Quando fez Feios, Sujos e Malvados, em 1976, o grande Ettore Scola vinha de Nós Que Nos Amávamos Tanto (1974), uma obra-prima, uma absoluta maravilha, um hino ao socialismo, à solidariedade, ao amor, um painel da História da Itália ao longo de três décadas que é também um afresco sobre o próprio cinema italiano.
Já Brutti, Sporchi e Cattivi é um filme exatamente assim: brutto, sporco, cativo. Ugly, Dirty and Bad, como o título em inglês. Seus personagens são exatamente o que diz o título com que foi apresentado no Festival de Cannes, em 26 de maio de 1976: Affreux, Sales et Méchants.
Scola ganhou o prêmio de melhor direção naquele festival.
São muitos personagens, um bando enorme, quatro gerações de uma família que vivem amontados como porcos num barraco miserável em uma favela de Roma, a capital daquele que é um dos sete países mais ricos do mundo. Como notou o maravilhoso crítico Roger Ebert, nem dá para saber direito quantos são os membros da família.
“Não tenho certeza sobre quantos personagens há no filme”, admite já no segundo parágrafo de sua crítica, publicada em janeiro de 1979. E acrescenta: “Tom Allen, do Village Voice, contou um patriarca, 12 filhos e seus filhos e filhas.”
O crítico do Village Voice não menciona a nonna, a avó de alguém – ou do patriarca, Giacinto (o papel de Nino Manfredi), ou da mulher dele, Tommasina (Zoe Incrocci). O filme não explica de quem a nonna é mãe, porque a rigor não importa. Ela é uma figuraça, que consegue ser engraçada no meio de tanta miséria, feiúra, sujeira, malvadeza. É interpretada por Giovanni Rovini.
Já dos demais personagens e dos atores que os interpretam não sei dizer os nomes, não sei especificar quem é quem. Fora Nino Manfredi, não há nenhum ator conhecido no elenco – um elenco todo impecável, é bom registrar. Há gente demais, e fica realmente difícil saber o nome de todos aqueles personagens.
O fato é que eles são, quase todos, feios, sujos, malvados, porcos, desagradáveis, repelentes, nojentos, repulsivos.
Roger Ebert, crítico sério, consciente, que amava os filmes, amava escrever sobre os filmes, sempre procurando encontrar o que havia de bom em cada um deles, quase ao final de seu texto diz que deve haver uma mensagem por aí em algum lugar. E conclui que a mensagem que Scola quis passar foi de que “as crianças estão aprisionadas naquela favela, jogadas numa armadilha, e nunca vão conseguir realizar o seu potencial”.
Sou um apaixonado fã de Ettore Scola, como provam os textos que estão aqui neste site sobre oito dos filmes dele. Tinha visto este aqui na época do seu lançamento, e quis rever para tê-lo aqui no + de 50 Anos de Filmes. Confesso que quase não aguentei. Me vi recorrendo à tecla de avanço rápido algumas vezes.
É muita miséria, feiúra, sujeira, malvadeza demais da conta.
Tá certo: Scola quer nos mostrar que “as crianças estão aprisionadas naquela favela, jogadas numa armadilha, e nunca vão conseguir realizar o seu potencial”.
Scola quer nos mostrar que a miséria é feia, suja, malvada, e transforma os seres humanos em porcos, galinhas, bestas.
Cacete, mas eu já estava cansado de saber disso.
Todos na família se xingam, se odeiam
Consta que Scola pensou primeiramente em fazer um documentário sobre a vida nas favelas de Roma, e só mais tarde decidiu-se por uma história de ficção. Mas a verdade é que história propriamente dita não há: o roteiro original que Scola escreveu juntamente com Ruggero Maccari é apenas uma sequência de situações do dia-a-dia daquele bando de gente. Sobre vários dos personagens o espectador fica conhecendo pouquíssimas coisas – leves traços de personalidade, não mais que isso.
