Un + Une

3.0 out of 5.0 stars

Há algum tempo não via filmes de Claude Lelouch – e Claude Lelouch, exatamente como sua personagem Anne Gauthier, faz um filme atrás do outro, um atrás do outro, sem parar, loucamente. Vi agora Un + Une, o Lelouch 2015, e é incrível: ele não mudou quase nada desde 1966!

Passaram-se 49 anos desde que ele contou aquela historinha simples, aquele fiapinho de história de como o moço conheceu a moça e, com aquele fiapinho de história sobre Jean-Louis Duroc e Anne Gauthier, um homem e uma mulher, ganhou, ao mesmo tempo, o Oscar, a Palma de Ouro e o ódio de tudo quanto é crítico de cinema do mundo.

Un + Une é, mais uma vez, ainda uma vez, pela… sei lá, a vigésima, a trigésima vez, a história de um homem e uma mulher, criada e filmada por Claude Lelouch.

Posso apostar que 99% dos críticos de cinema acharam um horror – se é que viram.

É uma beleza de filme.

Um história cercada de muitas outras

Em 1986, exatos 20 anos depois de ter causado imenso estupor por vencer ao mesmo tempo o Oscar de melhor filme estrangeiro e a Palma de Ouro em Cannes com aquele filme que não tinha nada de política, nada de reflexão sobre a História da humanidade, e apenas contava um fiapo de história de amor, Lelouch fez Um Homem, Uma Mulher Vinte Anos Depois. Na época, escrevi o seguinte:

“Vinte anos atrás era um fiapo de história. Um homem e uma mulher encontravam-se na vida; apaixonavam-se, desencontravam-se na hora da cama, separavam-se, encontravam-se de novo. Vinte anos depois são muitas histórias que se entrecruzam e se modificam.

Há a história daquele mesmo homem, a história daquela mesma mulher, as histórias de cada um deles com seu atual amante, as histórias dos filhos de cada um deles, a história de um estuprador que foge de um hospital psiquiátrico. E há diversos filmes dentro do filme.”

A base do filme escrito por Lelouch e lançado em 2015 é a mesma do filme de 1966: um homem e uma mulher encontram-se na vida, e aí há um monte de desencontros.

Mas, exatamente como no filme de 1986, é tudo mais complexo, há muitas histórias ao redor da história central.

Um jovem casal na Índia, um casal na França…

É mais ou menos assim:

Na Índia, uma bela garota estuda dança – mas não está indo muito bem. O professor a repreende seguidas vezes.

Bem perto do local em que a moça estuda dança, há uma joalheria, e um rapaz vai assaltá-la.

A moça se chama Ayanna, o papel de Shriya Pilgaonkar. O rapaz é Sanjay, o papel de Abhishek Krishnan.

A muito mais das five hundred miles da canção, do outro lado do Equador, do outro lado do planeta, em Paris, Antoine e Alice estão começando uma história de amor. Antoine é o papel do galã Jean Dujardin; Alice é interpretada por Alice Hanel (na foto acima)

Conheceram-se por mero acaso – como todos os 30 casais dos filmes de Claude Lelouch se conheceram antes deles, como boa parte dos casais que já povoaram este planeta se conheceram. A cena – mostrada num flashback – é linda. Antoine chegava correndo à estação ferroviária – mas chegava com alguns minutos de atraso. O trem já saía no momento em que ele chegava à plataforma.

Ele entra de volta, então, no grande salão da estação – e, ao piano colocado ali, está uma bela moça tocando, se não me engano (escrevo esta anotação alguns dias depois de ter visto o filme), a suave maravilha que é “Clair de Lune”, de um outro Claude, o Debussy.

Antoine senta-se ao lado dela e começa a tocar em dueto com ela ao piano.

Antoine não tinha a menor idéia de quem era aquela jovem pianista que gostava de tocar nas estações de trem. Já Alice sabia muito bem quem era o sujeito que havia sentado a seu lado – Antoine Abeilard era um compositor muito famoso, um autor de muitas trilhas sonoras de filmes de sucesso.

Depois daquele encontro por puro acaso, Antoine, compositor famoso, e Alice, pianista ainda desconhecida, iniciam um romance.

Na Índia, o cineasta Rahul Abhi (o papel de Rahul Vohrav, na foto abaixo) está filmando cenas da vida real em cidades por onde passa o Rio Ganges.

Belas imagens do Rio Ganges na câmara de Lelouch

Claude Lelouch é um dos realizadores mais absolutamente brilhantes no uso da câmara de toda a História do cinema.

