O Assassino / L’Assassino

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Nota: ★★★☆

Elio Petri (1929-1982) ficou conhecido em todo o mundo principalmente por dois filmes excelentes, impactantes, polêmicos a não poder, que despertaram grandes paixões: Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (1970) e A Classe Operária vai ao Paraíso (1971). Este O Assassino, seu primeiro longa-metragem, de 1961, já mostrava uma dose imensa de talento.

Nos dois filmes que garantiram seu nome entre os grandes do cinema italiano naquela época em que o cinema italiano era o melhor do mundo – entre os anos 50 e meados dos 70 –, Petri teve como protagonista o maravilhoso Gian Maria Volontè, que, embora tenha trabalhado nos mais diversos gêneros, acabaria se tornando um tanto sinônimo de cinema político.

Neste O Assassino, teve a sorte grande de contar com o maior de todos os atores italianos da sua época. Marcello Mastroianni (1924-1996) estava então com gloriosos 37 anos, no auge do estrelato e da beleza jovem-madura. Tinha acabado de estrelar A Doce Vida de Federico Fellini, O Belo Antônio de Mauro Bolognini e A Noite de Michelangelo Antonioni.

O Assassino é daquele tipo de filme em que o protagonista está presente na imensa maioria das tomadas, e assim Marcello Mastroianni é a alma do filme. O Assassino seria completamente diferente se fosse outro o ator a interpretar o protagonista da história, Alfredo Martelli.

Nunca tinha visto O Assassino. Poderia perfeitamente tê-lo visto: nos anos 60, vi dezenas e dezenas de filmes italianos feitos naquela década e na anterior. Ao vê-lo agora pela primeira vez, fiquei incomodado, em especial no início, com o fato de que Marcello Mastroianni interpreta um personagem extremamente antipático.

Creio que era exatamente isso que Elio Petri pretendia: que o espectador ficasse incomodado com a antipatia desse Alfredo Martelli. Como pode ser tão antipático um personagem que vem na pele, na beleza do Apollo Mastroianni, esse ator por quem todo mundo tem imensa simpatia?

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Ao longo de todo o filme, o espectador fica em dúvida: ele matou, ou não matou?

Quando o filme está com uns 10 minutos, Alfredo Martelli é preso. Vai demorar um pouco até que a polícia diga a ele de que ele está sendo suspeito, suspeitíssimo, mas o título já antecipa: ele é suspeito e deverá em breve ser acusado de assassinato. A polícia só espera que ele facilite as coisas e confesse logo que assassinou a facadas sua amante, a bela e rica Adalgisa De Matteis (o papel de Micheline Presle, em fotos abaixo).

Praticamente toda a narrativa se passa ao longo de dois ou três dias, no máximo, a maior parte dela ao longo de um único dia – aquele em que Martelli é preso. Mas a narrativa é entremeada de flashbacks: fatos que Martelli relata aos policiais que o interrogam, e alguns outros de que ele se lembra, que vêm à sua memória naqueles primeiros momentos de prisão.

Ao longo de praticamente todo o filme, o espectador não fica sabendo se Martelli é o assassino ou não – a revelação só vem bem no final dos 97 minutos de bom cinema. A polícia vai apresentando para ele – e para o espectador – todos os indícios que o incriminam.

E aí está a chave do filme, na minha opinião. Se Alfredo Martelli fosse um personagem simpático, cativante, o espectador tenderia a achar que ele é inocente – apesar de todos os indícios contra ele.

Se Alfredo Martelli fosse um bom caráter, gente fina, como o músico Manny Balestero, o papel de Henry Fonda em O Homem Errado, de Alfred Hitchcock, de 1956, cinco anos apenas antes deste O Assassino, não haveria dúvida: todos nós seríamos capazes de jurar que ele era inocente.

Como é um sujeito profundamente antipático – apesar de interpretado por um ator que as audiências sempre amaram –, o espectador fica em dúvida. Não, não, ele não matou, eu pensei, e seguramente todos os espectadores terão pensando também. Mas, ao mesmo tempo, pensando bem… ah, foi ele, sim, os indícios são muito fortes…

Não dá para ter a certeza absoluta, é claro, se Elio Petri queria que os espectadores pensassem dessa maneira. Mas acho que dá para dizer que sim com bastante segurança.

