É dificílimo, quase impossível imaginar hoje o espanto, o furor que O Belo Antonio, de Mauro Bolognini, deve ter provocado em seu lançamento, em 1960. Em especial na Itália, naquela época um país profundamente católico, machista, patriarcal. Anos antes da pílula, antes das grandes manifestações feministas. Antes de toda a revolução dos costumes, da forma de se falar sobre sexo que viria a partir dos anos 60.
Fiquei pensando aqui, depois de ver O Belo Antonio, que haveria algum espanto ainda hoje, tantas revoluções comportamentais depois, se o cinema da Dinamarca – aquela coisa nórdica, avançadíssima, anos-luz em tudo por tudo à frente dos usos e costumes da Sicília, onde se passa a história – fizesse um filme em que um grande e belo ator como Mads Mikkelsen interpreta um homem impotente.
A coragem de Marcello Mastroianni, meu Deus do céu e também da Terra!
Um pai machista, orgulhoso do filho macho
“Uma pintura satírica dos costumes da Sicília, onde a sexualidade ocupa um grande espaço”, diz o Guide des Films de Jean Tulard. “Bolognini simplifica a trama do romance adaptado por dar mais força ao relato, mas a verossimilhança da história sofre um pouco com essa simplificação. Magnífica fotografia e soberba interpretação de Mastroianni.”
Aproveito que já estou com o Guide de Jean Tulard diante de mim para usar o resumo que ele faz da história como base para uma sinopse, uma apresentação da trama:
Depois de passar três anos em Roma, tentando sem sucesso obter uma posição na diplomacia, Antonio viaja de volta para sua cidade, Catânia, na Sicília. Sua beleza garante a ele um grande sucesso entre as mulheres – um sucesso que é glorificado e aumentado por seu pai, Alfio Magnano (Pierre Brasseur, na foto abaixo), um típico siciliano da classe média alta, machista a não mais poder, orgulhoso do filho macho. Alfio havia colocado todo o seu dinheiro na compra de uma propriedade no campo, de onde espera garantir o futuro com a venda de suas laranjas, e tem todo o interesse em arranjar para o filho um casamento com uma jovem rica.
A escolhida é Barbara Puglisi – o papel de uma Claudia Cardinale cuja beleza faiscante quase cega a gente –, filha de um rico escrivão (Ugo Torrente) e uma senhora (Anna Arena) que é filha de um barão (Salvatore Fazio).
Casam-se, vão viver na propriedade do pai dele, no campo – mas o casamento não se consuma.
A sinopse do Guide des Films vai além daqui e revela fatos que estão no final da narrativa. Prefiro, é claro, evitar os spoilers.
Mas gostaria de compreender melhor aquela afirmação do Guide de que o filme de Mauro Bolognini simplifica o romance de uma tal forma que prejudica um tanto a verossimilhança.
No livro, a ação se passa na Itália fascista
Assinam o roteiro do filme Pier Paolo Pasolini e Gino Visentini; consta que o próprio Bolognini também trabalhou no roteiro, embora seu nome não seja creditado.
E aqui é obrigatório dedicar um parágrafo, no mínimo, a Pier Paolo Pasolini (1922-1975), um dos maiores nomes do cinema europeu de todos os tempos. Em 1960, já havia trabalhado – embora nem sempre creditado – nos roteiros de uns dez filmes, inclusive Noites de Cabíria (1957) e A Doce Vida (1960), de Federico Fellini. Só no ano seguinte, 1961, no entanto, estrearia como diretor, com Accatonne.
(Este + de 50 Anos de Filmes aqui tem muitas, muitas, muitas lacunas, mas não ter ainda sequer um dos filmes de Pasolini é uma das piores delas.)
Pasolini, Visentini e Bolognini criaram o roteiro a partir do romance Il Bell’Antonio, de Vitaliao Brancati. Esse Vitaliao Brancati (1907-1954), jornalista, romancista, dramaturgo, nasceu na Sicília de que fala em seu livro, num lugarejo chamado Pachino, na província de Siracusa, no ponto mais ao Sul da ilha, e, portanto, do território italiano. Vinha de uma família de gente ligada às letras: o pai escreveu romances e poemas. A família se mudou para Catânia nos anos 1920, e foi nessa cidade – onde se passa a ação de Il Bell’Antonio – que o jovem Brancati estudou Letras. Formou-se em 1929, e logo depois se radicou em Roma, onde inicialmente trabalhou como jornalista, antes de começar a carreira literária.
