Que a vida imita a arte, da mesma forma que a arte imita a vida, disso já sabemos, estamos cansados de saber. Mas raríssimos são os casos de obras – como o de Síndrome da China, de 1979 – que antecipam o que vai acontecer na vida real.
Copio um dos mais de 60 itens de informações sobre o filme que estão no IMDb – para demonstrar que é um fato, e não opinião minha, coisa da minha cabeça:
“Quando o filme foi inicialmente lançado, em 16 de março de 1979, executivos da indústria de energia nuclear logo desancaram com ele como sendo ‘pura ficção’ e um ‘atentado contra toda uma indústria’. E então, 12 dias depois, ocorreu o acidente nuclear de Three Mile Island perto de Harrisburg, Pensilvânia.”
A trama, a história original foi criada pela dupla Mike Gray & T.S. Cook. Saiu da cabeça desses senhores a idéia de que, por causa de uma sequência de eventos, iniciada com um problema estrutural da época da construção, ocorreu um acidente nuclear em uma usina atômica do Sul da Califórnia, perto de Los Angeles.
O acidente foi grave. Um vazamento da água que protege e resfria núcleo do reator atômico por pouco não o deixou solto, o que o levaria a ir perfurando o solo sem parar, teoricamente podendo atravessar todo o planeta – daí o nome dado pelos físicos a essa possibilidade terrível, “síndrome da China”.
Como explica um físico, o dr. Lowell (Donald Hotton), quando o filme está ali pela metade dos seus 123 minutos, isso – o núcleo atravessar todo o planeta – na realidade jamais aconteceria; se algum núcleo de reator atômico ficasse sem proteção e fosse perfurando o que encontrasse para baixo, acabaria batendo em alguma superfície que o faria estourar – e aí então milhões e milhões de pessoas morreriam, e a radiatividade espalhada na superfície tornaria inviável a existência de qualquer tipo de vida durante centenas de anos.
Mas o reator não chegou a ficar exposto. Os técnicos da usina nuclear conseguiram controlar o problema, o nível de água em torno do reator voltou a subir. O problema, naquele momento, foi afastado.
E muito provavelmente jamais chegaria a ser divulgada a notícia de que chegou a haver um acidente que por pouco não teve proporções absolutamente inimagináveis. Só que…
E aí vai uma das idéias brilhantes dos autores da história.
Só que, no exato momento do acidente, aconteceu de uma equipe de TV estar observando, do alto, do lado de fora, através de grandes janelas de vidro, a sala de controle da usina.
Por puro acaso, havia repórteres ali no exato momento
Foi apenas uma coincidência, uma obra fortuita do absoluto acaso. Uma equipe trabalhando para uma emissora local de Los Angeles estava visitando a Usina Nuclear de Ventana como parte de uma série de reportagens amenas, leves, sobre as fontes da energia que abastecem o Sul da Califórnia.
A repórter Kimberley Wells – o filme mostra isso de cara, já na sua primeira sequência – não tem nada a ver com reportagem séria, profunda, investigativa. Bem ao contrário: é especializada em assuntos leves, suaves, como a chegada de novos bebês ao zoológico ou a onda dos telegramas falados, em que atores surpreendem os destinatários.
E aqui faço uma digressão – pequena, e importante. O filme é um dos tantos e tantos de Hollywood que estressa essa divisão que se faz nos Estados Unidos sobre o jornalismo de TV – de um lado, o noticiário sério, hard news. E, de outro, o jornalismo das notícias amenas, suaves, leves, se não levianas. Essa divisão existe em todos os países, provavelmente, mas os Estados Unidos são o lugar em que ela mais é acentuada. Os críticos desse tipo de jornalismo o chamam de infotainment, uma mistura indesejada, indigesta, de information com entertainment.
E Síndrome da China estressa, já na abertura, que Kimberley Wells é uma jornalista de infotainment. Não é uma jornalista que vive caçando pêlo em ovo, uma radical, uma “esquerdista”. Até gostaria muito de fazer matérias mais sérias – mas é linda e ruiva e a chefia gosta dela porque ela garante audiência fazendo exatamente aquilo, matérias leves, gostosas.
