La Femme aux Bottes Rouges

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(Disponível no Cine Antiqua do YouTube 2/2022.)

Há poucas coisas mais belas de se ver no mundo do que Catherine Deneuve em 1974, aos gloriosos 29 aninhos. Da mesma forma, há poucos filmes menos arrasadoramente doidões, maluquetes, ilógicos e nonsense do que este La Femme aux Bottes Rouges que Juan Luís Buñuel perpetrou sete anos depois que seu pai, o grande mestre do anti-realismo, filmou La Deneuve em Belle de Jour.

La Femme aux Bottes Rouges – ou La Ragazza com Gli Stivali Rossi, como mostram os créditos iniciais da cópia que está disponível para todos no Cine Antiqua do YouTube. Ou La Mujer con Botas Rojas – é uma co-produção França-Itália-Espanha. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, foi The Woman in Red Boots. Não teve título no Brasil, porque, aparentemente, não foi lançado no circuito comercial por aqui.

Sim, a personagem de Catherine Deneuve usa grandes botas vermelhas durante a imensa maior parte do tempo em que aquela mulher de beleza gloriosa aparece em cena. Agora, quanto à importância desse detalhe na trama, na história, no que o filme quer dizer… Isso aí é zero.

Bom, mas também… Que trama? Que história?

Difícil dizer. Muito difícil dizer.

A história, os diálogos e o roteiro foram criados a nada menos de 12 mãos; são assinados por Juan Luis Buñuel, Roberto Bodegas, Jean-Claude Carrière, Pierre-Jean Maintigneux, Colette Crochot e Clement Biddle Wood. Vários desses nomes não me dizem nada, mas é fundamental destacar que Jean-Claude Carrière, que morreu ano passado, 2021, aos 90 anos de idade, é um dos mais importantes roteiristas do cinema mundial. Foi colaborador, entre outros grandes, de Andrzej Wajda, Milos Forman, Philip Kaufman, Hector Babenco e, sobretudo, de Luís Buñuel. Além dos roteiros de vários filmes do mestre rebelde, foi também o autor da bela autobiografia Mi Ultimo Suspiro. “Yo no soy hombre de pluma”, diz Buñuel na abertura da obra. “Tras largas conversaciones, Jean-Claude Carrière, fiel a cuanto yo le conté, me ayudó a escribir este libro.”

Sei lá que erva ou que ácido Carrière e esse punhado de gente usou enquanto bolava este La Femme aux Bottes Rouges, mas o resultado é muito, mas muito doidão.

É um desafio, mas vou tentar narrar aqui um pouco do que acontece no início do filme. Eu gosto de narrar os inícios dos filmes, fazer o quê? Cada qual com sua mania, cada loco con su tema, como diz o Juan Manuel Serrat. Nem todo espanhol é doidão que nem os Buñuel.

O milionário olha um quadro – e desmaia!

Enquanto vão rolando os créditos iniciais, a câmara está colocada em um carro que anda no meio de uma grande cidade. Paris, certamente – mas é interessante que os realizadores optaram por não mostrar, nessa longa sequência inicial, nenhum prédio ou monumento que permita que qualquer pessoa identifique Paris. Diacho… Será Madri?

Não importa.

Toca o telefone. O passageiro do carro atende, e começa a dar ordens: “Transferir US$ 300 mil para Zurique. Converter para dólares. Fique de olho no mercado de ouro amanhã. Compre 4 mil ações. Você tem notícias sobre o petróleo do Mar do Norte?”

OK, dá para o espectador mais desatento perceber: o passageiro do carro em movimento na grande cidade é um milionário, um capitalista. Logo, na lógica de boa parte do cinema francês e do italiano, um safado filho da mãe.

Tomada do motorista, boné, terno impecável. O carro pára em fila dupla, o motorista sai, dá a volta, abre a porta de trás – e aí vemos pela primeira vez o milionário capitalista safado filho da mãe, na figura de Fernando Rey, ator de vários filmes de Buñuel pai, inclusive Tristana, Uma Paixão Mórbida (1970), ao lado também de Catherine Deneuve.

O personagem chama-se Perrot, assim, sem prenome, e, como é um milionário capitalista safado filho da mãe, veste-se como tal – gravata, terno, sobretudo, luvas, chapéu, bengala, uma fortuna só ali nas roupas e acessórios que daria para alimentar famílias inteiras durante anos.

O motorista, Clébert (o papel de José Sacristán), que, conforme veremos, é mais que isso, é o faz-tudo, o secretário particular de Perrot, diz a ele: – “Não entre, senhor. É muito cedo ainda. Ou, então, deixe-me acompanhá-lo.”