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O homem é rico, mora numa belíssima casa, e é vaidoso, seguro de si

Alfredo Martelli é rico. Não milionário, mas rico. Muito bem de vida. Mora numa belíssima casa – um palazzo, como diz alguém referindo-se ao imóvel amplo, situado no alto de uma escadaria, num bairro antigo e bom de Roma.

A primeira sequência mostra Martelli chegando à sua casa, em um belo carro esportivo. Entrega o carro ao funcionário de um posto de gasolina-garagem bem próximo. Retira o elegante sobretudo, retira o belo paletó. Olha pela janela – na verdade, quer se ver, quer ver sua imagem refletida no vidro da janela. Veremos por diversos pequenos gestos que é um homem vaidosíssimo – sabe que é belo, e tem imenso prazer com isso.

Veremos também, ao longo da primeira meia hora de filme, que ele é um homem vaidoso não somente pelos seus predicados físicos. O Alfredo Martelli que o diretor Petri e o talento de Marcello Mastroianni criam é um homem tão egocêntrico quanto absurdamente cheio de si, com auto-confiança em excesso, que se julga inteligente, perfeito – um ser acima de todas as demais pessoais. Nisso, ele se parece muito com Il Dottore, como é chamado por todos o ex-chefe do esquadrão de homicídio da polícia interpretado por Gian Maria Volontè em Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto.

Martelli põe um disco para tocar, um jazz. Cheira uma flor que trazia na lapela. Prepara a banheira para um banho com água muito quente – e aí temos os créditos iniciais do filme, enquanto aquele sujeito muito bem de vida, aquele burguês filho do mãe desfruta daquela imensa quantidade de benesses que são negadas à imensa maioria das pessoas na face da terra.

Sim, porque, de acordo com o que mostravam, o que diziam os filmes italianos dos anos 1950 até meados de 1970 – o melhor cinema que se fazia no mundo –, pobre era bom, rico era ruim. E não era preciso ser propriamente rico para ser condenado como rico e portanto ruim: se o personagem tivesse alguma folga de dinheiro, ainda que pequena, se não passasse por privações das coisas básicas – teto, emprego – então era no mínimo um piccolo borghese, e portanto um filho da mãe.

Pobre é bom. Se é classe média pra cima, é ruim da cabeça e do pé, é filho da mãe.

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Assim era no cinema italiano daquela época – e Elio Petri capricha, bem de cara, bem no início de seu filme, na demonstração de detalhes de que aquele sujeito Martelli é bem rico, e portanto muito, mas muito filho da mãe.

Imagine! Banho de banheira!

Um pouquinho mais tarde, quando um grande número de policiais chega à casa de Martelli para levá-lo para um interrogatório, ficamos sabendo, através de flashbacks que mostram lembranças dele, que o sujeito era pobre, neto de um antifascista notório. No entanto, tinha renegado suas origens tão dignas, e enriquecido no negócio de venda de antiguidades pelo meio fácil de comprar coisas roubadas das casas dos muito ricos.

Tinha deixado de ser um membro da valorosa classe operária para ser um pequeno criminoso, receptador de objetos roubados, e pior ainda: um comerciante. Um dono de seu próprio negócio. Um nojento capitalista!

Elio Petri foi comunista de carteirinha – mas sai do Partido em 1956

Eram esses os valores do cinema italiano da época. A imensa maioria dos realizadores e roteiristas – se não a totalidade – era de esquerda, socialista ou comunista, naquele tempo em que o Partido Comunista Italiano era o maior de todos os PCs do Ocidente.

O romano Elio Petri, filho de um operário, foi comunista de carteirinha; formado em Literatura pela Universidade de Roma, coordenou as atividades culturais para a juventude do PCI, e escreveu críticas de cinema no L’Unità, o jornal oficial do partido. Deixou o PCI cedo, no entanto, em 1956, por discordar da invasão soviética da Hungria, decidida pelo Kremlin para sufocar a tentativa de revolta do país contra o regime. Saiu do partido, mas, claro, não da ideologia.