Giacinto, o patriarca, era um operário, provavelmente da construção civil. Sofreu um acidente com cal no rosto, que o fez perder a visão de um olho e deixou seu rosto desfigurado. A tragédia, no entanto, fez com que ele recebesse uma grande bolada da previdência social, uma enorme fortuna naquele universo. E então os filhos, filhas, noras e genros de Giacinto cobiçam aquela fortuna, torcem para que ele morra. Na verdade, mais do que torcem: fazem planos, chegam a botar alguns deles em ação.
Todos se xingam constantemente, sem parar. Giacinto e sua mulher Tommasina parecem se odiar – lá pelas tantas, ele a agride com uma faca, provoca um corte feio no braço.
Irmão come a mulher do outro irmão. Giacinto vai dar bronca na nora que deu para o cunhado e aproveita para tentar comê-la também.
Trepa-se como coelhinho, rapidinho, da forma mais animal possível.
Giacinto fica conhecendo uma prostituta de cara bonachona, uma figura felliniana, gorda como a senhora da tabacaria de Amarcord (1973), chamada Íside (Maria Luisa Santella). Não pensa duas vezes: leva Íside para casa, dorme entre ela e Tommasina.
Numa noite, a colcha é curta para cobrir os três, a bunda de Iside fica à vista; um dos muitos habitantes do barraco vai lá e come a mulher. A câmara focaliza a cara de Giacinto-Nino Manfredi dormindo e sendo sacudido pelos movimentos do outro, atrás de Iside.
Um nojo.
Da favela dá para ver o domo de uma catedral
Uns poucos personagens se destacam, entre aquela penca de filhos, filhos, noras, genros. Há uma garota aí de uns 18 anos que é bonita e gostosa; posa para revistas que imitam a Playboy, leva dinheiro para casa. Parece ser a preferido de Tommasina – não se sabe se porque é bonita ou se porque leva dinheiro para casa. De vez em quando chega à favela de carona em algum carrão. Se tudo der certo na vida dela, se os santos e a sorte ajudarem, ela virá a ser uma puta de luxo.
Infelizmente, não fiquei sabendo o nome da jovem atriz, nem da personagem. Como também não sei o nome nem da menina nem da personagem que ela representa, uma neta de Giacinto e Tommasina, apenas entrando na adolescência, aí de uns 12 ou 13 anos. É a personagem mais simpática do filme, juntamente com a velha nonna – que se diverte diante da TV o dia inteiro e não faz mal a ninguém.
Essa garotinha parece ser a única daquela imensa família que de fato trabalha. Todo dia, bem cedinho, usando uma bota de borracha grande, colorida, ela sai do barraco carregando uns cinco baldes e vai até a torneira comunitária que serve a todos aqueles barracos. Cabe a ela, também, reunir todas as crianças menores daquele pedaço da favela e levá-las para um cercadinho, onde passam várias horas do dia. Mais tarde, é ela também que vai lá abrir a fechadura da porta do cercadinho para que as crianças voltem para casa.
Há algumas tomadas dessa garota junto da torneira comunitária ao longo do filme, e elas são importantes. Daquele local, dá para a câmara mostrar que, logo ali embaixo do morro não muito alto em que fica a favela, há uma grande via expressa. E ao fundo, na linha do horizonte, dá para ver o domo de uma grande igreja – e qualquer um pode inferir que é a Basílica de São Pedro, no Vaticano.
A metáfora é claro, óbvia, paquidérmica. Tão perto dos tesouros da Santa Madre Igreja, tão longe de Deus. Ou, caso Scola conhecesse o grande poeta baiano, Senhor Deus dos Desgraçados / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus…
Creio que não chega a ser propriamente um spoiler dizer que, ao final do filme, há mais uma tomada dessa garota junto da torneira comunitária, o domo da Basílica de São Pedro ao fundo. É a imagem que fez Roger Ebert falar que a moral da história que Scola nos conta neste filme é repetida, escancarada na cara do espectador mais de uma vez.
“Qual é a lição?”, pergunta o grande crítico
Quero transcrever pelo menos alguns trechos do que diz o grande Roger Ebert sobre o filme, para o qual deu 2.5 estrelas em 4.
