Quando Passagem para a Índia – o último dos 16 filmes realizados pelo mestre David Lean, em 1984 – está com 47 dos seus 163 minutos que passam bastante depressa, a protagonista da história, a jovem inglesa Adela Quested, o papel de Judy Davis, então com 29 anos, se aventura em um passeio de bicicleta.
Era a primeira vez que Adela saía da Inglaterra – antes, jamais tinha sequer atravessado o Canal da Mancha e visitado a França. Havia acabado de chegar a Chandrapore, no interiorzão bravo daquele mundo misterioso, estranho, insondável que é a Índia. E se aventura em um passeio de bicicleta por um lugar um tanto distante da cidade, no meio do mato. No meio do mato, numa terra estranha, a jovem inglesa que, àquela altura já sabemos perfeitamente, é virgem, sem qualquer tipo de experiência sexual, observa diversas estátuas abandonadas ali no campo – estátuas de homens e mulheres se beijando, se abraçando, se pegando.
A sequência dura cinco minutos.
Não há uma palavra sequer – Adela está sozinha, no meio daquela exposição de sensualidade indiana. Ouvimos apenas a trilha criada pelo grande Maurice Jarre, um dos mais frequentes colaboradores de Sir David Lean.
É cinema puro. Imagens em movimento, nenhuma palavra. Algo de que só o cinema é capaz.
Planos gerais – Adela andando de bicicleta numa trilha em meio à mata. Close-ups do rosto de Adela-Judy Davis com um ar de curiosidade, espanto, perplexidade. Planos médios dos locais em que ficam as estátuas. Close-ups das estátuas.
Cinema puro – cinema da mais alta qualidade.
De repente, há movimentos, ruídos: junto de um conjunto de estátuas, um bando imenso de macacos se ouriça com a presença inesperada de um ser humano.
A música fica mais alta. Os macacos fazem um barulho imenso, e se movimentam como se fossem aliens dos filmes dos anos 1950, ou zumbis dos filmes americanos de terror de qualquer década, prestes a atacar, estraçalhar, fazer picadinho.
Adela vai sendo tomada pelo pânico. O espectador também.
Ela consegue fugir dos macacos – monta de novo em sua bicicleta e pedala, pedala, até chegar, suada, sem fôlego, à casa em que está hospedada, a bela casa de seu namorado, o jovem magistrado Ronny Heaslop (Nigel Havers), uma autoridade ali na cidade.
Adela tinha viajado juntamente com a mãe de Ronny, a doce, suave Mrs. Moore (o papel da grande Peggy Ashcroft, à direita na foto abaixo), desde a Inglaterra num imenso transatlântico não muito diferente do Titanic, que havia afundado pouco anos antes – o filme não mostra explicitamente quando se passa a ação, mas é anos 1920.
Não é dito claramente hora alguma, mas o filme deixa bastante claro para o espectador que Ronny e Adela haviam iniciado um namoro na Inglaterra. Agora, a mãe e a namorada haviam ido visitá-lo naquele pedaço distante do Império Britânico – e, naturalmente, haveria a possibilidade de os jovens ficarem noivos.
Quando Adela chega de volta à casa, suada, sem fôlego, após uma experiência que a havia deixado em pânico, Ronny se aproxima dela, pergunta se está tudo bem. Qualquer um poderia ver que não está tudo bem, mas ela mente que sim.
Essa sequência, como foi dito, começa quando o filme está com 47 minutos. O espectador já havia visto, antes disso, que Ronny tinha recebido a namorada de maneira gentil, polida, educada – e nada mais que isso.
Nenhum carinho. Nenhum toque de pele – por mais respeitoso, contrito, delicado ou assexuado que fosse.
Na primeira noite que Mrs. Moore e Adela passam na casa de Ronny, Adela está no quarto destinado a ela, de porta encostada – e Ronny passa pelo corredor e diz boa noite, do lado de fora, sem entrar sequer para dar um beijinho na face da namorada que havia viajado meio mundo para estar com ele. A câmara do diretor de fotografia Ernest Day focaliza em close-up o rosto de Adela-Judy Davis – e o espectador vê a decepção, a frustração estampada no rosto.