Esse Alfredo Martelli, o protagonista de seu primeiro longa, encara com soberba e desprezo os policiais que chegam à sua casa para levá-lo para interrogatório. Manterá essa atitude de soberba durante um bom tempo – até que é colocado preso em uma cela que nada se parece com algo de Primeiro Mundo, de país civilizado, e se assemelha às existentes em países pobres como o Brasil. Numa cela fria, sem cama, sem sequer uma privada, só com aquele buraco terceiro-mundista, e com os maus tratos e agressões verbais dos policiais e carcereiros, finalmente a soberba dele será derrotada.

E os métodos dos policiais que o interrogam – chefiados pelo experiente comissário Palumbo (Salvo Randone) – não são nada civilizados. Bem ao contrário. Só não chega a haver tortura física, mas, de resto, o preso é submetido a todo tipo de arbitrariedade.

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Antes da prisão, os policiais já haviam feito um trabalho intensivo de coleta de informações. Na véspera de sua prisão, Martelli havia se encontrado com Adalgisa De Matteis; havia diversas testemunhas disso, e elas já haviam sido ouvidas pela polícia. Poucas horas depois que Martelli foi embora, Adalgisa foi encontrada morta, vítima de várias punhaladas.

O comissário Palumbo vai soltando as informações obtidas para que Martelli perceba que não tem saída.

O objetivo do interrogatório, dos maus tratos na prisão, é sempre este: fazer com que o acusado confesse.

E aí, por mais que o espectador não tenha tido simpatia por Martelli, por mais que a rigor tenha tido antipatia clara por ele, é impossível não haver uma revolta diante da truculência da polícia.

E, ao longo de toda a narrativa, a dúvida permanece na cabeça do espectador: mas afinal, ele é o assassino, ou não?

Já em seu primeiro filme, Elio Petri se mostra um mestre na narrativa – e na manipulação das emoções do espectador.

Diante de uma notícia de jornal, todos julgam e condenam o acusado

No Dicionário de Cinema – Os Diretores, o grande Jean Tulard define Elio Petri como “um crítico acerbo da sociedade italiana contemporânea”. No seu Guide des Films, ele diz o seguinte sobre O Assassino: “Um encadeamento implacável de fatos conduz à prisão de um antiquário e à sua implicação num assassinato. Cada uma das suas tentativas de se inocentar o torna mais suspeito ainda. O retrato interessante de um burguês ambíguo forma a trama do primeiro longa-metragem de Petri, que ainda tem um pouco de inabilidade mas já é muito representativo de suas opções futuras.”

“Um crítico acerbo da sociedade italiana.” Bela definição – e, pelo que sei, perfeita.

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Há uma sequência extremamente impressionante, quando o filme já passa bastante da metade. Os jornais já noticiaram a prisão do antiquário rico, acusado de ter matado a amante mais velha que o ajudara a subir na vida, emprestando dinheiro, sendo sócia dele durante algum tempo.

E então uma dezena de pessoas que conheciam Martelli de vista – vizinhos, gente que trabalha perto da casa dele, perto da loja – passa a dar depoimentos sobre ele, sobre como ele já dava mesmo mostras de ser capaz de cometer um crime cruel como aquele. Todos com a certeza plena de que ele é mesmo o assassino. Diante de uma pequena informação divulgada pelos jornais, todos vestiram a toga de juiz, e condenaram o sujeito.

É uma duríssima paulada naquelas pessoas todas, e portanto em toda sociedade em que vivem.

Um belo filme.

Anotação em agosto de 2016

O Assassino/L’Assassino

De Elio Petri, Itália-França, 1961.

Com Marcello Mastroianni (Alfredo Martelli)

e Micheline Presle (Adalgisa De Matteis), Cristina Gaioni (Nicoletta Nogaro), Salvo Randone (comissário Palumbo), Andrea Checchi (Morello), Marco Mariani (comissário Margiotta), Franco Ressel (doutor Francesconi), Mac Ronay (o suicida), Toni Ucci (Toni), Max Cartier (Bruno)

Roteiro Pasquale Festa Campanile, Massimo Franciosa, Tonino Guerra & Elio Petri

Baseado em história de Tonino Guerra & Elio Petri

Fotografia Carlo Di Palma

Música Piero Piccioni

Montagem Ruggero Mastroianni

Produção Franco Cristaldi, Titanus, Vides Cinematografica, S.G.C. DVD Versátil, Coleção Folha.

P&B, 97 min

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