E é uma delícia que no papel da moça linda e ruiva e do lado leve e inofensivo do jornalismo esteja Jane Fonda, a ativista, tida por meia América como radical, esquerdista, Hanoi Jane, como era chamada naqueles anos 70.
Já o cinegrafista que acompanhava Kimberley, Richard Adams (o personagem de um Michael Douglas jovenzinho de tudo), esse, sim, tinha todo jeito de ser do tipo que procura encrenca.
Kimberley, Richard e seu assistente Hector (Daniel Valdez) já haviam percorrido as principais dependências da Usina Nuclear de Ventana, ciceroneados pelo relações públicas Bill Gibson (James Hampton). Olhar lá de cima, de longe, pelas janelas de vidro, a atividade dos homens da central de controle era a última etapa da visita. Richard fez menção de colocar a câmara em posição – mas o RP Bill Gibson, sempre simpático, avisou que ali não era permitido filmar, por questões de segurança.
E foi então que houve um barulho, um pequeno tremor – e os técnicos que eram observados lá em cima passaram a se movimentar rápida e nervosamente.
Safo, esperto, experiente, do tipo que não foge de encrenca, Richard, sem que ninguém percebesse, acionou sua câmara.
E a câmara do diretor de fotografia James Crabe passa a mostrar bem de perto para o espectador o que acontece lá embaixo, na sala de controle.
O supervisor Jack Godell (o papel de Jack Lemmon) vai caminhando entre as máquinas, checando o que elas informam. Dá ordens seguidas – algumas delas a princípio contestadas pelos seus funcionários como sendo não recomendadas.
O espectador percebe claramente, por toda a movimentação, pelas ordens que Jack Godell vai dando a todos, pela sua expressão, pela expressão do seu segundo, Ted Splinder (Wilford Brimley), pelo apavoramento de todos os demais funcionários, que a coisa é extremamente grave.
E toda a movimentação, tudo, absolutamente tudo está sendo filmado pela câmara de Richard Adams.
Um filmaço, que não perdeu nada da força
Pelas minhas anotações, tinha visto Síndrome da China uma única vez, em 1992. Isso é mais uma prova de que minhas anotações são importantes, são boas – mas não são infalíveis. Tenho absoluta certeza de ter visto Síndrome da China várias vezes antes disso; me lembrava muito bem, com grande nitidez, de muita coisa do filme.
Claro que havia muitas outras coisas de que não me lembrava. Na verdade, creio que tinha um pouco de medo de rever o filme agora, passados tantos anos, e me decepcionar.
Como diria o jovem Chico, qual o quê.
Síndrome da China é um filmaço. E não envelheceu, não ficou datado, não perdeu nada do seu impacto, da sua força, ao longo destas décadas.
O roteiro é um absoluto brilho – e é necessário registrar que, depois de escrito pela dupla que criou a trama, a história, Mike Gray & T.S. Cook, ele foi reescrito pelo diretor James Bridges. Nascido em 1936 no interior do Arkansas, Bridges morreu jovem, com apenas 57 anos, em 1993. Dirigiu apenas oito filmes, entre eles Cowboy do Asfalto, com John Travolta e Debra Winger, e escreveu os roteiros de 20 títulos.
A direção é firme, de quem é experiente, domina o que faz. O elenco está soberbo, em especial o trio principal, Jane Fonda, Jack Lemmon e Michael Dougas – que foi também o produtor do filme. Jack Lemmon, comediante consagrado, teve aqui uma das suas mais fantásticas atuações dramáticas, ao lado de Vício Maldito/The Days of Wine and Roses (1962), Sonhos do Passado/Save the Tiger (1973) e Missing (1982).
Jack Lemmon e Jane Fonda tiveram indicações aos Oscars de melhor ator e melhor atriz. O filme teve também indicações aos Oscars de roteiro original, escrito diretamente para o cinema, e para direção de arte para George Jenkins e Arthur Jeph Parker.
Dois detalhes chamaram muito minha atenção ao rever o filme agora para escrever esta anotação. Uma delas é que James Bridges optou por fazer um filme sem trilha sonora – algo bastante raro. Há uma música incidental que toca enquanto rolam os créditos iniciais – a canção “Somewhere in Between”, de e com Stephen Bishop. Só isso. Depois, mais nada.
Os créditos finais rolam em silêncio, em absoluto silêncio. Não me lembro de nenhum outro filme de Hollywood em que isso aconteça.