São muitos os cineastas brilhantes no uso da câmara. Alfred Hitchcock, é claro. Brian De Palma, um eterno admirador – e copiador – do mestre Hitchcock. Lelouch vem ali, junto deles, no topo da lista dos brilhantes.

Tem a ver com as origens. Lelouch começou pela câmara, muito antes de mexer com histórias. A paixão pelo cinema que herdou do pai – industrial judeu do ramo têxtil nascido na Argélia que emigrou para a França antes da Segunda Guerra Mundial, fanático filmador de cenas familiares -, Lelouch passou a exercitar no seu trabalho como cameraman. Durante três anos fez cinejornalismo, filmando cenas reais em diversos países, inclusive o de seu pai, durante a guerra da Argélia. Era o final dos anos 50, início dos anos 60, a época em que Jean-Luc Godard decretava que “a fotografia é a verdade, o cinema é a verdade 24 quadros por segundo”.

No começo da carreira como realizador, fazia questão de ser ele mesmo seu cameraman.

Não é à toa que, em Un + Une, o cineasta indiano Rahul Abhi inventado por Lelouch segure ele mesmo a câmara para filmar as cenas às margens do Ganges.

E aqui venho com mais uma lembrança pessoal. As muitas sequências de Un + Une passadas junto das margens do Ganges me fizeram lembrar demais as sequências de O Invencível/Aparajito (1956), o segundo filme da trilogia do mestre Satyajit Ray, passado, em boa parte, na cidade santa de Benares (hoje conhecida como Varanasi).

São esplendorosamente belas as imagens que a câmara de Lelouch e seu diretor de fotografia Robert Alazraki obtiveram ali junto do Rio Ganges – tão belas quanto as que Satyajit Ray mostrou em seu filme maravilhoso.

OK, tá legal, mas… O que é mesmo que tem a ver o Rio Ganges com o casal de músicos franceses, com o rapaz ladrão e a moça dançarina e o cineasta indiano?

Ahá! Aí é que está! Tudo tem tudo a ver!

Diversas histórias que se interligam

Nas histórias criadas por Claude Lelouch, tudo tem a ver com tudo. Tudo é feito por coincidências, encontros, desencontros – e, como diria minha neta Marina, descoincidências.

Acontece que Sanjay, o rapaz que roubou a joalheria perto da escola de dança de Ayanna, acaba, na fuga, atropelando a moça. E resolve socorrê-la – mesmo que isso significasse abrir mão do produto do roubo, abrir mão até da liberdade.

Sanjay socorre a ferida Ayanna, leva-a para um hospital. É imediatamente preso. Depois que se recupera, Ayanna vai visitar o seu ao mesmo tempo atropelador e salvador. Apaixonam-se. A história, contada pela imprensa, comove meia Índia.

O cineasta Rahul Abhi resolve filmar a história, usando os próprios personagens para interpretar seus papéis.

(O filme não cita isso, é claro, mas Clint Eastwood já colocou para interpretar seus próprios papéis três jovens que acabaram sendo heróis num episódio de ataque terrorista em um trem entre Bruxelas e Paris. O filme é 15h17: Trem Para Paris.)

E o cineasta Rahul Abhi convoca o compositor francês Antoine Abeilard para criar a trilha sonora de seu novo filme, o filme que reconstituirá o encontro da jovem bailarina Ayanna com o garoto Sanjay.

Parece complicado? Parece informação demais?

Ahá… O filme está só começando.

O compositor Antoine viaja para a Índia para se encontrar com o cineasta Rahul Abhi, ver os copiões do filme, conhecer a história, se inspirar. Alice tem compromissos, não pode viajar junto com ele; irá para a Índia se encontrar com o namorado algum tempo depois.

Antoine Abeilard é um compositor famoso, como já foi dito. A chegada dele à Índia é notícia, é fato importante – e então a Embaixada da França na Índia organiza um grande jantar de gala para o compositor, o cineasta, os atores-personagens, e mais um montão de gente.

Não marquei a hora exata em que começa a sequência desse jantar, mas creio que é ali quando o filme, que tem 115 minutos, está com uns 15. No máximo 20.

No meio da longa mesa, o embaixador francês na Índia, Samuel Hamon, senta-se ao lado do cineasta Rahul Vohrav e diante de Antoine, o outro convidado principal. Ao lado de Antoine senta-se a mulher do embaixador, Anna.

