Depois de sete títulos baseados em fatos reais, entre 2010 e 2019, Clint Eastwood, do alto de seus 91 anos, voltou a realizar um filme que conta uma história de ficção com Cry Macho, de 2021. Os temas que ele aborda, no entanto, não mudam, são sempre os mesmos.
Antes de tudo, sobretudo, a paternidade, as relações entre pais e filhos; pais que não cuidaram bem dos filhos como deveriam, ou que continuam não cuidando.
A defesa da convivência pacífica, enriquecedora, entre pessoas de classes sociais diferentes, de etnias, países, línguas, costumes diferentes.
E aquela certeza de que os verdadeiros heróis, as pessoas de fato de coragem, não têm absolutamente nada a ver com os mocinhos dos westerns e os policiais durões e violentos que ele tantas vezes interpretou na juventude. Muito ao contrário: os heróis são as pessoas que não desejam a violência, as que cultivam o respeito aos demais seres à sua volta – sejam os tidos como racionais, sejam os que chamamos de irracionais.
Mike Milo, o protagonista de Cry Macho – seu filme número 39 como diretor, ao longo de 50 anos –, que ele mesmo interpreta, é um ex-campeão de rodeios que perdeu quase tudo na vida; teve uma queda que provocou um ferimento grave na coluna vertebral, a mulher e o filho morreram num acidente de carro. Mas conseguiu sobreviver às perdas e ao alcoolismo que veio com elas, e manteve e aprimorou sua capacidade de lidar bem com animais – não apenas cavalos, mas também cachorros, gatos, porcos.
A epopéia de ir ao México resgatar o filho do ricaço
Cry Macho abre com belas imagens.
Bem, na verdade, todo o filme é cheio de belas imagens, belas paisagens, tomadas gerais de amplos espaços ao ar livre, como os grandes westerns. Na abertura, especificamente, há belas imagens de uma paisagem um tanto outonal. O protagonista da história está dirigindo de seu rancho até a fazenda do patrão, Howard Polk (interpretado por Dwight Yoakam, na foto abaixo).
Uma voz bonita, forte, canta uma suave e tristonha música country que fala em “my share of mistakes”, meu quinhão de erros, em perdas, e na esperança de que nunca é tarde demais para encontrar um novo lar. Chama-se “Find a New Home”, e é de autoria de Mark Mancina, o autor da trilha sonora – o que indica que foi composta especialmente para a o filme, sob medida para a história do protagonista. O cantor, que eu não conhecia, se chama Will Banister. Bela voz, bela melodia, bela letra. Uma beleza de escolha de canção para abrir a narrativa.
E é interessante notar que o cara que faz o papel do patrão de Mike Milo, Dwight Yoakam, é famosíssimo cantor e compositor country; desde os anos 1980, gravou mais de 20 álbuns, vendeu mais de 30 milhões de discos e botou mais de 30 singles entre os mais vendidos de música country nas listas da Billboard.
O espectador nunca vê por inteiro o rosto de Howard Polk, seu personagem, no entanto: em todas as cenas em que aparece, Howard Polk- Dwight Yoakam está com um chapéuzão de caubói enterrado na testa. Uma presença bem country num filme de um realizador que é muito mais chegado ao jazz.
Mas peço perdão por me desviar um pouco do relato.
No primeiro diálogo do filme, Mike é demitido de seu emprego de cuidador e treinador dos cavalos da fazenda de Howard Polk.
“Você está atrasado”, diz ele a Mike. “Quando tínhamos vencedores, eu temia perder você para a concorrência. Cinco vezes vencedor do All-American, e toda vez eu pensava: ‘Não vou conseguir manter o Mike. Alguém vai agarrá-lo.’ Mas isso foi há muito tempo, não? É. Foi antes do acidente. Antes dos comprimidos. Antes de bebida. Você olha para aquele celeiro agora e só vê cavalos de segunda categoria. Assim como meu treinador. Não tenho medo de te perder pra ninguém agora. Você não é uma perda pra ninguém. É hora de sangue novo.”
Antes desse diálogo, no momento em que Mike está chegando para o que seria seu último dia como empregado de Howard, tínhamos visto o número “1979” na tela. Pouco depois, um outro letreiro informa que estamos “um ano depois” – e Howard vai visitar Mike em seu rancho. Vai pedir a ele o favor de aceitar fazer um trabalho: ir até a Cidade do México, encontrar Rafael, o filho que ele teve com uma mexicana, e trazê-lo até os Estados Unidos.