Ao longo de toda a ação, não há fundo musical para realçar o que está sendo mostrado, para ajudar a criar o clima, para fazer o espectador se emocionar, ou se aterrorizar. Pensando sobre isso depois que o filme acaba, você tem todo o direito de ficar imaginando que isso sim é que ter confiança no seu taco: o diretor dispensar uma arma tão fundamental quanto a trilha sonora.
É como se James Bridges dissesse que não precisa: com essa trama, com esses atores, não é necessária a ajuda de música.
O outro detalhe é a forma com que o diretor conseguiu construir a sequência do clímax dramático do filme – o momento em que o supervisor Jack Godell toma à força a cabine de controle da usina nuclear e exige a presença da jornalista Kimberley Wells para que ele explique, ao vivo, o que está acontecendo.
É preciso esperar a chegada da câmara do cinegrafista Richard Adams e do caminhão para fazer o link com o estúdio para que a fala dele seja transmitida ao vivo.
É – repito, insisto – o clímax, o auge do drama, do suspense.
Fora da sala de controle há uma agitação frenética – o presidente da empresa de energia, Evan McCormack (Richard Herd) dá ordens nervosas ao telefone, o chefe de operações da usina, Herman DeYoung (Scott Brady), tenta encontrar os fios certos para desligar tudo e assim deixar Jack Godell sem poder sobre a usina, a equipe a S.W.A.T. está tomando posição do lado de fora da sala, caminhões e mais caminhões de emissoras de TV não param de chegar.
Mas, na sala de controle, o centro nervoso de toda a coisa, não acontece nada. Absolutamente nada. O supervisor da sala de controle e a repórter aguardam um sinal do cinegrafista.
Os personagens de Jack Lemmon e Jane Fonda, trancados sozinhos na sala de controle, não têm o que fazer, a não ser esperar.
Poucas vezes vi momento de tensão tão forte, tão vibrante, em um filme, enquanto não acontece nada com os personagens centrais.
É um absoluto brilho.
12 dias depois da estréia, um acidente real e assustador
Um acidente como esse jamais poderia acontecer, disseram, então, todos os executivos da indústria de energia nuclear dos Estados Unidos. É lenda, é coisa de roteirista imaginativo de Hollywood. Coisa de cinema.
E então, 12 dias depois da estréia de Síndrome da China, aconteceu Three Mile Island.
“As bombas de água principais do reator da Unidade 2 da usina nuclear de Three Mile Island, nas cercanias de Middletown,. Pensilvânia, pararam de funcionar. As bombas de emergência também falharam e o abastecimento de água para transferência do calor da água circulante no núcleo do reator foi cortado. O núcleo parou de operar automaticamente, mas uma sucessão de falhas de equipamentos e erros humanos causou uma perda substancial da água que o resfriava. O núcleo começou então a fundir e a liberar gases radioativos.”
A descrição acima é do livro 1001 Dias Que Abalaram o Mundo, editado por Peter Furtado e lançado no Brasil pela editora Sextante em 2009.
“Por incrível que pareça, pouca radioatividade escapou para a atmosfera e o acidente não causou efeitos nocivos imediatos”, prossegue o relato do livro. “Mesmo assim, o acidente foi assustador. Sete outros reatores similares foram logo fechados, temporariamente. O presidente (Jimmy) Carter e a Câmara dos Deputados da Pensilvânia ordenaram investigações. As licenças para novas instalações nucleares foram suspensas e o incidente fez pairar, durante anos, uma sombra sobre a indústria nuclear americana.”
É impressionante a sequência de datas. O filme foi lançado em 16 de março de 1979 – o acidente de Three Mile Island foi no dia 28.
Apenas seis meses depois, entre os dias 19 e 23 de setembro de 1979, grandes astros do rock e do pop se reuniram para uma série de shows no Madison Square Garden de Nova York com o título de No Nukes: The Muse Concerts For a Non-Nuclear Future. Em novembro, foi lançado o álbum triplo No Nukes. Entre os artistas que se apresentaram estavam os principais organizadores – Jackson Browne, Graham Nash, Bonnie Raitt, John Hall – e mais Bruce Springsteen e a E Street Band, James Taylor, Carly Simon, The Doobie Brothers, Nicolette Larson, Ry Cooder, Jesse Colin Young, Chaka Khan, Tom Petty and the Heartbreakers, Crosby, Stills & Nash.
