Casos e Casamentos, no original apenas Mariages!, assim, com um gostoso ponto de exclamação, fica entre Cerimônia de Casamento/A Wedding, de Robert Altman (1978), e O Casamento do Ano/The Big Wedding, de Justin Zackham (2013).
Foi o que eu fiquei achando, depois de ver o filme escrito e dirigido por Valérie Guignabodet. Fica entre um e outro – e não apenas por ter sido feito cronologicamente entre um e outro, em 2004. Mas principalmente porque ele tenta um frágil equilíbrio entre o exagero das situações grotescas, até mesmo engraçadas, mas a rigor profundamente dramáticas do filme pesado de Altman e a leveza que o muito menos conhecido diretor Zackham procura alcançar quando todos os podres já foram expostos, os cadáveres já saíram todos os armários, e é hora de os personagens tocarem a vida e a história chegar ao The End – ou Fin, no caso aqui.
Uau. Releio a frase anterior e fico em dúvida se ela é muito boa ou absolutamente incompreensível.
O filme de Altman, com um elenco fenomenal (Lillian Gish, Vittorio Gassman, Dina Merrill, Carol Burnett, Mia Farrow, Geraldine Chaplin, Viveca Lindfors, Lauren Hutton) é daqueles que não deixam pedra sobre pedra. Ele arrasa com tudo – não há pessoas boas, bem intencionadas, é tudo podre, horroroso, sem saída.
No dia da festa do casamento do filme mais recente (que reúne Robert De Niro, Diane Keaton e Susan Sarandon, e mais uma penca de bons atores mais jovens), são reveladas traições de diversos dos personagens, segredos, podres, problemas dos mais diversos tipos – mas, no fim, com exceção de algumas equimoses, machucados, dores aqui e ali em função da sujeirada toda que vem à tona, ninguém sai verdadeiramente destroçado, acabado. A vida segue, talvez, ou certamente, até melhor.
Aqui, a autora e diretora Valérie Guignabodet foi fundo, mas fundo, mas muito fundo na lama, nos podres do grupo de pessoas envolvidas na festa do casamento de dois jovens, Johanna (Chloé Lambert) e Benjamin (Alexis Loret). É muita merda que sai e é atirada para todos os lados por poderosos ventiladores – mas, no último momento, sem a coragem de um Robert Altman de continuar cortando na carne as expectivas do espectador de dar uma respiradinha na hora de voltar para casa ou para as obrigações do seu dia-a-dia, a realizadora francesa dá um jeitinho para que tudo, ou quase tudo, possa voltar a dar pé.
O filme é cheio de citações de grandes frases sobre o casamento
O filme começa muito bem, cheio de bossa. Imagens de uma pista de dança, música um tanto techno, um tanto xacadum, luzes de boate piscando, iluminando os rostos de pessoas felizes que a gente não vê direito: são tomadas rapidíssimas, muitas de close-up de rostos, em montagem bem acelerada.
Aí pára tudo. Aparece, imensa, a palavra Mariages!, com a exclamação, e a tela é tomada por um gigantesco convite para a festa de casamentop de Benjamin e Johanna. Entra na tela, à frente do fundo branco do convite, a figura de corpo inteiro de Jean Dujardin, sete anos mais jovem e 200 trilhões de vezes menos conhecido do que após o sucesso mundial de O Artista, de Michel Hazanavicius (2011). E Dujardin recita para o espectador:
– “O casamento é como uma cidade sitiada: quem está fora quer entrar, quem está dentro quer sair.” E, depois de um rápida pausa, dá o crédito: – “Provérbio chinês”.
Jean Dujardin interpreta Alex, o maior amigo de Benjamin, o noivo. Na véspera do dia do casamento, Alex e amigos levaram Ben para a esbórnia, e foi uma esbórnia absurda: ao ser acordado pela mãe, Chantal (Catherine Allégret), no dia do casamento, o rapaz está um caco, um lixo, um horror, numa ressaca maldita, e tem marcas de chupões na garganta e no corpo inteiro.
Johanna, a noiva, mora com a mãe, Gabrielle (o papel da sempre ótima Miou-Miou, uma atriz que está sabendo enfrentar com a maior elegância a passagem dos anos), num belíssimo sítio, na região de Rhône-Alpes. Naquela manhã do dia do casamento, está sendo cuidada por duas amigas, Valentine (Mathilde Seigner, ainda mais linda aqui do que em todos os outros filmes que já vi com ela) e Micky (Lio), sua tia, irmã de Gabrielle.
Assim que se casa, a pessoa entra para o clube dos candidatos ao divórcio
Alex, o padrinho do noivo, é um estudioso de frases que definem o casamento como um absoluto fracasso. Assim, além daquele provérbio chinês que apresenta já nos créditos iniciais, recitará estas máximas, ao longo do filme:
– “O que separa um cara legal de uma mulher legal é o casamento deles.” (De Flers e Daillavet, 1912.)
– “Nós nos estudamos 3 semanas, nos amamos 3 meses, brigamos 3 anos e nos toleramos 30 anos.” (Hyppolyte Taine, século XIX.)
– “Num bom casamento, o homem deve ser surdo e a mulher, cega”. (Richard Taverner, 1539.)
Enquanto Alex diz essas frases famosas – ele não cita aquela que na minha cabeça é a mais marcante de todas, le mariage est le tombeau de la passion, o casamento é o túmulo da paixão –, no lado feminino Valentine e Micky, enquanto preparam Johanna, falam de estatísticas.