Fazia anos que ele não via o filho, mas agora queria recompensá-lo pelos anos em que não cuidou dele. O menino, agora com 13 anos, tem sido abusado – esse é o argumento que Howard usa para convencer o ex-campeão nacional de rodeios a executar aquele trabalho.
O pagamento será alto, ele diz, como um argumento a mais. Mas o argumento principal é aquele – lá, o menino está sendo abusado. Ele quer recompensar o filho pelos anos em que o abandonou.
Recompensar o filho pelo abandono, pelo tempo em que não cuidou dele como deveria. São poucos os filmes de Clint Eastwood que não falam desse tema.
Esse encontro de Howard com Mike um ano depois de ter demitido o velho companheiro acontece bem no início dos 104 minutos do filme.
Cry Macho é o relato da epopéia de Mike Milo pelo México na tentativa de levar o garoto Rafael (o papel de Eduardo Minett) para o pai.
“Macho” é o nome do galo de briga que Rafael cria – o maior, ou talvez o único amor de sua vida.
Um roteiro que levou várias décadas para virar filme
Levar para as telas a história do veterano vencedor de rodeios que é contratado para resgatar no México o filho de um ricaço foi também uma epopéia.
O roteiro original com essa história foi escrito nos anos 1970 por N. Richard Nash (1913-2000), autor ou co-autor dos roteiros de 38 títulos, entre filmes e séries. Entre os roteiros que escreveu estão o de Lágrimas do Céu/The Rainmaker (1956), um drama estrelado por Burt Lancaster e Katharine Hepburn, e Porgy and Bess (1959), a adaptação para o cinema do famosíssimo musical da Broadway, dirigido por Otto Preminger, com Sidney Poitier, Dorothy Dandridge e Sammy Davis Jr. e música de George Gershwin.
N. Richard Nash teve seu roteiro de Cry Macho recusado duas vezes pela 20th Century Fox. Ele então retrabalhou a história, transformando-a num romance, que foi publicado em 1975 e recebeu boas críticas. Com o romance nas livrarias e a aprovação dos críticos nos jornais, ele novamente ofereceu seu roteiro original a diversos estúdios de Hollywood.
Em 1991, Roy Scheider foi escolhido para o papel central – mas o projeto acabou abandonado. Houve nova tentativa em 2011, com Arnold Schwarzenegger no papel de Mike Milo; seria a volta do grandalhão austríaco ao cinema, depois de ter sido governador da Califórnia – mas, mais uma vez, o projeto não foi em frente.
Até que acabou nas mãos de Clint Eastwood e sua produtora, a Malpaso Productions.
Os créditos finais afirmam que o roteiro é de Nick Schenk e
N. Richard Nash. Este último morreu em 2000, aos 87 anos. Nick Schenk já havia trabalhado duas vezes com Clint Eastwood – ele é o autor dos roteiros de Gran Torino (2008), baseado em história original de Dave Johansson, e de A Mula (2018), baseado em reportagens do New York Times de autoria de Sam Dolnick a respeito de um velhinho que trabalhou como mula para um cartel de drogas mexicano.
Assim, dá para inferir que Nick Schenk tenha feito uma ou outra modificação no roteiro deixado por N. Richard Nash, e dado a forma final ao que Clint Eastwood iria filmar.
Não é, na minha opinião, um grande roteiro. Há problemas um tanto sérios. Leta, a mãe do garoto Rafael (interpretada pela bela chilena Fernanda Urrejola, na foto abaixo), é uma personagem que não é nada bem construída. Muito ao contrário. Não dá para entender aquela personagem. Não dá para entender seu comportamento, suas motivações, sua posição na vida.
Todo aquele dinheiro que ela tem – mansão, um monte de empregados, capangas – é fruto dos investimentos feitos por Howard Polk no tempo em que estiveram juntos? É bem pouco crível.
O próprio garoto Rafael não me pareceu também um personagem bem construído. Não ficamos sabendo direito como ele vive, nem exatamente para onde canaliza sua rebeldia e agressividade, nem como é de fato sua relação com a mãe, nem quem é que o agride, maltrata, abusa.
Um belo encontro de dois velhos viúvos
No entanto, apesar desses problemas, que são graves, é um filme de muitas qualidades – ou não seria uma obra de Clint Eastwood.
Bem diferentemente de Leta, a mãe de Rafael, esse Mike Milo é um personagem muitíssimo bem desenhado. É aquele sujeito que já esteve no auge, no topo, teve fama e dinheiro, cinco vezes campeão nacional de rodeio, e depois perdeu tudo – a começar da mulher e do filho, mortos em acidente, e depois a dignidade. Mas sempre teve forças para recomeçar.
A relação entre Mike e seu empresário e depois patrão Howard Polk é interessantíssima, fascinante. No início do filme, vemos esse Howard como um filho da mãe, um mau caráter que demite sem dó nem piedade um homem que foi próximo dele durante décadas e décadas. Bem mais tarde, ouvimos Mike contar para o garoto Rafael que Howard salvou sua vida – quando ele estava arruinado, no fundo do poço com o vício, o ex-empresário tinha vindo em seu socorro, dado emprego a ele, garantido que ele não perdesse seu rancho.
E a história do encontro do velho, alquebrado Mike com Marta, a senhora mexicana viúva, que toca sua cantina num pequeno vilarejo e assim cria as quatro netinhas, após a morte da filha, também é uma maravilha, uma coisa cheia de encanto, de ternura.
Aqui vai um pequeno spoiler – e se o eventual leitor ainda não viu o filme e quiser evitar o estraga-prazer, deve pular para o próximo intertítulo, ou simplesmente parar de ler por aqui.
Mas não consigo deixar de registrar que é impossível ver a bela sequências em que os dois velhos viúvos dançam na cantina vazia ao som de “Sabor a Mi” com Eydie Gormé e o Trio Los Panchos e a) não suspirar de alegria e emoção e b) não lembrar de um Clint Eastwood um quarto de século mais jovem, dançando com a maravilhosa Meryl Streep em As Pontes de Madison (1995).
Marta é interpretada por Natalia Traven (na foto abaixo), atriz mexicana tanto de teatro (35 peças no currículo) quanto de cinema e TV (13 títulos, incluindo Efeito Colateral (2002), de Andrew Davis, com (olha ele aí de novo…) Arnold Schwarzenegger. O mundo já vivia os horrores da pandemia quando a equipe de casting gravou um teste com a veterana atriz para o papel de Marta. “Eles gostaram e mandaram para Clint Eastwood”, ela contou numa entrevista., acrescentando que o diretor também gostou e a chamou para uma entrevista em Albuquerque, no Novo México; ela ganhou o papel, e logo estava filmando com Clint, ali no Novo México – as filmagens foram todas em território americano.
O nome do chefe da equipe de casting tem que ser mencionado: chama-se Geoffrey Miclat o sujeito responsável pela escolha dessa interessante Natalia Traven para o papel de Marta, da chilena Fernanda Urrejola para o papel de Leta, a promíscua mãe de Rafael, e, at last but not at least, de Eduardo Minett para o segundo papel mais importante do filme, o do filho de Leta e do ricaço Howard Polk.
O garoto mexicano Eduardo Minett nasceu em 2006, mas, quando foi escolhido para o papel de Rafael, não era mais um novato. Cry Macho foi o título de número 7 numa carreira iniciada em 2014.
Dois momentos de beleza especial
O IMDb lembra que a trama de Cry Macho tem semelhanças com Uma Noite no México/A Night in Old Mexico (2013), dirigido por Emilio Aragón. Nesse filme (que eu não vi), um velho texano (interpretado por Robert Duvall) viaja pelo México com um jovem, e, exatamente como em Cry Macho, encontra uma mulher mexicana e começa um relacionamento com ela. (Vejo que a mulher é interpretada pela colombiana Angie Cepeda, aquela absoluta maravilha de Pantaleão e as Visitadoras, 1999, e da série Vientos de Agua, 2006.)
No início do filme, me lembrei de um outro – O Cavaleiro Elétrico (1979), a beleza que reuniu pela terceira vez Robert Redford e Jane Fonda. Redford interpreta um sujeito que, exatamente como Mike Milo, foi várias vezes campeão nacional de rodeio, ganhou um monte de dinheiro, ficou famosíssimo – e aí mergulhou na bebida e foi cavando um buraco no chão que parecia não ter mais fim.
E há alguma semelhança também, é claro, com The Mule, o opus de 2018 de Clint. Exatamente como neste aqui, em The Mule o personagem de Clint é um americano que carrega algo do México para dentro dos Estados Unidos. Aqui, um garoto. Em The Mule, droga – montes de droga…
E a sequência dos dois viúvos velhinhos dançando faz lembrar, sem dúvida alguma, As Pontes de Madison.
Bons filmes fazem lembrar bons filmes. Ainda bem.
Há dois momentos de especial beleza neste Cry Macho, além da sequência da dança ao som de “Sabor a Mi”.
Pode até passar despercebido para muitos espectadores, mas há algumas tomadas em que vemos, em primeiro plano, Clint Eastwood-Mike Milo dirigindo seu carro por amplos espaços abertos no México – enquanto, em segundo plano, lá atrás, belíssimos cavalos selvagens correm também, na mesma direção.
Os cavalos selvagens, o carro – os dois meios de transporte de tantos personagens deste ator-diretor extraordinário ao longo das últimas sete décadas.
O outro momento especial é bem no início do filme, na sequência em que vemos Mike Milo em seu rancho, pouco antes da chegada de Howard Polk com seu pedido ao velho amigo. Como em tantos filmes, a câmara passa pela parede do racho que Mike, e vemos, enquadrados e pendurados ali, páginas de jornais falando das grandes conquistas dele no passado. A câmara se aproxima de uma foto em que vemos um cavalo praticamente de pé sobre as patas traseiras, com Mike lá no alto, a uns 15 metros do chão.
E aí, como se fosse em Hogwarts, a escola de bruxaria e magia de Harry Potter, a foto ganha vida, o cavalo dá uma chacoalhada, e o peão premiadíssimo despenca no chão.
Aos 91 anos de idade, Clint Eastwood ainda se mete a soltar fogos de artifício na tela.
Mas o mais belo de tudo, estou certo disso, vem quando estamos bem no final, e o sujeito que matou tantas dezenas de pessoas nos western spaghetti e nos policiais dirigidos por respectivamente por Sergio Leone e Don Siegel, entre outros, diz, com aquela voz que conhecemos tão bem há tantas décadas:
– “Essa coisa de ‘macho’ não é tudo isso.”
(No original ele diz “This macho thing is overrated” – superestimado, sobrevalorizado.)
“Pode funcionar muito bem para ele (aponta para Macho, o galo do garoto Rafael), mas não é tudo isso. É só gente tentando dizer que é ‘macho’, tentando mostrar que tem garra. No fim, é tudo que resta para ele. Você deixa um touro passar em cima de você, deixa um cavalo te jogar a 15 metros de altura. Que idiotice. Só um idiota faria isso. É só como qualquer outra coisa na vida. Você acha que tem todas as respostas,
mas aí percebe, à medida em que envelhece, que não tem resposta alguma. E quando você entende isso, é tarde demais.
Uma pausa. Ele diz que o pai do garoto é um bom homem, e completa: “Todos nós temos que fazer escolhas na vida. Você tem que fazer as suas.”
Faz décadas que Clint Eastwood escolheu o Lado Bom da Força. Grande, maravilhoso Clint Eastwood.
Anotação em janeiro de 2022
Cry Macho: O Caminho para a Redenção/Cry Macho
De Clint Eastwood, EUA, 2021
Com Clint Eastwood (Mike Milo),
Eduardo Minett (Rafael, Rafo, o garoto),
e Dwight Yoakam (Howard Polk, o pai de Rafo e empresário de Mike), Natalia Traven (Marta, a viúva dona da cantina), Fernanda Urrejola (Leta, a mãe de Rafo), Horacio Garcia Rojas (Aurelio, o capanga de Leta), Elida Munoz (neta de Marta de 14 anos), Abiah Martinez (neta de Marta de 6 anos), Ramona Thornton (neta de Marta de 4), Cesia Isabel Rosales (neta de Marta de 10 anos), Ivan Hernandez (Lucas), Lincoln A. Castellanos (Zafiro), Juan Mendoza Solis (garçom no bar), Marco Rodríguez (Porfirio), Jorge-Luis Pallo (Diaz, assistente do delegado na cidadezinha de Marta), Ana Rey (señora Reyes), Rocko Reyes (capitão Garcia), Paul Lincoln Alayo (sargento Perez)
Roteiro Nick Schenk e N. Richard Nash
Baseado em história de N. Richard Nash
Fotografia Bem Davis
Música Mark Mancina
Montagem David S. Cox e Joel Cox
Casting Geoffrey Miclat
Direção de arte Ronald R. Reiss
Produção Clint Eastwood, Jessica Meier, Tim Moore, Albert S. Ruddy, Malpaso, Ruddy Productions, Warner Bros,
Cor, 104 min (1h44)
Disponível na HBO em janeiro de 2021.
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Sérgio,
Bela análise, parabéns!
Rafael