No Nukes. Aqui neste distante país periférico, claro que comprei o disco No Nukes, álbum triplo, que eu saiba o segundo álbum triplo da história, depois de All Things Must Pass, que George Harrison gravou logo depois do fim dos Beatles, em 1970.
No Nukes, cantavam, exatos dez anos depois de Woodstock, os grandes músicos que haviam sobrevivido ao fim do sonho.
É fascinante ver hoje como Síndrome da China – execrado na época do lançamento pelos executivos da indústria – não é, de forma alguma, um libelo, um panfleto contra as usinas nucleares.
Não é, não, de forma alguma. Mas gostaria de falar sobre isso mais adiante, para encerrar esta anotação. Antes, gostaria de registrar alguns fatos sobre o filme – e opiniões de quem entende.
Logo em seguida viriam vários filmes sobre o tema
Em 1979, quando o filme foi feito, só existia nos Estados Unidos uma usina nuclear que oferecia visitas guiadas a uma galeria da qual se podia ver a sala de controle – a Trojan Nuclear Power Plant, no Oregon, perto do Rio Columbia. Foi com base nessa sala de controle que a direção de arte criou a sala de controle da Ventana Nuclear Power Plant do filme.
A informação é da página de Trivia sobre o filme no IMDb, de onde tirei também as que vêm a seguir:
* Embora o filme tenha ficado associado ao acidente de Three Mile Island, os fatos fictícios mostrados têm mais a ver com o que havia acontecido em 1975 em uma usina nuclear do Alabama, chamada Browns Ferry. O incidente no Alabama foi causado por uma série de falhas de construção, mais itens operacionais. Nunca houve qualquer acidente em usina nuclear da Califórnia.
* Síndrome da China foi o primeiro de uma série de filmes sobre energia nuclear e bombas nucleares que Hollywood realizaria nos anos 80. Entre eles estão Silkwood, Retrato de uma Coragem (1983), O Testamento (1983), Catástrofe Nuclear (1984), Jogos de Guerra (1983), O Dia Seguinte (1983), The Atomic Cafe (1982), Jogos Fatais (1986), Whoops Apocalypse (1982), Special Bulletin (1983), Ground Zero (1987), Barefoot Gen (1983), Rules of Engagement (1989), Quando o Vento Sopra (1986), Cartas de um Homem Morto (1986), Memoirs of a Survivor (1981), Reação em Cadeia (1980).
* O papel de Kimberley Wells foi originalmente escrito para um homem.
Diacho: uma das coisas mais inteligentes que os realizadores fizeram foi transformar o repórter em a repórter!
Jane Fonda conta que o diretor não queria fazer o filme
Uma curiosidade interessante: este foi um dos dois filmes de 1979 em que Jane Fonda interpreta uma repórter de TV. O outro foi O Cavaleiro Elétrico, de Sydney Pollack – um dos quatro filmes em que ela contracenou com Robert Redford.
Ah, Jane Fonda…
Que criatura maravilhosa, meu Deus.
Em sua esplêndida autobiografia, Minha Vida Até Agora, Jane Fonda fala bastante de Síndrome da China. Michael Douglas – conta – mandou para ela o roteiro do filme, enquanto ela fazia Amargo Regresso/Coming Home – o filme que daria a ela seu segundo Oscar (depois de Klute, de 1971). “Tudo no roteiro emanava autenticidade, pelo fato de ter sido escrito por Michael Gray, que estudara para se tornar engenheiro nuclear, era um extremo conhecedor de tudo o que houvera de errado com a tecnologia nuclear, em várias usinas, ao longo os anos, e havia consultado, pessoalmente, vários engenheiros que pediram demissão da General Electric por preocupações quanto à segurança.”