Quando o filme está bem no meio dos seus 163 minutos de grande, extraordinário cinema, há o momento de clímax da história criada nos anos 1920 pelo escritor E.M. Forster: Adela tem um momento de absoluto pânico dentro de uma das grandes cavernas de Marabar – e em seguida acusa o pobre e inocentíssimo médico indiano Aziz (Victor Banerjee, na foto abaixo) de ter tentado estuprá-la.
Um absoluto domínio de direção, roteiro e montagem
Quis realçar a beleza e a importância dessa sequência impressionante do passeio de bicicleta de Adela porque ela demonstra, da maneira mais clara possível, como e por que David Lean é um dos maiores realizadores da História do cinema.
Lean é de 1908. Estava portanto com 76 anos quando lançou A Passage to India, que viria a ser o último de seus filmes. Já era, então, globalmente reconhecido, aclamado, premiado – pelo Oscar, pela Rainha, por tudo possível e imaginável.
Poderia encomendar os roteiristas que quisesse, os montadores que quisesse.
E no entanto resolveu assumir sozinho, absolutamente sozinho, a tarefa de escrever o roteiro do filme – e de fazer a montagem!
Um desafio e tanto: adaptar o romance de E.M.Forster (usando para isso também a peça teatral feita a partir do romance por Santha Rama Rau). Escolher o que tirar fora, o que deixar de lado, o que realçar. Escrever os diálogos todos – mantendo os originais do livro, ou adaptando uma coisa ou outra. E escrever o roteiro em si, ou seja, determinar como cada cena seria filmada.
Foi a única vez, creio, que David Lean assinou sozinho um roteiro.
Em três de seus primeiros filmes como realizador, feitos a partir de peças teatrais de seu amigo Noël Coward, assinou o roteiro com dois colegas, Ronald Neame e Anthony Havelock-Allan. Para fazer a adaptação de Grandes Esperanças, o romance de Charles Dickens, trabalhou com Ronald Neame, Anthony Havelock-Allan, Kay Walsh e Cecil McGivern.
Para em seguida adaptar outro romance de Dickens, Oliver Twist, um dos mais populares de toda a literatura inglesa, ele assinou o roteiro ao lado de Stanley Haynes – e colaboraram com eles Eric Ambler e Kay Walsh. Bem mais tarde, para transformar em algo filmável Doutor Jivago, o cartapácio de Bóris Pasternak, recorreu a um respeitadíssimo escritor e dramaturgo, Robert Bolt.
Já para fazer A Passage to India…
Um senhor de 76 anos de idade, tendo todas as tarefas de um diretor, o maestro do gigantesco empreendimento – depois de ter trabalhado sozinho na transposição para o cinema do romance de E.M. Forster. E, após as filmagens, o senhor de 76 anos foi para o laboratório e fez toda a montagem! A edição final, a escolha de qual das várias tomadas de cada sequência seria aquela que figuraria no filme!
Ser o montador não foi novidade para ele, é claro. Assim como Robert Wise, o cara que dirigiu obras-primas como O Dia Em Que a Terra Parou e West Side Story, para citar apenas duas, David Lean começou a carreira como montador. Assinou a montagem de sete filmes (entre eles alguns filmaços, como Pigmalião) antes de dirigir seu primeiro longa-metragem, em 1942, o excelente Nosso Barco, Nossa Alma/In Which We Serve.
Não me lembrava de que em A Passage to India David Lean foi o único roteirista e o único montador. Achei isso absolutamente fascinante, e por isso quis abrir este texto com aquela sequência em que ele demonstra ser um gênio, um monstro, um mágico – do roteiro, da direção e da montagem. Simplesmente as três etapas fundamentais da elaboração de um filme.
O cineasta dos choques culturais
“Seus filmes em geral examinam relações e diferenças entre duas culturas e pontos de vistas opostos”, diz, num momento de puro brilho, o IMDb, o grande site enciclopédico sobre filmes.
Falou tudo.