“Down and Dirty de Ettore Scola se posiciona de uma forma um tanto difícil em um dos locais de invasores de terrenos em Roma, e sua família maltrapilha vive em sua cabana de papel de parede como um cruzamento entre os caipiras de Erskine Caldwell e os refugiados urbanos do Dodeskaden Kurosawa.”
Vi Dodeskaden há muitas décadas, lembro muito pouco do filme, mas gostaria de aproveitar a referência a Akira Kurosawa para dizer que este Feios, Sujos e Malvados de Scola parece, sim, ter bebido no mestre japonês. Em Dodeskaden, como diz Ebert, e também, seguramente, em Ralé, o clássico de Kurosawa de 1957 baseado no russo Máximo Gorki.
O segundo parágrafo da crítica de Ebert começa com aquelas frases que já reproduzi mais acima:
”Não tenho certeza sobre quantos personagens há no filme. Tom Allen, do Village Voice, contou um patriarca, 12 filhos e seus filhos e filhas. Mas é improvável que eles pudessem na realidade viver como vivem no filme, todos apertados uns sobre os outros, o tornozelo de um batendo no queixo do outro, numa bagunça incrível. Qualquer um com algumas liras (a filha atraente que posa para revistas de mulheres nuas, por exemplo) teria imediatamente fugido dali.
“Mas, neste filme, ninguém foge. Este é um dos temas de Scola. Imagino que a cultura da pobreza cria uma população de pessoas consanguíneas, que só olham para dentro, e nunca entendem muito bem a piada ruim de sua própria existência.
“As pessoas em Down and Dirty precisam apenas levantar seus olhos (como a câmara de Scola faz) para ver as torres e monumentos de Roma ali perto. Mas elas nunca fazem isso.
“O próprio filme se alterna entre ficar chocado com a miséria e se divertir obscenamente com ela. Nino Manfredi é o protagonista, no papel do velho patriarca cinzento (embora ele fosse mais convincente se fosse menos cinzento e se sua peruca e maquiagem fossem menos óbvias).”
Salto alguns parágrafos, até este ponto aqui, o final do texto do grande crítico:
“Não tenho certeza se isso é uma comédia ou um grito contra um ultraje. Talvez a intenção dele fosse o filme ser as duas coisas. Pode ser que Scola estivesse descrevendo um grupamento de invasores urbanos que existe na Itália, mas fiquei com a sensação de que ele estava fazendo as coisas ficaram mais coloridas, mais românticas e improváveis do que a pobreza real permitiria.
“Ele mostra suas pessoas pobres como brutais, sujas e ignorantes (o título é apropriado), mas mostra que o dinheiro os corrompe. Qual é a lição? Que você nunca deveria se permitir nascer no meio da privação? Mas e se você tivesse nascido ali? Scola parece não ter a menor idéia sobre o que você deveria fazer.”
Ou será que, em 1976, Scola estava sonhando com uma Itália comunista?
Não consegui saber em que ano o grande diretor deixou o Partido Comunista Italiano. Creio que foi antes disso – mas creio também que ele permaneceu com o coração comunista até morrer (em 2016, aos 84 anos).
Será que Scola sonhava com um Giacinto trabalhando numa empresa estatal – um produtivo, feliz membro de uma comunidade solidária, amiga, fraterna, edificando uma nova sociedade? Será que ele imaginava possível ver aquela garotinha atraente, bonita, gostosa, trabalhando numa fábrica, cantando a Internacional ao sair do trabalho?
Mas aí acho que viajei um pouco.
“Comédia grotesca de grande eficácia”
Bem no início do projeto, como já foi dito, Scola pensou em fazer um documentário. Mais tarde, planejou que Pier Paolo Pasolini escrevesse e narrasse um prefácio para o filme, em que faria um paralelo com o seu próprio Accatone, lançado 15 anos antes, em 1961 – um filme sobre o submundo da prostituição em que se falava sobre a situação das crianças.