O embaixador é o papel de Christopher Lambert. A mulher dele, Anna, é interpretada por Elsa Zylberstein (na foto acima e nas fotos abaixo). Como Christopher Lambert e Elsa Zylberstein são os atores mais famosos do elenco, além de Jean Dujardin, que faz o protagonista, dá para o espectador imaginar o que vai acontecer.

Certo?

Um cineasta que foi do cinema para a literatura

A trajetória de Claude Lelouch é fascinante.

Ele chegou poucos anos depois da explosão da nouvelle vague, um dos mais famosos, impactantes, importantes movimentos da História do cinema.

A nouvelle vague foi feita por jovens letrados, estudados, intelectualizados, que começaram como críticos, na revista mais cult de todas as publicações cult que já houve, embora o termo ainda não fosse usado à época, os Cahiers du Cinéma. Aqueles garotos cheios de idéias, que tinham visto todos os milhares de filmes importantes feitos até então, começaram a fazer seus filmes a partir de 1959. François Truffaut, Jean-Luc Godard, Éric Rohmer, Claude Chabrol.

Todos, absolutamente todos os 25.227.338 críticos de cinema do planeta caíram tontos de paixão pela nouvelle vague.

Claude Lelouch apareceu uns cinco anos depois – e não era da nouvelle vague.

E aconteceu de ele ganhar Cannes e o Oscar.

Uns 25.227.301 críticos passaram a falar mal dele e de seus filmes que, num mundo em turbilhão, contavam histórias de amor, meu Deus do céu e também da Terra.

Em 1986, quando Um Homem, Uma Mulher Vinte Anos Depois estava sendo lançado, eu escrevi na revista Afinal, da qual era editor de Cultura:

Claude Lelouch entende que o cinema tem sido um escravo da literatura. Chega a dizer que o cinema evoluiu pouco, desde que, em 1927, aprendeu a falar; acha que o essencial da linguagem cinematográfica foi criado antes. “A partir de 1929 (a França atrasou-se um pouco na adoção dos filmes falados), o cinema está mais a serviço da literatura do que a seu próprio serviço.” A maior parte dos cineastas, avalia, descobriu a literatura antes do cinema, como é o caso, por exemplo – cita ele – dos diretores da nouvelle-vague. “O meu caminho é completamente inverso. Eu venho do cinema para a literatura.”

Lelouch sempre cria as histórias que filma

É de fato em tudo por tudo fascinante a trajetória de Claude Lelouch.

Para estabelecer um elemento de comparação, peguemos a trajetória de François Truffaut, um dos melhores entre os melhores realizadores de toda a História, conterrâneo e contemporâneo de Lelouch.

Já coloquei aqui comentários sobre praticamente toda a obra de Truffaut; falta um filme apenas, dos 21 longas que ele dirigiu. Dos 21, 11 são histórias criadas por ele mesmo junto com amigos e colaboradores, enquanto 10 se baseiam em obras literárias – de Pierre-Henri Roché, Ray Bradbury, William Irish, Henry James…

Que eu me lembre, Lelouch fez um único filme baseado em obra literária, não por acaso uma das mais grandiosas obras literárias da França (e do mundo), Os Miseráveis de Victor Hugo – e na verdade ele fez uma versão personalíssima do grande clássico, uma adaptação absolutamente livre.

O cara que começou como cameraman veio de fato do cinema, e continuou sempre fiel ao cinema. Filma histórias que ele mesmo cria para serem filmadas, e não histórias anteriormente escritas para serem lidas.

Não é presunçoso o suficiente para fazer suas histórias sozinho. Costuma dividir sempre o crédito dos argumentos e roteiros que cria. Teve como fiel parceiro, durante décadas, Pierre Uytterhoeven. Foi Pierre Uytterhoeven que assinou o roteiro de Um Homem, Uma Mulher – embora seja absolutamente óbvio que é uma obra dos dois.

Desde 2014, divide os créditos com Valérie Perrin. Seus últimos filmes trazem a assinatura de Valérie Perrin como co-roteirista, co-adaptadora, co-autora dos diálogos. A moça divide, assim como os créditos, também a cama do sujeito que já colocou como parceira de trabalho todas as anteriores parceiras de vida.

É interessante notar que tanto o IMDb quanto o AlloCiné dizem que argumento e roteiro deste Un + Une são de Claude Lelouch e Valérie Perrin. Não é o que dizem os créditos iniciais do filme. Lá está escrito: “roteiro original Claude Lelouch”. E depois: “adaptação e diálogos Valérie Perrin e Claude Lelouch”.