Jane e Bruce Gilbert, seu colega na produtora dela, se uniram ao projeto de Michael Douglas, e queriam que a direção fosse de James Bridges. “Ele era excepcional em histórias conduzidas por personagens, e não via nosso suspense nuclear como algo adequado aos seus talentos pessoais. Enquanto Michael continuava em Coma e eu estava no Colorado filmando Raízes da Ambição, Bruce continuou tentando com Bridges, se empenhando para animá-lo com a idéia de criar uma história paralela ao acidente nuclear: a transformação dos noticiários de TV em entretenimento informativo, com uma repórter encurralada entre a pressão de seu chefe de departamento, que quer sepultar a história nuclear, e seu crescente compromisso para que esta seja contada. A repórter Kimberley Wells é ambiciosa, e não quer jogar tudo para o alto, mas também se ofende por ser obrigada a falar bobagens e ter que ouvir como deve se apresentar.”
E aí há um trecho sensacional, em que Jane revela idiotices fantásticas que ouviu de Jack Warner, um dos dois Bros da Warner Bros, e de Joshua Logan, que a dirigiu em seu filme de estréia, Até os Fortes Vacilam/Tall Story, de 1960:
“Contei a Jim as histórias de meu início em Hollywood, quando Jack Warner queria que eu usase enchimentos de seio e Josh Logan sugeriu que eu tivesse o queixo quebrado e remodelado, para que minhas bochechas parecessem mais fundas. Essas foram questões pessoais para mim.”
Jim Bridges então topou dirigir o filme. Também, se não topasse, mereceria o Oscar da Absoluta Babaquice.
Jane Aeróbica foi uma consequência do filme!
Ainda Jane Fonda.
Entre as trívias sobre o filme no IMDb, aparecem duas menções ao fato de que, quase ao fim das filmagens, ela quebrou o tornozelo.
“Ter quebrado o tornozelo no set deste filme significou que Fonda não poderia mais ter aulas de balé, como havia tido durante anos. Em vez disso, passou a fazer aeróbica, o que a levou aos famosos exercícios caseiros transformados em vídeos de grande sucesso.”
Ah, não é possível! Quer dizer então que Síndrome da China tem a ver com o fato de ela – de início a linda jovem filha do grande Henry, depois a musa sexy a partir de sua encarnação como Madame Roger Vadim, depois a rebelde radical Hanoi Jane – ter adquirido a nova persona de Jane exercícios aeróbicos Fonda?
Ah, não!
Ah, sim. Está lá na autobiografia da deusa:
“Em 1978, durante as filmagens de Síndrome da China, quebrei o pé novamente, portanto o balé se tornou impossível para mim, ao menos no futuro próximo. Por mais de 20 anos, o balé, com sua rigidez clássica, estrutural e musical, havia sido meu porto seguro, meu jeito de manter a forma e o meu contato, mesmo que tênue, com meu corpo. O que fazer? Eu tinha que entrar em forma para o meu próximo filme, California Suite, no qual teria que aparecer de biquíni. Compreendendo a minha urgência, Shirlee, minha madrasta, sugeriu que, quando o pé estivesse suficientemente curado (onde estava aquele unguento vietnamita de crisântemo de que eu tanto precisava ?), eu deveria dar uma olhada nas aulas do Gilda Marx Studio, em Century City, Califórnia. Shirlee disse que a professora era maravilhosa. Seu nome era Leni Cazden.”
E aí o mundo conheceu as aulas aeróbicas de Jane Fonda!
“Drama de acelerar o coração”
Tanto Leonard Maltin quanto Roger Ebert dão a Síndrome da China a cotação máxima de 4 estrelas.
Diz Leonard Maltin, o autor dos guias de filmes mais vendidos do mundo na época em que se vendiam guias de filmes:
“Drama de acelerar o coração sobre tentativa de encobrir um acidente em uma usina nuclear da Califórnia é tanto um estudo sobre os noticiários de televisão quanto uma história sobre a energia nuclear – e consegue sucesso nas duas frentes. Não há trilha sonora; a tensão da história impulsiona o filme por si só, juntamente com sólidas atuações de Fonda como uma repórter de TV, Douglas (que também produziu o filme) como um cameraman radical e especialmente Lemmon como um dedicado executivo da usina. Roteiro de Mike Gray, T.S. Cook e Bridges.”
