Queen Mary 2 para fazer a travessia Nova York-Southampton com duas amigas (interpretadas por Candice Bergen e Dianne Wiest) e um sobrinho (Lucas Hedges). Vai à Grã-Bretanha para receber um prêmio literário importantíssimo e visitar o túmulo de uma escritora galesa por quem tem imensa admiração. Resolveu convidar as duas grandes amigas do tempo da faculdade para se reaproximar delas, ao mesmo tempo em que pretende usar várias horas no navio para escrever seu novo romance.

Uau! Até algum tempo atrás eu simplesmente não conseguia fazer sinopses assim sintéticas. Será que estou aprendendo?

Bem. O outro tipo de sinopse seria assim:

Em agosto de 2019, o absolutamente incansável Steven Soderbergh embarcou em Nova York com um pequeno grupo de atores – creio que apenas sete – e uma equipe de técnicos muito provavelmente também bem reduzido no Queen Mary 1, com destino a Southhampton. Fazia parte da equipe também a atriz Deborah Eisenberg, autora do roteiro do filme que teria a imensa maior parte de suas sequências rodadas ali, durante a travessia do Atlântico ao longo de de duas semanas.

Era uma viagem absolutamente rotineira do transantlântico, e os passageiros não foram avisados de que um filme estaria sendo rodado ali, e que alguns deles apareceriam como extras.

Havia, claro, as diretrizes básicas de uma história, uma trama, uma definição de que tipo de pessoa era cada personagem. Mas os quatro atores centrais – já mencionados, todos ótimos, dois deles vencedores de Oscar, os outros dois indicados ao prêmio – foram incentivados pelo diretor a improvisar suas falas.

Let Them All Talk. Deixe todos eles falarem.

E Meryl Streep, Candice Bergen, Dianne Wiest, o jovem Lucas Hedges e mais Gemma Chan, que ainda não foi citada aqui, danaram a falar.

Meu Deus do céu e também da Terra, como falam esses personagens interpretados pelos cinco atores!

Falam demais, o tempo absolutamente todo.

Às vezes falam coisas sérias, importantes. Mas também falam muita bobagem, muita coisa sem qualquer importância, muita abobrinha. Exatamente como na vida real. Na vida real, as pessoas falam muita abobrinha mesmo, coisa sem importância, coisa boba, coisa sem sentido – ou coisa que só interessa mesmo a quem fala. Nós todos tendemos a falar muito de nós mesmos.

E então Let Them All Talk é assim: Soderbergh disse para os atores que eles podiam falar, podiam improvisar à vontade – e então temos que os personagens falam, falam, falam, falam, falam sem parar, durante quase todos os 113 minutos do filme.

O filme ganha o recorde olímpica de palavras

Há muito o que fazer num transatlântico absolutamente sensacional – o filme mostra, isso até com alguma insistência. Tanta insistência que fica até parecendo que Soderbergh na verdade está fazendo um comercial da Cunard Line tamanho longa-metragem. Quem já fez alguma viagem de cruzeiro sabe muito bem disso, e quem não fez pode muito bem imaginar. Há salas para tudo quanto é atividade – desde uma piscina majestosa (em que Alice, a escritora, o papel de Meryl Streep, se exercita disciplinadissimamente todos os dias), até uma biblioteca de fazer inveja até mesmo a bibliotecas de cidades grandes, passando por salões de jogos, academias de ginástica e todo tipo de bar.

Mas o que as pessoas mais fazem, quando estão juntas, e não estão necessariamente trabalhando, a não ser falar?

E então os personagens falam. E falam, e falam, e falam.

Usei o termo abobrinha, gíria específica do Português falado no Brasil, não sei se só no Sudeste. Em inglês há a termo “small talk”, que Bob Dylan usou em “Visions of Johanna”, sua canção de 7 minutos e meio. Conversinha, conversinha sobre assuntos sem importância. Let Them All Talk tem bastante small talk.

Os críticos de língua inglesa gostam de usar o adjetivo talkative para designar os filmes em que se fala demais. Talkative – cheio de fala, em que se fala muito.

Cada 7 minutos e meio de Let Them All Talk consegue ter mais palavras do que “Visions of Johanna” – o que, convenhamos, é uma proeza, algo que merece um prêmio olímpico.

Nem tudo é improviso, avisa o diretor

Parece que se espalhou que quase tudo no filme é pura improvisação. A crítica no site Roger Ebert.com, por exemplo, cita que se falou que o filme reunia “quase inteiramente sequências improvisadas” – mas afirma que provavelmente isso era um exagero.