Valérie nasceu em 1967. Um ano depois do lançamento do filme que transformou seu hoje compagnon (a palavra que a Wikipidia usa) em um fenômeno que agradava aos espectadores e deixava os críticos de cinema à beira de um ataque de nervos. É escritora, romancista. Diz a Wikipedia que seu primeiro romance, Les Oubliés du Dimanche, os esquecidos do domingo, surgiu em 2015, e recebei 13 prêmios, inclusive o de primeiro romance de Chambéry 2016, o Chronos 2016, o Escolha das Livrarias 2018, e teve traduções para o italiano e o alemão.

Na Índia, “a desordem é criativa”, diz Lelouch

Quando lançou Um Homem, Uma Mulher Vinte Anos Depois, em 1986, Lelouch dizia esta frase marcante: “Só existem duas ou três histórias na vida. Mas as variações são infinitas.”

A história que ele conta neste Un + Une tem muitas semelhanças com as de Um Homem, Uma Mulher, Se Tivesse que Refazer Tudo (1976), Outro Homem, Outra Mulher (1977), A Nós Dois (1979) e vários outros de seus filmes. É a história dos encontros e desencontros entre um homem e mulher. É basicamente isso. Só que, junto dessa história básica, ele coloca várias outras histórias de outros personagens – exatamente como fez no filme de 1986, sobre o reencontro, 20 anos depois de Jean-Louis Duroc e Anne Gauthier, interpretados pelos mesmo Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée, lindos, 20 anos mais velhos.

Boa parte de Un + Une mostra os dois personagens centrais da história, o homem e a mulher, numa peregrinação pelo interiorzão da Índia para encontrar uma pessoa que é tida como uma santidade, Mata Amritanandamayi Devi, ou simplesmente Amma (que significa mãe). Nunca tinha ouvido falar nela. Santa ignorância minha, porque é uma personalidade bastante conhecida. Segundo a Wikipedia, ela é reverenciada como uma Mahatma (Grande Alma) e uma santa viva, “a santa dos abraços”, como é chamada.

Amma acabou sendo uma personagem importante do filme – a equipe de Lelouch a filmou no meio de uma multidão de fiéis, na qual os atores principais se enfiaram. (Ela está na foto acima.)

Em entrevistas sobre o filme, Lelouch se mostrou um apaixonado pela Índia. “É o país onde o caos é de uma fertilidade incrível, e onde a desordem é criativa. É na verdade um país em que as pessoas vivem por viver. É um lugar em que as pessoas aprendem que a morte não existe, que o ser humano é eterno. Isso me agrada, sobretudo na idade em que estou, agora que me aproximo da linha de chegada.”

O diretor nasceu em 1937; estava, portanto, com 78 anos em 2015, o no em que lançou Un + Une.

“Não se retorna ileso da Índia”, disse, em um trecho de entrevista reproduzido no site AlloCiné. “Lá existe uma aceitação dos infortúnios que não encontramos em nenhum outro lugar. É um país que obriga você a se interessar pelos outros, uma lupa que nos mostra até que ponto os outros podem ser apaixonantes e necessários. Aquele país nos ensina que as melhores coisas da vida são a generosidade e a honestidade.”

Grande Lelouch.

Ah, sim. É necessário fazer o registro. Não é por frescura ou qualquer outro motivo desse tipo que só uso o título original do filme, esse “Um + Uma”. É que simplesmente não traduziram o título para o português. Está disponível na Netflix assim, com o título original.

Anotação em agosto de 2020

Un + Une

De Claude Lelouch, França, 2015.

Com Jean Dujardin (Antoine Abeilard),

Elsa Zylberstein (Anna Hamon),

Christopher Lambert (Samuel Hamon),

Alice Pol (Alice Hanel)

e Rahul Vohrav (Rahul Abhi), Shriya Pilgaonkar (Ayanna), Abhishek Krishnan (Sanjay), Venantino Venantini (Henri), Hélène Médigue (a amiga de Anna), Olias Lelouch (o garoto Antoine), Philippe Azoulay (o repórter), Laurent Couson (o chefe da orquestra), Ramneeka Dhillon Lobo (o médico indiano), Mata Amritanandamayi Devi (ela mesma)

Argumento e roteiro Claude Lelouch e Valérie Perrin

Fotografia Robert Alazraki

Música Francis Lai

Montagem Stéphane Mazalaigue

Casting Mona Irani

Produção Les Films 13, Davis-Films, JD Prod, France 2 Cinéma, Canal+, Ciné+, France Télévisions. Distribuição Nextflix.

Cor, 115 min (1h55)

Disponpivel na N#tflix em agosto de 2020

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