O plano de Scola foi por água abaixo quando Pasolini foi assassinado em 2 de novembro de 1975.
O Petit Larousse des Films faz referência a esses fatos, na sua análise sobre o filme:
“Este que deveria ser um film-enquête marcado pela influência de Pasolini (…) se transformou numa comédia grotesca de grande eficácia. Aqui não há separação entre bons e maus. Todos são maus e só a sociedade é culpada por isso. Excelente elenco, em que coabitam um astro, Manfredi, atores de teatro e não-profissionais. A comédia italiana jamais havia ido tão longe na escuridão. Um ponto sem volta estava sem dúvida adiante, a partir do qual o gênero entraria numa lenta decadência.”
Transcrevo todo o verbete do Guide des Films de Jean Tulard sobre Affreux, Sales et Méchants – inclusive o primeiro parágrafo, que faz a sinopse, porque sinto que talvez eu não tenha feito propriamente um resumo da história do filme, se é o que filme tem uma história. O Guide dá 3 estrelas em 4 para a obra.
“A vida de uma família italiana em uma favela de Roma. O chefe, Giacinto, tem um pacote de um milhão ganho como indenização pela perda de um olho. Procura-se roubar dele, mas em vão. Ele instala uma concubina no barraco. Protestos e tentativas de prender Giacinto. Mas sempre em vão.
“Essa evocação cruel das favelas escapa ao neo-realismo: nem poesia, nem carga política, uma constatação de que se passa do burlesco ao trágico como na vida.”
Muito bem. Na minha opinião, hoje, Feios, Sujos e Malvados é o pior filme dos que já vi desse eterno socialista que é um dos grandes realizadores do cinema.
Gostaria muito de ter aqui textos sobre todos os filmes desse realizador extraordinário. Eis os filmes dele que já estão neste site:
Ciúme à Italiana / Dramma della Gelosia (tutti i particolari in cronaca) (1970),
Um Dia Muito Especial / Una Giornata Particolare (1977),
O Terraço / La Terrazza (1980)
Casanova e a Revolução / La Nuit de Varennes (1982)
O Baile / Le Bal (1983),
A História de um Jovem Homem Pobre / Romanzo di un Giovane Povero (1995)
O Jantar / La Cena (1998),
Que Estranho Chamar-se Federico / Che Strano Chiamarse Federico (2013).
Anotação em abril de 2021
Feios, Sujos e Malvados/Brutti, Sporchi e Cattivi
De Ettore Scola, Itália, 1976
Com Nino Manfredi (Giacinto Mazzatella)
e Zoe Incrocci (Tommasina), Maria Luisa Santella (Iside, a prostituta que vira amante de Giacinto), Maria Bosco (Gaetana), Giselda Castrini (Lisetta), Alfredo D’Ippolito (Plinio), Giancarlo Fanelli (Paride), Marina Fasoli (Maria Libera), Ettore Garofolo (Camillo), Marco Marsili (Marce), Franco Merli (Fernando), Linda Moretti (Matilde), Luciano Pagliuca (Romolo), Giuseppe Paravati (Tato), Silvana Priori (a mulher de Paride), Giovanni Rovini (nonna Antonecchia), Francesco Anniballi (Domizio), Adriana Russo (Dora), Mario Santella (Adolfo), Ennio Antonelli (Oste), Marcella Battisti (Marcella Celhoio), Francesco Crescimone (o comissário), Beryl Cunningham (Baraccata Negra), Silvia Ferluga (Maga), Franco Marino (Padre Santandrea)
Argumento e roteiro Ruggero Maccari, Ettore Scola
Fotografia Dario Di Palma
Música Armando Trovajoli
Montagem Raimondo Crociani
Direção de arte Luciano Ricceri, Franco Velchi
Produção Carlo Ponti, Compagnia Cinematografica Champion, Surf Film.
Cor, 115 min (1h55)
Disponível em DVD.
R, **
Títulos em inglês: Ugly, Dirty and Bad e Down and Dirty. Na França: Affreux, Sales et Méchants
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