Perrot encosta a mão no peito do seu empregado, tipo “fica quieto”, e entra na Galerie Betica – o nome está bem visível.

Ele entra na galeria de arte absolutamente vazia àquela hora da manhã. Seu auxiliar fica parado na calçada, olhando pela porta de vidro, observando o patrão. Logo retira do bolso uma faixa de pano preta. Já prevê o que vai acontecer.

E acontece: Perrot olha um quadro. Olha – aí faz uma cara de quem está tendo um troço, e tibum, cai no chão!

Um funcionário da galeria surge, se dirige ao homem caído no chão, ao mesmo tempo em que o empregado também chega perto dele. O funcionário faz menção de chamar uma ambulância, o empregado diz que não é necessário – e já vai colocando a faixa de pano preto como uma venda nos olhos de Perrot.

Os dois homens auxiliam Perrot a se levantar e a levá-lo de volta ao carro.

Assim que Perrot é colocado na poltrona traseira, Clébert dá um cartão ao sujeito da galeria: – “Envie os quadros para este endereço”. – “Que quadros?”, pergunta o funcionário, perplexo. – “Todos”, responde o secretário. “        Vou lhe enviar um contrato por escrito. Compraremos toda sua produção. Durante 20 anos”

Entra no carro, dá a partida. Pergunta se o patrão está melhor. Um Perrot ainda se recobrando responde: – “Um pouco. Não dormi bem na noite passada.”

Um passe de mágica, uma fantasia, o irerealismo

Corta, e vemos la femme aux bottes rouges.

Catherine Deneuve está descendo uma escadaria, os longos cabelos louros balançando. Usa botas, botonas, claro. Oito anos antes, o mundo inteiro havia ouvido Nancy Sinatra cantar que “these boots are made for walking, and that’s just what they’ll do, one of these days these boots are gonna walk all over you”. Botas femininas são um velho fetiche…

E La Deneuve usa botonas vermelhas. Mais jeans, um suéter grosso branco, uma grande echarpe marrom claro e um sobretudo marrom mais escuro.

Ela vem descendo a escadaria, rouba uns docinhos de um garoto vendedor de coisinhas para comer que havia parado um momentinho para descansar, e segue em frente.

Veremos que se chama Françoise (por coincidência, o nome de sua irmã, Françoise Dorléac, morta num acidente de carro em 1967 aos 25 anos de idade). Françoise LeRoi. Escritora. Na sequência seguinte ela está conversando com seu editor. Ele pergunta se ela tem um manuscrito novo – e é aí que a câmara do diretor de fotografia Leopoldo Villaseñor mostra pela primeira vez o rosto da deusa em close-up. Françoise LeRoi, em vez de responder se está trabalhando em um novo livro, responde que precisa de dinheiro. O editor diz que já pagou mais do que devia por seu livro Secrets – exatamente o livro que tínhamos visto com Perrot no carrão dele.

– “Isso que você está escrevendo não é fácil” – define o editor. “O público não compreende.”

– “O que eu posso fazer? É o meu estilo.”

Daí a pouco Françoise, a linda escritora que está precisando de dinheiro, está num café, com um jornal aberto na página de palavras cruzadas e passatempos – e no café está também o milionário Perrot, cujo secretário acabava de comprar todos os quadros existentes na Galerie Betica.

Françoise olha para Fernando Rey-Perrot com toda aquela pinta de ricaço. Ela se dirige até Perrot, e diz que, por cem alguma coisa, ela vai lhe mostrar quelque chose. Não consegui entender o que ela diz, mas a legenda fala em pesetas, cem pesetas. Estariam eles em Madri, então? Não importa.

Perrot: – “Você acreditaria que eu ainda sou curioso, na minha idade?”

Françoise, de pé diante dele: – “Curioso é possível, mesquinho é provável”.

Perrot enfia a mão num dos bolsos do paletó, pega uma carteira recheada, entrega uma nota à deusa que está à sua frente.

E aí – estamos com 6 minutos de filme – acontece o primeiro lance fantástico do filme, fantástico no sentido de fora da realidade, Irrealismo fantástico. Fantasia. Françoise LeRoi-Catherine Deneuve, de pé num café, diante de Perrot-Fernando Rey, fecha a capa, o sobretudo marrom. Em seguida abre a capa-sobretudo marrom e expõe para Perrot e para a câmara seu corpo peladinho de tudo. E fecha a capa-sobretudo de novo.

A visão do corpo nu de Françoise LeRoi-Catherine Deneuve (ou seria de uma dublê? Não sei), o chamado nu frontal, dura, sei lá, dois milésimos de segundo? Meio segundo? Não importa – importa é que aquilo é mágica, é irrealismo fantástico, porque, ao fechar e abrir a capa-sobretudo, ela num passe de mágica fez desaparecer o sutiã, a calcinha, o jeans, o suéter branco grosso, a echarpe.

Haverá logo em seguida dois novos personagens masculinos, um pintor (o papel de Jacques Weber) que mora com Françoise, mas não parece ser namorado, amante ou marido dela – parece mais um irmão, ou simplesmente um amigo –, e um editor, Marc (Adalberto Maria Merli), com quem Françoise vai estabelecer uma relação esquisita, a partir de cartas deixadas aqui e ali, e encontros furtivos.

Haverá, em especial, novas irrupções de irrealismo fantástico e sonhos que se misturam com a narrativa dos fatos teoricamente reais.

Mas me deu preguiça de continuar relatando. Chega.

“Uma romancista com poderes fantásticos”

O site AlloCiné, que tem tudo sobre os filmes franceses, não traz o que eles chamam de “segredos de filmagem” sobre este La Femme aux Bottes Rouges. Mas conseguiu algo que eu achava impossível: uma sinopse, um resumo da trama – e, pela sinopse que o site conseguiu fazer, fica parecendo até que existe uma trama, uma história com alguma lógica. Eis aqui:

“Um rico colecionador tem convulsões a cada vez que entra numa galeria de arte. No dia em que fica conhecendo Françoise, uma romancista com poderes fantásticos, sua vida é tomada por um turbilhão de desejo e onirismo. Ele a convida a escrever em sua mansão no campo.”

Poderes fantásticos. Sim, Françoise tem poderes fantásticos – mas a expressão em francês, pouvoirs fantasmatiques, parece mais fantástica, mais poderosa.

O Cinéguide, um guia que consegue a proeza de fazer sinopses curtíssimas, enxutíssimas, saiu-se assim:

“Um riquíssimo colecionador de arte escolhe uma mulher para ser a agente de seu destino” – e define o gênero do filme, corretamente como “Fantastique”.

O IMDb coloca o filme em três gêneros – comédia, drama e fantasia. A sinopse do maravilhoso site enciclopédico é um pouco mais detalhada que as duas que transcrevi anteriormente:

“Depois de um encontro casual com a escritora vanguardista Françoise, um milionário idoso começa a manipular a vida dela, puxando os fios também de Mark, um homem inocente e bem casado. Françoise, no entanto, é capaz de recordar visões do passado e evocar aparições sempre que tem vontade, e então quando o velho a convida e a Mark para sua mansão, ele verá que as coisas fogem ao seu controle.”

Em seu Dicionário de Cineastas, Rubens Ewald Filho afirma que Juan Buñuel (1934-2017) “não conseguiu sair da sombra do pai. Realizou fitas onde o fantástico invade a rotina cotidiana, mas sem audácia nenhuma na direção.”

Jean Tulard, em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, diz: “Tentou renovar o fantástico a partir do cotidiano. A irrupção do insólito no banal constituía o ponto alto de La Femme aux Bottes Rouges, que desconcertou o público francês.”

Mestre Jean Tulard anota que o filho de Luís Buñuel mostrou mais audácia em Leonor, de 1975, “uma bela história de vampiro, inspirada em Tieck, no interior de um cenário de peste e de loucas paixões”. Taí. Deu vontade de ver Leonor: o filme tem Liv Ullmann e Ornella Mutti!

Pode não ter conseguido sair da sombra do pai – e, diabo, sair da sombra de Luís Buñuel é dureza, é missão impossível. Mas que o cara conseguia as mais belas atrizes para os seus filmes, lá isso é verdade.

Anotação em 2/2022

La Femme aux Bottes Rouges

De Juan Luís Buñuel, França-Itália-Espanha, 1974

Com Catherine Deneuve (Françoise LeRoi),

Fernando Rey (Perrot)

e Adalberto Maria Merli (Marc, o editor), Jacques Weber (o pintor), José Sacristán (Clébert, o motorista e faz-tudo), Emma Cohen (Sophie, a mulher de Marc), Laura Betti (Leonore, a governanta de Perrot), Pilar Torres (Françoise LeRoi criança)

Argumento e roteiro Juan Luis Buñuel, Roberto Bodegas, Jean-Claude Carrière, Pierre-Jean Maintigneux, Colette Crochot, Clement Biddle Wood

Fotografia Leopoldo Villaseñor

Montagem Geneviève Vaury

Direção dearte Adolfo Cofiño

Produção Alfredo Bini, Procinex, Office de Radiodiffusion Télévision Française, Gerico Sound, Producciones Cinematográficas Logar

Cor, 95 min (1h35)

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