O IMDb afirma com todas as letras que houve um exagero nessas afirmações. Transcrevo o que diz o maravilhoso site enciclopédico literalmente:

“Ao contrário de relatos de que todos os diálogos foram improvisados, o diretor Steven Sodebergh explicou que havia muitas sequências chave ao longo do filme que seguiam completamente o roteiro, enquanto outras sequências escritas como prosa por Deborah Eisenberg foram improvisadas pelos atores, e foram em seguida revisadas por ela. Soderbergh chamou isso de ‘improvisação altamente estruturada’, e estimou que houve 70% de (sequências) improvisadas contra 30% de diálogos previamente escritos no roteiro.”

Uau! 70% de toda aquela abobrinha que ouvimos foi então criada pelos atores ali no momento da filmagem, enquanto o Queen Mary 2 avançava pelo Atlântico Norte fazendo a rota inversa ao do Titanic, sem, felizmente, encontrar iceberg pelo caminho!

Uau!

Que capacidade improvisatória de abobrinha têm esses atores, hein, siõ?

Magníficas atrizes na glória dos 70 anos

Mas são grandes atores. Essa é que é a verdade dos fatos.

Vamos deixar os jovens de lado, esse garoto Lucas Hedges, 24 de idade em 2020, ano de lançamento do filme, e essa bela Gemma Chan que tinha 38 anos quando interpretou essa Karen do filme. Vamos deixar de lado que Lucas Hedges tem 15 prêmios fora 67 indicações, inclusive uma ao Oscar, por Manchester à Beira-Mar (2016). E que Gemma Chan tem 45 títulos na filmografia, dois prêmios, fora sete outras indicações.

E concentrar em Meryl Streep, Candice Bergen, Dianne Wiest. Meu Deus do céu e também da Terra! Que atrizes!

Meryl é Alice, a escritora famosa, respeitada, que mora em Nova York. Candice é Roberta, e em 2019, quando é convidada por Alice para ir à Grã-Bretanha de navio, mora em Dallas, Texas (creio). Havia passado por um divórcio problemático e ficado inteiramente sem dinheiro; trabalhava como vendedora na seção de lingerie de uma loja de departamentos. Dianne é Susan, que mora em Seattle, advoga para presas que foram libertadas em condicional, e precisam respeitar uma série de exigências da Justiça para não voltarem à prisão.

Foram amigas durante a faculdade, as três – as maiores amigas, as amigas irmãs. Depois se afastaram, se distanciaram.

Meryl, Candice e Dianne poderiam ter sido colegas de faculdade? Fiquei pensando nisso enquanto via o filme, e ouvia as três atrizes maravilhosas falarem sem parar. Vou checar agora.

A rigor, a rigor, poderiam, sim. São da mesma geração. Dianne e Candice são de 1946 – estavam, portanto, com 74 anos quando o filme foi lançado, e só isso já é uma maravilha, Steven Sodebergh oferecer a essas atrizes os principais papéis em um de seus filmes. Meryl é a mais jovem delas, da classe de 1949. Sim, são da mesma geração, poderiam mesmo ter sido colegas de faculdade – apesar de serem, elas, as atrizes, cada uma de uma parte do país continental, assim como suas personagens. Meryl é de uma pequena cidade de Nova Jersey, Costa Leste. Candice é da segunda maior metrópole do país, Los Angeles, Costa Oeste. Dianne é do interiorzão do país, Kansas City, Missouri.

Não é um filme ruim. Mas a verdade é que é fraco

Atrizes maravilhosas, personagens nada disso.

As atrizes são a melhor coisa do filme. Os personagens, a pior.

A escritora Alice, a advogada altruísta Susan, a vendedora Roberta não são personagens bem construídos. Ao menos foi o que me pareceu.

São, quando muito, arquétipos. Tipos. Ou rascunhos. Não são gente como a gente.

OK, tudo gira em torno de Alice, a escritora, e de Alice até o filme tenta traçar um perfil. Uma escritora de imenso sucesso, que se considera – como a maioria dos artistas, em especial os escritores – o absoluto centro do mundo.

E é só o que ficamos sabendo dela.

Foi casada alguma vez? Teve alguma relação afetiva importante na vida? Que tipo de relação tinha com o irmão, o pai do seu sobrinho, o único parente que parece ter na vida?