Entre 1932 e 1935, escreveu seis romances; Il Bell’Antonio, o quinto deles, saiu em 1949.
A ação do romance se passa em 1930, naquela cidade de Catania que o autor conhecia perfeitamente. No filme, não há referência a datas, mas se depreende que a história acontece naquela época em que a fita foi lançada, final dos anos 50, início dos anos 60.
Registro aqui o óbvio: há uma distância amazônica, jupeteriana entre 1930 e 1960. O belo Antonio do livro vivia na Itália fascista, enquanto o belo Antonio do filme está em uma democracia plena, um país próspero, rico, plural – ainda que enfiado no mesmo machismo, no mesmo patriarcalismo de sempre.
Talvez essa disparidade explique, ao menos em parte, o que o Guide quer dizer com a perda de verossimilhança da história.
Embora não vá relatar em detalhes os eventos da história após o casamento de Antonio e Barbara, acho necessário abordar alguns deles, que são absolutamente básicos para uma avaliação do filme como um todo. Assim, fica o aviso: se o eventual leitor ainda não viu O Belo Antonio, deveria parar de ler por aqui.
Atenção: spoiler. Quem não viu o filme não deve ler
O Belo Antonio é um daqueles filmes importantes que foram lançados quando eu era novo demais e acabei não vendo mais cedo. Sempre tinha ouvido falar dele, mas só vim vê-lo agora. Assim como há distância imensa entre 1930 e 1960, há um Grand Canyon, uma Amazônia entre 1960 e estes nossos tempos de absoluta explicitude.
Seguramente devido aos usos e costumes bem menos explícitos da sua época, e talvez também porque Bolognini tenha preferido focar a sua obra mais nos aspectos sociais, sócio-econômicos, do que no psicológico, o roteiro opta por não mostrar claramente para o espectador alguns pontos fundamentais da trama.
Não fica claro se a impotência de Antonio é ampla, geral e irrestrita, ou, bastante diferentemente, é seletiva – só acontece diante de mulheres belíssimas e/ou que ele ama demais.
Não fica absolutamente claro – apesar da conversa que Antonio tem com seu primo e provavelmente maior amigo, Edoardo (o papel de Tomas Milian), quando o filme se aproxima do fim. É uma bela sequência: os dois estão no carro de Edoardo, é noite, o lugar é bem escuro, muitas vezes não vemos direito os rostos dos personagens. O diálogo não é solto, aberto. Muito ao contrário, é tenso, Antonio não fala as coisas às claras, não explicita. O que é absolutamente típico de uma conversa entre homens – e completamente diferente do que ocorre numa conversa entre amigas mulheres.
E é interessante: o texto da Wikipedia em italiano sobre o filme se encaminha para a hipótese de que Antonio é impotente sempre. Que é mesmo o que as últimas tomadas do filme indicam.
Já Pauline Kael, a grande dama da crítica americana, que acompanhava com muita atenção o cinema europeu, vai no outro sentido.
Na maioria de seus textos, Dame Kael parece ter imenso prazer em falar mal de tudo o que for possível falar mal. (Ao contrário do estilo de Roger Ebert, um crítico apaixonado por filmes e pelo ato de ver filmes, que está sempre disposto a procurar qualidades nas obras que analisa.) O texto dela sobre O Belo Antonio, no entanto, é sóbrio, sério, sereno. Aqui vai, na tradução feita por Sérgio Augusto para a edição brasileira do livro 1001 Noites no Cinema:
“Antonio (Marcello Mastroianni, talvez em sua atuação mais delicada, discreta) faz um dom-juan siciliano cuja vida é destruída pelo conflito entre o amor sagrado e o amor profano. Espera-se que professe a crença da Igreja na pureza pondo em prática ao mesmo tempo a crença de seu pai em que a proeza sexual é a medida do homem, mas Antonio na verdade acredita na pureza e no amor. E assim, embora sendo um grande sedutor com mulheres ‘fáceis’ ou de classe social inferior, é impotente com a jovem pura e bem-nascida a quem ama e desposa. Na adaptação, por Pier Paolo Pasolini, do romance de Vitaliano Brancati, Antonio representa todo o quadro da decadência social e religiosa; é a vítima do sistema. Esse herói altivo, bonitão, não é jamais cômico; o que se tem tratado tantas vezes, exteriormente, como tema de comédia, aqui é tratado internamente – do ponto de vista do homem humilhado, desolado. Durante toda a vida, Antonio ansiará por possuir o ideal, e a própria intensidade do seu anseio pelo amor idealizado o derrotará. Mauro Bolognini dirigiu este sutil estudo satírico sobre a virilidade e a posição social numa cultura católica. Com Pierre Brasseur como o galo empertigado que é o pai, Rina Morelli como a mãe, Claudia Cardinale como a noiva pura e Tomas Milian como o primo.”
O filme escancara a estrutura arcaica da Sicília
Disse acima que Bolognini foca a sua obra basicamente nos aspectos sociais, sócio-econômicos – e é bem verdade. Ao longo dos 105 minutos de duração do filme, O Belo Antonio vai fundo na radiografia de como era atrasada, arcaica, estúpida, suja a sociedade siciliana. Os maiores valores eram a riqueza, as posses, as aparências – e o desempenho sexual dos homens. O macho é o dominador, a mulher é sua escrava. A mulher vale pouco mais que o cocô do cavalo do bandido.
Dos homens exigia-se que comessem o maior número possível de mulheres. Das mulheres “de bem” exigia-se absoluta castidade até o casamento – e fidelidade total e absoluta ao marido.
O trabalho, o emprego, tudo se baseia nas amizades, no quem indica. Respeitável, honrado é quem desfruta da amizade dos poderosos. O Estado serve para dar emprego aos que já eram ricos, já tinham poder.
Não há propriamente vida privada – tudo tem que ser exposto a todos. Pai e mãe de Antonio abrem a janela de seu apartamento e gritam para os vizinhos as suas conquistas, os seus privilégios – da mesma maneira com que todas as famílias agem também.
Todos sabem o que acontece na intimidade das casas de cada pessoa.
Como a Mary resumiu, as pessoas não vivem para ter prazer, felicidade – mas para exibir para os outros o que têm, o que ganharam, o que conquistaram.
E tem mais ainda: como nas estruturas sociais mais retrógadas, mais próximas da Idade da Pedra, ali na Sicília, ou ao menos em parte da sociedade da Sicília, os casamentos são arranjados pelos pais dos noivos!
Antonio tem quase 30 anos de idade – e no entanto quem escolheu sua noiva foi o seu pai, em combinação com o pai da moça!
É absolutamente inacreditável, espantoso, chocante.
Vários filmes italianos dessa época retrataram o horror que era o atraso da sociedade da Sicília. Pietro Germi satirizou os usos e costumes sicilianos em filmes arrasadores – Divórcio à Italiana (1961), com o próprio Marcello Mastroianni e a deusa Stefania Sandrelli, Seduzida e Abandonada (1964), de novo com La Sandrelli.
Após a noite de núpcias, exibia-se na janela principal da casa, voltado para a rua, o lençol manchado de sangue para comprovar que a moça era virgem.
O Belo Antonio não fala desse específico, sórdido detalhe – mas, de resto, escancara com maestria todo essa estrutura arcaica da Sicília.
Um realizador que não teve o reconhecimento devido
No mesmo ano de O Belo Antonio, foram lançados nos cinemas da Itália (e mundo afora também, é claro), A Aventura de Michelangelo Antonioni, Rocco e Seus Irmãos de Luchino Visconti, A Doce Vida de Federico Fellini, Duas Mulheres de Vittorio De Sica.
De um certo modo, era dureza dirigir filmes na Itália de 1960. Como querer competir com Antonioni, Visconti e Fellini – para não mencionar De Sica?
Esse era o doce problema enfrentado por uma porção de grandes realizadores na primeira metade dos anos 60 – Mario Monicelli, Dino Risi, Marco Bellocchio, Pietro Germi, Ettore Scola, Elio Petri, Francesco Rosi, Valerio Zurlini, Bernardo Bertolucci, o já citado Pier Paolo Pasolini e, claro, Mauro Bolognini.
Bolognini (1922-2001), que se dividiu entre a comédia e o drama de costumes, não teve o reconhecimento que mereceria como autor, diz Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores. “A crítica e os distribuidores fazem cara feia para os seus filmes. Sem razão. Deixemos de lado suas comédias, na maioria das vezes de um tom impessoal, para relembrar suas reconstituições históricas e suas adaptações de romancistas famosos (Senilita, baseado em Svevo, Agostino, de Moravia). Seria um certo maneirismo, o gosto pelo quadro a pintar, pela bela imagem, sensíveis em A Grande Burguesia, que explicariam esse desdém? Por que desaprovar seu gosto de antiquário pelos bibelôs, relógios, quadros, bustos e tapeçarias, cujo acúmulo em um interior cria uma atmosfera sufocante? Indubitavelmente, ele é um esteta até na sua reconstituição do hospício de O Segredo das Velhas Escadas na época do fascismo. (…) É preciso fazer justiça a esse grande realizador.”
Uau!
“Dos diretores italianos que começaram suas carreiras nos anos 50, Mauro Bolognini estava entre os que abraçaram os temas sociológicos do neo-realismo do pós-guerra mas se afastaram de seus imperativos estéticos”, diz The International Dictionary of Films and Filmmarkers – Directors, organizado por Christopher Lyon. “Tendo trabalhado na França como assistente de Jean Dellanoy e Yves Allégret, Bologni foi treinado num estilo de produção que envolvia o uso de atores profissionais e sets de estúdio, aspectos da produção deixados de lado pelos neo-realistas. Em seus filmes, Bolognini continuaria a dar ênfase a esses códigos.”
Mais adiante, o livro afirma que Il Bell’Antonio, a terceira colaboração entre Bolognini e o jovem roteirista Pier Paolo Pasolini, foi um dos melhores filmes do diretor e apresentou algumas das melhores atuações de suas duas estrelas, Marcello Mastroianni e Claudia Cardinale.
“Saudemos a audácia e a inteligência de Mauro Bolognini”
Talvez o desejo de Jean Tulard de que se faça justiça a Mauro Bolognini ainda vire realidade.
Em 2008, quase 50 anos depois do lançamento de Il Bell’Antonio, o site francês DVD Classik trouxe uma análise bem longa, séria e atenta sobre o filme, assinada por Par Erick Maurel.
Ele começa como eu, lembrando que mesmo em nossos dias abordar o tema da virilidade, da impotência, dos costumes sexuais já se revela bastante delicado. “Quando se encontram cineastas dispostos a mergulhar aí, muitas vezes se cai na baixaria, no rude, na complacência ou no escabroso”. Imagine-se isso no início dos anos 60, quando o tema devia ser muito mais tabu. “Saudemos a audácia e a inteligência de Mauro Bolognini e de seu jovem roteirista, um tal de Pier Paolo Paolini, por terem ousado enfrentar o tema de frente e por nos ter entregue, com uma visão feroz, uma pintura satírica e sem concessão de uma sociedade italiana em que a anormalidade sexual é vista como uma ferida, sem ter necessidade de ser vulgar nem de mostrar qualquer cena de sexo. Saudemos também a coragem de Marcello Mastroianni que, poucas semanas depois de La Dolce Vita, não teve medo de colocar sua carreira em perigo ao abandonar sua imagem de sedutor jovial, e também a de Claudia Cardinale, que teve aqui um papel ingrato e bastante desagradável. O júri de Locarno não se enganou, e deu ao Bel’Antonio o prêmio máximo de seu festival em 1960, o Leopardo de Ouro.”.
Anotação em maio de 2021
O Belo Antonio/Il Bell’Antonio
De Mauro Bolognini, Itália-França, 1960
Com Marcello Mastroianni (Antonio Magnano),
Claudia Cardinale (Barbara Puglisi),
Pierre Brasseur (Alfio Magnano, o pai de Antonio), Rina Morelli (Rosaria Magnano, a mãe), Tomas Milian (Edoardo, o primo), Ugo Torrente (notário Puglisi, o pai de Barbara), Anna Arena (sra. Puglisi, a mãe de Barbara), Fulvia Mammi (Elena Ardizzone, a vizinha), Patrizia Bini (Santuzza, a empregada), Maria Luisa Crescenzi (Francesca, a empregada), Jole Fierro (Mariuccia), Cesarina Gheraldi (tia Giuseppina), Salvatore Fazio (barão Francesco, o avô de Barbara), Guido Celano (Calderana), Alice Sandro (Nanda)
Roteiro Pier Paolo Pasolini e Gino Visentini e, não creditado, Mauro Bolognini
Baseado no romance de Vitaliano Brancati
Fotografia Armando Nannuzzi
Música Piero Piccioni
Montagem Nino Baragli
Direção de arte Carlo Egidi
Figurinos Piero Tosi
Produção Alfredo Bini, Cino Del Duca, Arco Film, Societé Cinématographique Lyre
P&B, 105 min (1h45)
Disponível em DVD.
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Filme excelente e inesquecível. Vi nada minha adolescência na televisão e ainda hoje, com mais de 50, não esqueço da grande atuação de Marcelo Mastroianni, como da beleza de Cláudia Cardinale. Pequena obra prima.