Maltin escrevia resenhas curtas, de tal forma que pudessem caber nos seus guias que falavam de 16 mil filmes. Roger Ebert, embora escrevesse antes da invenção da internet, esse meio que permite que as anotações sejam tão grandes quanto um Guerra e Paz, sempre se alongou muito mais. Ele começa assim sua longa crítica:
“The China Syndrome é um magnífico thriller que incidentalmente levanta as questões mais perturbadoras sobre quão seguras as usinas nucleares realmente são. Foi recebido por alguns como um filme político, e as pessoas ligadas a ele não fizeram segredo sobre suas dúvidas sobre a energia nuclear. Mas o filme é, sobretudo, entretenimento: boas atuações, boa construção, dá um medo danado. Os eventos que levam ao ‘acidente’ em The China Syndrome são de fato baseados em ocorrências reais em usinas nucleares. Até o mais improvável contratempo (uma agulha presa num gráfico, levando os engenheiros a não lerem corretamente o crucial nível de água) de fato aconteceu na usina de Dresden perto de Chicago. Ainda assim, o filme funciona tão bem não por causa das suas bases factuais, mas por causa do seu conteúdo humano. As atuações são tão boas, tão consistentes, que The China Syndrome se transforma em um thriller que lida com valores pessoais. O suspense é gerado não apenas por nossos temores sobre o que poderia acontecer, mas pela nossa curiosidade sobre como, no final das contas, os personagens vão reagir.”
Ahnnn…
Minha admiração por Roger Ebert cresce a cada vez que leio um texto dele.
“Tudo foi checado várias vezes. O sistema funciona”
O jovem Michael Douglas provavelmente era mesmo um opositor da energia nuclear, assim como era, segundo diz Jane Fonda, o grande Jack Lemmon. Jane Fonda ainda não era a moça da aeróbica – era a Hanoi Jane, a rebelde, radical, “esquerdista”.
E, no entanto, Síndrome da China não é um filme contra a energia nuclear.
Síndrome da China não é No Nukes.
O personagem de Jack Lemmon, esse Jack Godell que havia sido oficial da Marinha, e comandado submarino movido a energia nuclear, faz uma beleza de profissão de fé na energia nuclear, na sequência em que se encontra com a repórter Kimberley Wells no bar perto da usina. – “É seguro!”, ele diz. – “Tudo foi checado várias vezes, várias vezes. O sistema funciona.”
O sistema funciona.
É impossível rever Síndrome da China hoje e não pensar também em Chernobyl, a extraordinária série que reproduz – ao que tudo indica com uma fidelidade canina – os acontecimentos na usina nuclear da Ucrânia, então União Soviética, em abril de 1986, no que foi o até hoje pior acidente nuclear jamais ocorrido.
(Não consegui escrever uma anotação sobre Chernobyl, a série da HBO criada por Craig Mazin. Algumas poucas vezes isso me acontece: não me sinto em condições de escrever sobre algumas obras que me são impactantes demais.)
A série Chernobyl quer dizer, quer demonstrar – na minha opinião – que a União Soviética simplesmente não estava preparada para lidar com energia atômica. O pessoal da usina não tinha o treinamento necessário, o conhecimento necessário – e enfrentar um acidente numa usina com pessoal não propriamente qualificado, e dentro de uma ditadura, que proíbe a circulação de informações, é algo semelhante a entregar um revólver armado e destravado a uma criança de dois, três anos de idade.
(A imagem de entregar um revólver armado e destravado a uma criança de dois, três anos de idade, como sinônimo de entregar uma bomba atômica a pessoas despreparadas para lidar com ela é de Fredric Brown, em um de seus fantásticos, admiráveis contos.)
Já Síndrome da China não é algo tão radical. De forma alguma.
Síndrome da China, me pareceu agora, nesta revisão, um forte, duro alerta no sentido de que mexer com energia nuclear pode ser absolutamente seguro – desde que todas as precauções sejam tomadas. Desde que todos os cuidados sejam criteriosissimamente tomados.
O que houve, ali, no caso específico, foi que a empresa construtora não tomou todas as precauções, todos os cuidados. Para economizar nos custos, para amplificar a margem de lucro, passou por cima das necessárias medidas de segurança.
Depois, pelos exatos mesmos motivos, para economizar nos custos, para manter a margem de lucro, a empresa de energia da mesma forma foi irresponsável.
Se ao longo do processo as medidas de segurança tivessem sido tomadas, não haveria problema algum. “O sistema é seguro. O sistema funciona.”