O filme não diz nada. Nadica.

Por que, afinal de contas, Roberta, tendo feito faculdade, tendo se formado em Direito, acabou virando vendedora de lingerie numa loja de departamentos? Mais ainda: que tipo de segredo de sua vida íntima um dos livros de Alice teria revelado que estragou seu casamento com um homem rico, e a deixou sem um tostão furado?

Nada. Nadica.

OK, Susan é uma believer, uma mulher que, passados os 70 anos, ainda trabalha pela justiça, pelo que é certo. Mas… como é a vida pessoal dela? Quem ela é, afinal?

Nada. Nadica.

Este Let Them All Talk não é, evidentemente, um filme ruim. Steven Soderbergh simplesmente não conseguiria fazer um filme ruim.

Temos o prazer de ver essas três atrizes maravilhosas, Meryl, Dianne, Candice. Eu tive o prazer de conhecer essa garota Gemma Chan, bonita e talentosa.

Há coisas gostosas, é claro. Vou dar dois exemplos:

* O ciúme que Alice, escritora de “literatura séria”, sente de Kelvin Kranz (o papel de Daniel Algrant), o escritor de livros policiais de quem ela jamais tinha ouvido falar e, no entanto, é muitíssimo mais famoso do que ela. As pessoas pedem autógrafo para Kelvin Kranz; as próprias amigas de Alice, Susan e Roberta, são leitoras vorazes de tudo que ele escreve;

* O personagem um tanto misterioso que está sempre sentado junto da piscina quando Alice se exercita. O homem é bonito, elegante, sempre de expressão severa, e, enquanto Alice nada na piscina, lê a Ilíada de Homero. É interpretado por John Douglas Thompson, que vimos recentemente como o chefe de polícia de Easttown na série Mare of Easttown. Tyler, o sobrinho de Alice, acha que aquele senhor está sempre saindo da cabine da escritora bem de manhã. O espectador fica em dúvida: será que Alice de fato está tendo um caso com aquele sujeito que lê Homero? Ou é apenas coincidência o fato de que ele está passando pelo corredor nos momentos em que Tyler vai à cabine da tia?

Só ficaremos sabendo quem o homem é bem ao final da narrativa.

Então: ruim, o filme não é.

Mas também não é um filme bom. De forma alguma. Assim que o termina, o espectador tem todo o direito de se perguntar, como Mary e eu nos perguntamos: … Hum… Mas o que mesmo ele queria dizer?

Steven Soderbergh trabalha demais.

Além de dirigir – reger toda a orquestra, organizar tudo –, ele próprio costuma ser o diretor de fotografia e também o montador de seus filmes. Os créditos finais deste Let Them All Talk dizem que a fotografia é de Peter Andrews e a montagem de Mary Ann Bernard. Nada. Essas pessoas não existem – são pseudônimos de Soderbergh.

Em 36 anos, entre 1985 e 2021, o cara dirigiu 46 títulos e produziu 56. Vários dos longa-metragens que dirigiu, desde sexo, mentiras e videotape, de 1989, são grandes filmes.

Mas não dá para acertar cem por cento o tempo todo. Simplesmente não dá.

Anotação em julho de 2021

Let Them All Talk

De Steven Sordebergh, EUA, 2020

Com Meryl Streep (Alice), Dianne Wiest (Susan), Candice Bergen (Roberta), Lucas Hedges (Tyler, o sobrinho), Gemma Chan (Karen, da editora), John Douglas Thompson (Dr. Mitchell), Daniel Algrant (Kelvin Kranz, o escritor de livros policiais)

Fotografia Steven Soderbergh (com o pseudônimo de Peter Andrews)

Música Thomas Newman       

Montagem Steven Soderbergh (com o pseudônimo de Mary Ann Bernard)

Casting Carmen Cuba   

Direção de arte Andy Eklund  

Figurinos Ellen Mirojnick

Produção Gregory Jacobs

Cor, 113 min (1h53)

**1/2

6 Comentários para “Let Them All Talk”

  1. Sergio, sobre o que falam tanto essas mulheres? Fiquei curiosa mas com enorme preguiça de assistir. Adoro as atrizes mas não me animei!

  2. Abobrinha, Stella. Pelo que eu me lembre, elas falam abobrinha. Coisas sem importância. Algumas lembranças do passado, casos, histórias delas no passado, experiências. E fofocas, abobrinhas…

    Um abraço!

    Sérgio

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *