Uma jovem interrogada mais uma vez sobre como ela escapou do ataque à boate Bataclan, em Paris, onde morreu seu namorado, entre as dezenas de vítimas dos três atos terroristas simultâneos, em novembro de 2015. Uma empresária da construção civil de meia-idade suspeita de ter empurrado um operário de um prédio em construção. Um gerente de vendas suspeito do assassinato de um homossexual.
Esses são os protagonistas de cada um dos três episódios de Criminal: França – série que, por sua vez, faz parte de um quarteto, que tem também Criminal: Espanha, Criminal: Alemanha e Criminal: Reino Unido.
Como nas obras dos outros três países, cada episódio da série francesa dura cerca de 40 minutos, e tem o nome do interrogado. Assim, o primeiro episódio tem o título de Émilie, a jovem interpretada por Sara Giraudeau. O segundo se chama Caroline, o nome da empresária interpretada pela sempre ótima Nathalie Baye, e o terceiro se chama Jérôme, papel de Jérôme Lacombe.
O fato de ter como um dos interrogados uma grande estrela do cinema francês, numa belíssima interpretação, aproxima bastante a série francesa da alemã, em que uma grande estrela também faz uma das interrogadas. E, como Nina Hoss em Criminal: Alemanha, Nathalie Baye nos dá aqui uma daquelas interpretações impressionantes, difíceis de serem esquecidas.
Achei interessante, curioso, esse detalhe que une as séries francesa e alemã – ter uma grande, aclamada, veterana atriz em um dos episódios.
Mas a verdade é que a característica mais notável do quarteto de séries Criminal é o fato de que elas são bastante parecidas em vários aspectos. Todas têm diversos pontos em comum. Dá para dizer perfeitamente que são variações em torno do mesmo tema e da mesma forma.
Cada uma tem três episódios, cada episódio tem cerca de 40 minutos; em cada episódio, um grupo de policiais interroga um suspeito.
Tudo se passa em ambiente interno – não há uma única tomada de exteriores. Tudo acontece em três cômodos de uma unidade policial: a sala de interrogatório, a sala ao lado, em que ficam policiais que observam o interrogatório mas não são vistos pelo suspeito – aquele esquema de duas salas contíguas separadas por uma grande janela que de um lado é vidro, simplesmente, e do outro lado é espelho. E um corredor, um hall com máquinas com refrigerantes e salgadinhos e doces.
Os policiais da sala ao lado observam cada movimento do suspeito, que está sendo filmado o todo o tempo. Já na sala de interrogatório, em que há apenas uma grande mesa e cadeiras, o que se vê é apenas um grande espelho.
Os realizadores optaram por algo surpreendente: todo o conjunto das duas salas e corredor e hall, todo o espaço físico da central de polícia é exatamente o mesmo em Paris, em Madri, em Berlim – e com toda certeza também em Londres. (Ainda não vimos Criminal: Reino Unido.)
Não é que os ambientes sejam um pouco parecidos. Não. São idênticos, absolutamente idênticos. Segundo uma reportagem que encontrei na internet, todos os 12 episódios – três de cada série, três de cada país – foram filmados num estúdio usado pela Netflix na região de Madri.
No aspecto físico, na parte visual, é tudo absolutamente idêntico – por mais diferentes que sejam as economias, as tradições, os costumes, as formas com que cada polícia se organiza naqueles quatro países.
Mudam os métodos de interrogatório, assim como mudam as leis penais de país para país. Muda um tanto a forma com que os policiais se relacionam entre eles, é claro. Muda muita coisa – enquanto muitas características são idênticas.
A idéia básica, geral, partiu dos jovens produtores e roteiristas ingleses Jim Field Smith e George Kay, donos de uma produtora independente, Idiot Lamp, e foi comprada pela Netflix. Equipes de roteiristas, diretores, atores e técnicos de cada um dos demais países criaram e executaram suas próprias séries, sob a supervisão geral de Smith e Kay.
Personagens interessantes, bem construídos
Em cada uma das quatro séries, a cada episódio mudam os interrogados – mas os interrogadores são os mesmos. É sempre o mesmo grupo de policiais. E há ainda uma característica que parece comum a todas as quatro séries – e de fato é algo que independe de país, de costumes nacionais: não reina paz na equipe policial.
Como parece acontecer em cada local de trabalho neste mundão véio de Deus e o diabo afora, naquela central de polícia de Paris há rusgas, invejas, ciúmes, disputas.
A investigadora Audrey Larsen (o papel de Margot Bancilhon, na foto abaixo) é jovem, e foi nomeada chefe daquela unidade faz pouco tempo. Parece daquele tipo que se formou com louvor na academia de polícia. Mas, por ser jovem, pouco experiente, não tem o respeito de seus subordinados.
O capitão Olivier Hagen (Laurent Lucas), policial veterano, calejado, acha que quem deveria ter sido nomeado chefe era ele – e não faz segredo disso. O jovem tenente Omar Matif (Mhamed Arezki), filho de imigrantes árabes, demonstra não gostar muito das atitudes do colega mais velho, sempre pouco propenso a obedecer às ordens da chefe que lhe foi imposta.
A jovem policial Laetitia Serra (Anne Azoulay) é rebelde, agressiva, problemática. Vinha de um período de licença exatamente para se tratar, se acalmar.