“Emancipate yourselves from mental slavery”
Não tem nada a ver, ou talvez tenha tudo a ver, mas… fui ouvir novamente “Redemption Song”, uma das mais marcantes, impressionantes canções de Bob Marley, que é mais ou menos da época do filme, para tentar checar a referência dele à energia nuclear.
É muito clara:
Emancipate yourselves from mental slavery
None but ourselves can free our minds
Have no fear for atomic energy
‘Cause none of them can stop the time
As pessoas se emanciparem da escravidão mental não é nada fácil, de forma alguma. Basta pensar no que tem acontecido em nosso país nos últimos dolorosos tempos: dissemina-se o negativismo, a anti-ciência, o enfrentamento da vacina.
Aqueles meus ídolos que foram lá ao Madison Square Garden cantar contra o uso da energia atômica, tadinhos, estavam fazendo papel de tolos.
Bob Marley, depois de fumar um charutão, é que estava certo: não tenham medo da energia atômica.
Desde que a usina tenha sido feita por gente decente, diria este Síndrome da China.
Anotação em outubro de 2020
Síndrome da China/The China Syndrome
De James Bridges, EUA, 1979
Com Jane Fonda (Kimberly Wells, a repórter),
Jack Lemmon (Jack Godell, o supervisor da sala de controle),
Michael Douglas (Richard Adams, o cinegrafista)
e Scott Brady (Herman DeYoung, o chefe de operações), James Hampton (Bill Gibson, o relações públicas), Peter Donat (Don Jacovich, o chefe de jornalismo da TV), Wilford Brimley (Ted Spindler, o segundo de Jack Godell), Richard Herd (Evan McCormack, o presidente da empresa), Daniel Valdez (Hector Salas, o auxiliar de Richard Adams), Stan Bohrman (Peter Martin), James Karen (MacChurchill, o superior imediato de Kimberley Wells), Michael Alaimo (Greg Minor), Donald Hotton (Dr. Lowell, o professor de Física), Khalilah Ali (Marge), Paul Larson (D.B. Royce), Ron Lombard (Barney), Tom Eure (Tommy), Nick Pellegrino (Borden), Dan Lewk (Donny), Rita Taggart (Rita Jacovich)
Argumento e roteiro Mike Gray & T.S. Cook e James Bridges
Fotografia James Crabe
Montagem David Rawlins
Produção Michael Douglas, Columbia Pictures, Major Studio Partners. DVD Columbia Pictures.
Cor, 123 min (2h03)
Disponível em DVD.
R, ****
Olá Sérgio e demais, tudo bem? Antes de tudo eu preciso agradecer pelos textos incríveis, densos, aprofundados em temáticas diversas, bem analisados, criticados em essência e não na superficialidade, enfim.. agradecer imensamente pela disponibilização de forma gratuita aos textos tão incríveis que estão aqui quanto no 50 anos de filmes.
Há muitos e muitos anos eu acompanho o site, é um dos meus preferidos para ler críticas de filmes, séries. Por meio dele já conheci tanto material admirável e conheci o outro lado da crítica aprofundada e analisada por diversos ângulos. Infelizmente vemos muitos críticos por aí que se contentam em analisar o superficial (ou na onda do povo ou na onda polêmica da crítica do contra).
Fica então meus agradecimentos de forma sincera aos seus textos. Suas palavras são ouro, se pensadas em quanto disseminam informação que merece ser pelo menos lida e pensada, nem digo concordada. Mas ler é fundamental para evoluirmos.
Bom, tendo isso em vista, quero fazer meu pedido verdadeiro agora, que motivou o e-mail. Eu gostaria muito que houvesse a funcionalidade de newsletter nos seus sites (50 anos de textos e 50 anos de filmes). Isso porque me pego na correria da vida (como o resto do mundo) e por meses me esqueço de ler algo dos sites, que me fazem tão bem. Se houvesse um mecanismo de recebimento de newsletter, acho que “me lembraria” mais de acessar os textos, acompanhar mais as ideias, as atualizações.
É só uma dica mesmo, ficarei feliz caso exista a possibilidade. No mais, desejo todo sucesso, alegria, saúde pra vocês e que continuem esse trabalho belíssimo que vêm sendo construído.
Ps. Estou comentando aqui porque a página “Dê sua opinião” não está enviando mensagens.
Abs
Carla