– “Minha querida, você entrará para o clube dos candidatos ao divórcio!”, diz uma delas.
Sensacional: a partir do momento em que se casa, a mulher entra para o clube das candidatas ao divórcio!
– “São as mulheres que pedem o divórcio em dois terços dos casos”, informa a bela Valentine.
– “Um entre três casamentos acaba em divórcio. 39%, para ser exato. Uma de nós vai se divorciar!”
No final, como que num passe de mágica, os problemas todos são resolvidos
Os personagens criados por Valérie Guignabodet não apenas pesquisam frases contra o casamento e destilam estatísticas sobre a inevitabilidade do fim das uniões: eles também se dedicam, com um vigor admirável, à prática da traição, da infidelidade conjugal.
Veremos que Valentine tem traído o marido Alex nos últimos seis meses.
Que Micky, casada com Hugo (Antoine Duléry), no passado traiu o marido, que a aceitou de volta; e que Hugo sempre traiu Micky com uma ou outra namorada; nos últimos meses, anda traindo a mulher com Valentine.
O mais inocente nessa história toda me pareceu Pierre (Didier Bezade), o ex-marido de Gabrielle. Já estão separados há tempos, e, para o casamento da filha, aparece com uma namorada, uma cantora russa, não, polonesa, que ele conheceu em Moscou (ou teria sido São Petersburgo?), uma louraça grande, Ingrid (Beata Nilska), e que o filme goza por não dominar o francês.
Ora bolas: nenhum estrangeiro é obrigado a dominar com perfeição outra língua – a não ser que haja motivos profissionais para tal. E ora bolas II: por que, no ano da graça de 2004, no Terceiro Milênio, a ex-mulher Gabrielle e a filha Johanna se incomodam tanto com o fato de o pai, separado faz tempo, ter uma namorada?
De fato não consegui entender isso, assim como também me pareceu sem sentido uma tentativa de forçação de barra de falar da disputa de esquerda (a família mais rica, a de Johanna) x direita (a família não tão rica e nem há tanto tempo, a de Benjamin), e de se fazer referência aos ideais da geração de 1968, que se “emburguesou”.
Mas essa tentativa de politizar só aparece uma ou duas vezes, rapidamente, é coisa de somenos. O que me pareceu ruim no filme foi ir fundo demais na lama e depois voltar tudo a ficar numa boa, como se não tivesse acontecido nada.
Não acho que esse Mariages! seja um grande filme, nem sequer um ótimo filme. Mas também não é um horror, e não deixa de ter coisas inteligentes e interessantes.
A diretora Valérie Guignabodet sempre volta ao mesmo tema
Não me lembrava disso enquanto via o filme, mas já havia conhecido a autora e diretora Valérie Guignabodet por seu filme Monique, de 2002. Foi o primeiro longa-metragem dela – e, como este aqui, trata da eterna guerra homem x mulher, o casamento, o sexo no casamento, o desgaste do casamento com o passar do tempo, do que os homens gostam, do que as mulheres gostam.
Vejo no AlloCiné, o site que tem tudo sobre cinema francês, duas informações fascinantes. A primeira é que Valérie Guignabodet disse, em entrevistas na época do lançamento do filme, 2004: “Je pense que Jean est la grande star masculine de ces prochaines années”.
Uau! Vai ser boa de previsão assim no oráculo de Delfos!
A segunda é uma explicação dela sobre a idéia de fazer este filme:
“Bizarramente, ele nasceu em um momento muito preciso, quando eu assistia a uma cerimônia de casamento num tempo da minha vida em que não acreditava mais naquilo. Foi um segundo de profuda lucidez e tristeza, porque não há nada mais triste que ver pessoas rezarem e não ter mais fé, nada mais triste que ver pessoas que se amam prometerem um amor eterno e estar convencida de que eles acabarão como todos os outros. Disso nasceram os personagens de Valentine e Alex, cujas dúvidas contaminam os casais em torno deles, e revelam as tensões e as hipocrisias!”
Beleza de declaração.
Depois de Monique e deste Mariages!, ela fez mais dois, Danse Avec Lui, em 2007, e Divorces!, em 2009. Gostaria de ver os dois.
Anotação em junho de 2015
Casos e Casamentos/Mariages!
De Valérie Guignabodet, França, 2004
Com Mathilde Seigner (Valentine), Jean Dujardin (Alex, marido de Valentine), Miou-Miou (Gabrielle, mãe de Johanna, a noiva), Didier Bezace (Pierre, o pai da noiva), Lio (Micky, irmã de Gabrielle e mulher de Hugo), Antoine Duléry (Hugo), Chloé Lambert (Johanna, a noiva), Alexis Loret (Benjamin, o noivo), Catherine Allégret (Chantal Dupré, a mãe do noivo), Michel Lagueyrie (Jacques Dupré, o pai do noivo), Beata Nilska (Ingrid, a cantora polonesa, namorada de Pierre), Marianne Groves (a prima do noivo), Frédéric Maranber (o primo do noivo), Michel Dussarat (Roberta, o travesti), Gilles Gaston-Dreyfus (o padre)
Argumento e roteiro Valérie Guignabodet
Fotografia Pierre Aïm
Música Fabrice Aboulker
Montagem Thierry Derocles
No DVD. Produção Pan Européenne Production, StudioCanal, France 2 Cinéma, Rhône-Alpes Cinéma. DVD Europa Filmes.
Cor, 100 min
**1/2
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