E o agente Gérard Sarkassian (Stéphane Jobert), o mais experiente e veterano de todo o grupo, se incomoda com o fato de a jovem chefe estar sempre pedindo a opinião dos colegas sobre como deveria proceder. O que na verdade é uma prova de humildade de Audrey Larsen, de vontade de trabalhar em grupo, acaba irritando o subalterno mais veterano.
Foi um belo trabalho dos roteiristas esse de criação dos personagens da central de polícia francesa. São personagens críveis, interessantes, bem construídos – e bem interpretados. O elenco é uniformemente competente.
As aparências enganam, as coisas não são como parecem
Pelo que dá para perceber, e pelas informações disponíveis, os criadores originais do quarteto de série, os jovens ingleses Jim Field Smith e George Kay, trabalharam em conjunto com roteiristas de cada país para criar os personagens e as tramas. Na França, o trabalho foi com três roteiristas – Mathieu Missoffe, Antonin Martin-Hilbert e Frédéric Mermoud.
Frédéric Mermoud dirigiu os três episódios – e demonstra competência. Há poucas informações sobre ele no IMDb, deve ser jovem, aí na faixa dos 40 e tantos anos; tem 11 títulos na filmografia como roteirista e 16 como diretor. Entre estes há oito curta-metragens e várias séries de TV. O único filme para o cinema, parece, é Moca/Moka, de 2016, um policial, com duas ótimas atrizes, Emmanuelle Devos e Nathalie Baye.
Como acontece também nas séries espanhola e alemã, nas três tramas francesas as coisas não são exatamente como parecem ser. As aparências enganam, como bem mostrava aquela série de charges do desenhista Carlos Estévão na revista O Cruzeiro – e, no início de cada interrogatório, os policiais não têm idéia de onde vai dar a história que estão tentando desvendar.
É a grande sacada que a série francesa soube explorar muito bem.
As histórias de Émilie, Caroline e Jérôme acabam não surpreendendo apenas os espectadores, mas também os próprios policiais que conduzem os interrogatórios.
E todas as três histórias têm um elemento em comum sensacional, uma sacada brilhante dos criadores – mas revelar esse exato ponto em comum seria um absoluto spoiler.
Creio que não é spoiler, no entanto, afirmar que uma das três histórias demonstra uma verdade que todos nós estamos – ou deveríamos estar – cansados de conhecer. Uma verdade que é velha como andar pra frente: em geral, muitas vezes, muitíssimas vezes, homem que fala demais que é muito macho e tem atitudes homofóbicas, conta piadinhas homofóbicas, insiste em fazer piadinhas homofóbicas absolutamente sem graça… ou é homo, ou gostaria muito de assumir que é e não tem coragem.
Qualquer semelhança com pessoas conhecidas, famosas, da vida política não é mera coincidência, não. É a mais pura semelhança com a verdade dos fatos.
É uma boa série, a fase francesa deste quarteto Criminal.
Para mim, a surpresa mais agradável foi rever Nathalie Baye, muitíssimo bem aos 71 anos de idade. Tantos, tantos anos depois de fazer Cecília, a funcionário da casa de leilões em O Quarto Verde (1978), Martine, a moça que decepciona o protagonista de O Homem Que Amava as Mulheres (1977) por esconder as pernas em calças compridas, e Joêlle, a script-girl e braço direito do realizador Ferrand de A Noite Americana (1973), os três de François Truffaut.
Agora falta Criminal: Reino Unido.
Atenção, cuidado: aqui vai um spoiler.
O intertítulo já avisou, mas há quem não leia intertítulos, e então repito: aqui vai um danado de um spoiler.
Quem não viu Criminal: França não deve de forma alguma ler o que vai aí abaixo.
Isto é só para quem já viu a série, e quis ler informações e opiniões sobre ela para comparar com as suas.
Lá vai a grande sacada dos roteiristas que escreveram as histórias de Émilie, Caroline e Jérôme:
Cada um desses suspeitos interrogados pela polícia tem culpa por alguma coisa, sim – mas não é um crime grave. Nenhum deles cometeu um crime grave. E isso os policiais só descobrem juntamente com o espectador, ao final de cada um dos interrogatórios.
Bela, bela sacada.
Anotação em novembro de 2021
Criminal: França
De Jim Field Smith e George Kay, criadores, França, 2019
Direção Frédéric Mermoud
Com Margot Bancilhon (investigadora Audrey Larsen, a nova chefe da unidade), Laurent Lucas (capitão Olivier Hagen), Stéphane Jobert (agente Gérard Sarkassian), Anne Azoulay (Laetitia Serra), Mhamed Arezki (tenente Omar Matif),
Sara Giraudeau (Émilie Weber, a interrogada do episódio 1), Eléonore Arnaud (a advogada de Émilie), Nathalie Baye (Caroline Solal, a interrogada do episódio 2), Valentin Merlet (o advogado de Caroline), Jérémie Renier (Jérôme Lacombe, o interrogado do episódio 3), Nacima Bekthaoui (a advogada de Jérôme)
Argumento e roteiro Jim Field Smith e George Kay (criadores), Mathieu Missoffe, Antonin Martin-Hilbert, Frédéric Mermoud
Fotografia Pau Mirabet
Música Robin Foster
Montagem Jaume Martí
Produção Idiot Lamp.
Cor, cerca de 120 min (2h)
***
Disponível na Netflix em 11/2020.
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