Em Quando o Coração Floresce/Summertime, de 1955, o seu filme de número 11, o último antes das grandes superproduções, os grandes épicos, temos a relação entre um italiano um tanto malandro com uma americana muito necessitada de um amor. Em A Ponte do Rio Kwai, de 1957, há o embate entre o coronel inglês e o coronel japonês – ambos igualmente inflexíveis, cada um defendendo um lado oposto do universo. Em Doutor Jivago, de 1965, há a visão do poeta que se opõe radicalmente à visão oficial do Partido de que havia acabado a vida pessoal, os sentimentos pessoais na Rússia do Novo Homem Socialista. Em A Filha de Ryan, de 1970, há um absoluto choque cultural entre um velho professor e toda a comunidade que o cerca, no interior da Irlanda de 1916.
Mas me parece que o filme de Lean que mais se aproxima, em termos de tema, deste A Passage to India seja Lawrence da Arábia, de 1962.
Lawrence da Arábia é um filme baseado em fatos reais, em personalidades reais. Peter O’Toole faz o papel de T.E. Lawrence, o militar inglês que atuou como personagem importantíssimo nas lutas dos países árabes para se libertar do colonialismo das grandes nações européias.
A Passage to India é, assim como Lawrence da Arábia, um mergulho na questão do colonialismo de uma maneira ampla, geral e irrestrita, e do domínio britânico sobre metade do mundo de maneira específica.
Um médico indiano que tem admiração pelos ingleses
Tanto a mãe quanto a namorada do magistrado inglês Ronny Heaslop chegam à Índia de mente aberta, querendo conhecer aquele mundo, aquele planeta distante.
Mrs. Moore e Adela Questad ficam chocadas com a forma com que os ingleses tratam os indianos. Quase todos os ingleses da cidade de Chandrapore que as duas recém-chegadas ficam conhecendo tratam os indianos como seres inferiores, subalternos. Quase como animais, vindos ao mundo para servir aos seus senhores, os dominadores, os colonizadores.
Quase todos os ingleses. Há uma única exceção: o diretor do colégio britânico da cidade, Richard Fielding (o papel de James Fox).
Por puro acaso, a simpática Mrs. Moore fica conhecendo o dr. Aziz (o papel, como já foi dito, de Victor Banerjee), e simpatiza com ele. Pouco depois, a boa senhora pede que se organize um encontro com alguns indianos, para conhecer um pouco daquele povo. Fielding então convida para sua casa, para uma conversa com as duas inglesas recém-chegadas, o dr. Aziz e Godbole, o professor de Filosofia do colégio, um velho brâmane. (Godbole é interpretado por Alec Guinness, que já havia trabalhado três vezes sob a direção de Lean).
Godbole é tipo peculiar, esquisito, excêntrico, aos olhos de qualquer ocidental. É um filósofo, um religioso, que vive muito distante das coisas materiais deste mundo de Deus e o diabo. (Os brâmanes – consultei agora, não me lembrava, se é que já soube – são os membros da casta sacerdotal da sociedade indiana.)
Já o jovem e belo dr. Aziz – que virá a ser o segundo personagem mais importante da trama, depois de Adela – é uma personalidade complexa. Tem para com os ingleses sentimentos mistos, um tanto opostos. Considera-os presunçosos, metidos a besta – coisa que eles realmente eram, sem dúvida. Sabe que eles são invasores de sua terra. Ao mesmo tempo, tem imensa fascinação por eles, sua cultura, sua arte, sua riqueza.
Fica absolutamente fascinado por estar na casa de um inglês, conversando com duas senhoras inglesas.
Por vontade de agradá-las, e para evitar que elas eventualmente sugerissem conhecer sua casa – na cabeça dele uma casa humilde demais para os padrões das damas –, ocorre a ele a idéia de convidá-las para irem com ele, com Godbole e com o professor Fielding conhecer a grande atração da região, as cavernas de Marabar.
Pobre Aziz. Coitado: ao fazer o convite, selou sua desgraça. Seria preso e julgado pela Justiça dos conquistadores, dos invasores, acusado de um crime que jamais cometeu: a tentativa de estupro da moça virgem – talvez doidinha para perder a virgindade, quem sabe? – que ficou zonza, tonta com o calor e a força do eco das cavernas.
Há uma frase dita no julgamento pelo militar que comanda a segurança da região, o major McBryde (Michael Culver), e no tribunal funciona como o promotor, que é preciso ser reproduzida. A frase, o conceito, eles provocam ânsia de vômito – mas ela tem que ser reproduzida aqui, porque espelha com perfeição a forma com que os ingleses viam os indianos, segundo este Passagem para a Índia:
– “Quero declarar o que creio ser uma verdade universal. As raças mais escuras sentem-se atraídas pelas mais claras. Mas não vice-versa.”
O advogado famoso que havia vindo de Calcutá para defender o dr, Aziz, Amritrao (Roshan Seth), replica com uma frase que leva os indianos presentes no tribunal ao delírio: – “Mesmo quando a moça é menos atraente que o rapaz?” E nesse momento a câmara mostra em close-up o rosto não belo de Adela-Judy Davis.
A resposta leva os indianos presentes no tribunal ao delírio – mas não tira o sabor amargo, o significado criminoso da ofensa proferida pelo inglês.
Cinco dos seis romances de Forster viraram filmes
Edward Morgan Forster, nascido em Londres em 1879, tinha 27 anos, um diploma de Cambridge e tendências literárias quando foi contratado para ensinar Latim a um jovem indiano de família muito rica que pretendia estudar em Oxford. Syed Ross Masood chamava-se o rapaz. Foi o primeiro contato de E.M.Forster com a Índia; seis anos depois, em 1912, tendo lido diversos, mas diversos livros sobre aquele país multifacetado (citam-se The Aweakening of India, The Rise and Expansion of the British Dominion in India, entre vários outros) e de escritores de lá, fez sua primeira viagem ao subcontinente.
Em 1924, lançou A Passage to India, com esta dedicatória: “Para Syed Ross Masod e para os 17 anos de nossa amizade”.
Syed Ross Masood morreria em 1937. Forster, que viveria até os 91 (morreu em 1970, apenas 14 anos antes do lançamento do filme Passagem para a Índia), escreveu num tributo ao amigo: “Meu débito pessoal a ele é incalculável. Ele me despertou de uma vida suburbana e acadêmica, me mostrou novos horizontes e uma nova civilização, e me ajudou na compreensão de um continente. (…) Ele fez tudo se tornar real e excitante assim que começou a falar, e 17 anos depois, quando escrevi A Passage to India, eu o dediquei a ele, cheio de gratidão e amor, porque o livro jamais teria sido escrito sem ele.”
Segundo Oliver Stallybrass escreve na introdução do livro, “Masood foi provavelmente a primeira pessoa por quem Forster se apaixonou profundamente”. E prossegue: “Ele não compartilhava a homossexualidade de Forster, e quando depois de alguns anos Forster finalmente declarou seu amor, a única resposta de Masood foi um simples ‘Eu sei’.”
Esse editor do livro, Oliver Stallybrass, faz uma indicação interessantíssima, fascinante no seu texto de introdução: Forster teria desenhado o personagem de Richard Fielding, o diretor do colégio, com base em si mesmo. Fielding seria o alter-ego do autor – e o dr. Aziz seria o alter-ego de Syed Rosss Masood.
No filme, no entanto, não há qualquer indicação de que Fielding pudesse ser homossexual. (Na foto abaixo, Victor Banerjee, que faz o dr. Aziz, e James Fox, que faz Richard Fielding.)
E.M. Forster escreveu seis romances. Escreveu também dois livros de contos, dois volumes de ensaios, um volume de crítica literária, duas biografias, dois livros sobre a cidade de Alexandria, onde trabalhou para a Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial, e um volume de relato sobre duas viagens a uma região específica da Índia – mas romances foram só seis. Apenas um deles, The Longest Journey, de 1907, não virou filme ainda.
Além de Passagem para a Índia, são de autoria dele os seguintes livros:
* Where Angels Fear to Tread, publicado em 1905. Foi filmado em 1991, com direção de Charles Sturridge.
* A Room With a View, publicado em 1908. Foi filmado por James Ivory, “o mais britânico dos diretores americanos”, em 1985; no Brasil teve o título de Uma Janela para o Amor; eu nem sabia disso, mas vejo agora que em 2007 cometeram uma refilmagem, um filme feito para a TV, dirigido por Nicholas Renton;
* Howards End, publicado em 1910, foi também filmado por James Ivory, com roteiro de Ruth Prawer Jhabvala e produção do indiano Ismail Merchant. O filme, de 1992, no Brasil é Retorno a Howards End. Em 2017, a BBC fez uma minissérie de 4 episódios e 4 horas de duração;
* Maurice, um livro sobre um jovem homossexual na sociedade eduardiana, foi escrito em 1914, mas só seria publicado em 1971, após a morte do autor. O filme é do mesmo trio glorioso James Ivory-Ismail Merchant- Ruth Prawer Jhabvala.
Vários atores se desentenderam com Lean
Passagem para a Índia, assim como todos os demais filmes de David Lean feitos a partir de 1955 – o ano de Summertime –, teve indicações ao Oscar. Foram 11 indicações – incluindo as categorias de melhor filme, direção, atriz para Judy Davis, roteiro adaptado, fotografia, montagem, som.
Levou apenas duas estatuetas – melhor atriz coadjuvante para Peggy Ashcroft e melhor trilha sonora para Maurice Jarre.
Não teve muita estatueta para o filme porque 1984 era o ano de Amadeus, de Milos Forman, que levou oito Oscars, inclusive os de melhor filme, melhor diretor, melhor ator (para F. Murray Abraham) e melhor roteiro. Levou também o Oscar de melhor som, e não há muito o que discutir, já que o som do filme é realmente extraordinário.
Mas a verdade é que o trabalho dos engenheiros de som Graham V. Hartstone, Nicolas Le Messurier, Michael A. Carter e John W. Mitchell em Passagem para a Índia é magnífico, sensacional, impressionante.
Os ruídos provocados pelos macacos naquela sequência que relatei no início são fundamentais para criar o clima, para dar força a cada tomada. E o eco nas cavernas – o ruído fortíssimo que penetra na cabeça de Adela e só vai parar depois da loucura que é o final do julgamento do dr. Aziz é um elemento chave de todo o filme.
No total, foram 22 prêmios, fora outras 26 indicações.
Um detalhe importante: não adianta procurar no mapa a cidade de Chandrapore, nem as cavernas Marabar. São nomes fictícios, criados por E.M. Forster. Segundo seu editor, Oliver Stallybrass, ele se inspirou na cidade de Bankipore para criar a fictícia Chandrapore, e nas cavernas Barabar para criar as que na ficção têm o nome de Marabar.
Outras informações, a maioria tirada da página de Trivia do IMDb, com pitacos meus, é claro:
* Em 1999, o British Film Institute fez uma lista dos 100 filmes britânicos do século mais admirados; cinco de David Lean estavam na lista, três deles entre os Top Five.
* Onze atores tiveram suas interpretações em filmes de David Lean indicadas para o Oscar: Celia Johnson, Katharine Hepburn, Alec Guinness, Sessue Hayakawa, Peter O’Toole, Omar Sharif, Tom Courtenay, John Mills, Sarah Miles, Peggy Ashcroft e Judy Davis.
Destes 11, três levaram a estatueta para casa: John Mills (de melhor coadjuvante por A Filha de Ryan), Peggy Ashcroft (de coadjuvante por este Passagem para a Índia) e Alec Guinness (de melhor ator por A Ponte do Rio Kwai).
* Os três filmes anteriores em que Alec Guinnes trabalhou sob a direção de David Lean foram A Ponte do Rio Kwai, Lawrence da Arábia e Doutor Jivago. Diretor e ator, no entanto, se desentenderam por causa de Passagem para a Índia, e nunca mais voltaram a se falar. Consta que o ator ficou magoado porque muitas das cenas em que seu personagem, o brâmane Godbole, acabaram desperdiçadas – foram deixadas de lado na montagem final.
* David Lean também se desentendeu com Judy Davis. A atriz austrialiana teria acusado o veterano diretor de ter perdido o toque – Lean havia ficado 14 anos sem dirigir, após o fracasso comercial de A Filha de Ryan, de 1970.
Consta que Peggy Ashcroft e Victor Banerjee também se desentenderam com Lean.
* Lean sempre teve fama de perfeccionista, exigente – e quem trabalha com chefe perfeccionista, exigente, reclama, fica puto. Consta que o clima durante as filmagens ficou tão ruim que o produtor John Brabourne lá pelas tantas exigiu que a equipe dos câmaras desse, no mínimo, um “bom dia” ao diretor.
* Foi o magnífico, extraordinário cineasta indiano Satyajit Ray que indicou para Lean o ator Victor Banerjee para o papel de dr. Aziz. “Era uma questão de orgulho nacional que um indiano fizesse o papel, em vez de um asiático da Inglaterra”, disse o ator.
* A biografia de Victor Banerjee no IMDb é impressionante. Nascido em Calcutá, em 1946, de uma família de rajas – os nobres na sociedade indiana –, graduou-se em Literatura Inglesa, fez pós-graduação em Literatura Comparada, estudou canto (é tenor, participou do Calcutta Light Opera Group) e, como ator, foi dirigido por Satyajit Ray, Roman Polanski, James Ivory, Ronald Neame. Ele continua na ativa.
* David Lean viveu seis meses na Índia, em 1982, para conhecer um pouco do país continental. Foi lá que ele começou a escrever o roteiro, que terminaria depois em Zurique.
* O realizador teve uma conversa de duas horas com Judy Davis – que tinha, então, nove títulos na filmografia, sendo dois deles filmes para a TV. Pediu a ela que dissesse o que, em seu entendimento, havia acontecido dentro da caverna, e Judy Davis respondeu: – “Ela não conseguia enfrentar sua própria sexualidade, e então simplesmente surtou”. Lean decidiu que o papel era dela.
Judy Davis faria belos filmes depois que passou a ser conhecida internacionalmente por sua interpretação de Adela Quested. Woody Allen gosta muito dela: a atriz está em Simplesmente Alice (1990), Maridos e Esposas (1992), Desconstruindo Harry (1997), Celebridades (1998), Para Roma, com Amor (2012).
* Um detalhinho gostoso: a atriz que faz Stella, a filha de Mrs. Moore, que só aparece no finalzinho do filme, em apenas duas sequências, se chama Sandra Hotz. Foi a quinta e penúltima das seis esposas – de papel passado – de David Lean.
Um diretor que mostra “a monstruosidade do império”
Leonard Maltin estranhamente deu apenas 3 estrelas em 4 para o filme: “Meticulosa adaptação do romance de E.M. Forster passado no final dos anos 1920, sobre um choque cultural Leste-Oeste, quando uma jovem britânica de cabeça dura vai à Índia pela primeira vez, acompanhada pela mãe de seu noivo. Não é um grande filme, mas é tão rico em sabor, nuance, e a simples expressividade do filme que ele oferece grande satisfação, apesar de suas deficiências (e extrema duração).”
Até Pauline Kael, sempre disposta a ver pêlo em ovo para falar mal dos filmes, se rendeu: “Essa admirável versão do romance de 1924 de E.M. Forster sobre a tragicomédia do domínio colonial inglês foi adaptada, dirigida e montada por David Lean, que sabe mais do que ninguém como mostrar a monstruosidade do império. Ele alarga a escala da ironia de Forster, e os personagens vivem em lugares mais suntuosos do que poderíamos esperar. Mas eles de fato vivem. Ashcroft vem com um exemplo transcendental do que é que atuar como Mrs. Moore, e Judy Davis está perto da perfeição como a reprimida Miss Quested.”
Roger Ebert deu a cotação máxima de 4 estrelas. Começa seu longo texto dizendo que, em Howards End, E.M. Forster nos adverte de que devemos nos conectador uns aos outros. “Em A Passage to India, ele cria um mundo em que não há conexões, em que indianos e ingleses falam a mesma língua para uns não entenderem os outros, em que não importa o que você diga nas Cavernas Marabar, já que tudo volta como um eco oco e zombeteiro. O romance de Forster é um dos marcos literários deste século, e agora David Lean fez uma das maiores adaptações para a tela que eu já vi. Grandes romances não costumam ser bem traduzidos para a tela. São cheios de ambiguidades, e filmes têm um jeito de fazer todas as suas imagens parecerem fatos reais. A Passage to India é especialmente complicado porque o evento central do romance é algo que acontece fora do palco, ou simplesmente não acontece – você decide.”
E Ebert termina seu texto assim:
“David Lean é um artesão meticuloso, famoso por não medir esforços para deixar cada tomada exatamente do jeito que ele acha que tem que ser. Seus atores aqui são encorajados a dar interpretações sólidas, pensadas, impassíveis, e seu roteiro é um modelo de claridade: lá pelo fim deste filme nós conhecemos aquelas pessoas tão bem, e as compreendemos tão perfeitamente, que só os mais imprudentes de nós gostariam de voltar e ver melhor aquelas cavernas.”
Grande Roger Ebert!
E grande David Lean. Que filme, meu!
Anotação em janeiro de 2021
Passagem para a Índia/ A Passage to India
De David Lean, Inglaterra-EUA, 1984
Com Judy Davis (Adela Quested),
Victor Banerjee (Dr. Aziz),
Peggy Ashcroft (Mrs. Moore), James Fox (Richard Fielding), Alec Guinness (Godbole), Nigel Havers (Ronny Heaslop), Richard Wilson (Turton), Antonia Pemberton (Mrs. Turton), Michael Culver (McBryde), Art Malik (Mahmoud Ali), Saeed Jaffrey (Hamidullah), Clive Swift (major Callendar), Ann Firbank (Mrs. Callendar), Roshan Seth (Amritrao, o advogado famoso), Sandra Hotz (Stella, a filha de Mrs. Moore), Rashid Karapiet (Mr. Das, o juiz substituto), H.S. Krishnamurthy (Hassen), Ishaq Bux (Selim), Moti Makan (o guia), Mohammed Ashiq (Haq), Phyllis Bose (Mrs. Leslie)
Roteiro David Lean
Baseado no romance homônimo de E. M. Forster e na peça de Santha Rama Rau
Fotografia Ernest Day
Música Maurice Jarre
Montagem David Lean
Produção EMI Films, HBO, Thorn EMI Screen Entertainment, New Gold Entertainment. Distribuição Columbia Pictures.
Cor, 163 min (2h43)
Disponível em DVD.
R, ****
Belíssima despedida do grande diretor David Lean, tudo no filme é impecável, vou só mencionar essa pouca conhecida, mais grande atriz Peggy Ashcroft.
Prezado Sérgio
Seus textos seguem ótimos.
Apenas uma observação (o que é nada, considerando o volume de informações que seus comentários trazem) sobre os filmes que ganharam os 5 principais Oscars.
Amadeus não faz parte dessa lista (os oito Oscars que ganhou foram filme, diretor, ator, roteiro, direção de arte, figurino, maquiagem e som).
A melhor atriz no Oscar de 1985 (filmes de 1984) foi Sally Field por Um Lugar no Coração (que ganhou seu segundo Oscar – o primeiro havia sido por Norma Rae em 1980 – e disse “Vocês gostam mesmo de mim.” no agradecimento).
Além de Aconteceu Naquela Noite (Oscar de 1935/filmes de 1934), Um Estranho no Ninho (1976/1975) e O Silêncio dos Inocentes (1992/1991) foram os filmes que ganharam os Big Five – Oscars de melhor filme, diretor, ator, atriz e roteiro.
Continue nessa empreitada.
Continuo seu fã.
Abraço
André da Costa Ribeiro
Olá, André!
Muitíssimo obrigado – pelo elogio, pela gentileza e pelas correções.
Eu confundi “Um Estranho no Ninho” com “Amadeus”! Eu sabia que, depois de “Aconteceu Naquela Noite”, havia sido o Milos Forman a ganhar os Big Five. E aí confundi. Graças a você, já corrigi a informação errada!
De novo, muitíssimo obrigado!
Sérgio