The Violent Men, western classe A de 1955, dirigido por Rudolph Maté com elenco de primeira – Glenn Ford, Barbara Stanwyck e Edward G. Robinson –, ganhou dos exibidores brasileiros o título Um Pecado em Cada Alma, que parece mais apropriado a um melodrama de Douglas Sirk. Não é, no entanto, um título sem sentido: é um western com boa dose de melodramão.
Tem um personagem absolutamente típico do western: o fazendeiro ganancioso, rico, poderoso, que quanto mais tem mais quer, e vai forçando a barra para expulsar de suas terras os vizinhos e ir comprando deles suas propriedades, para expandir mais e mais seus domínios. É Lew Wilkinson, o personagem interpretado por Edward G. Robinson.
Lew Wilkinson é um homem firme, determinado, decidido a ser o maior fazendeiro daquela região; o negócio dele é gado, nada dessa coisa de plantar. Tem imenso desprezo pelas famílias de colonizadores que vão para o Oeste para plantar, tirar seu sustento da terra, dos alimentos. Lew ficou paraplégico muitos anos antes da época em que se passa a ação – e a ação se passa alguns anos após o fim da Guerra Civil (1861-1865) –, numa das muitas lutas que enfrentou ao longo da vida para garantir o crescimento de seus domínios.
Embora o serviço sujo de provocar os vizinhos, atazanar suas vidas, até que desistam de continuar ali e vendam suas terras para os Wilkinsons seja agora tocado por seu irmão mais novo, Cole (o papel do grandalhão Brian Keith), Lew Wilkinson é o protótipo do fazendeiro rico que é o grande bandido, o homem mal do western. É a representação, nos filmes de Hollywood, dos bilionários, dos donos das grandes corporações, dos capitalistas selvagens que oprimem o homem comum. Lew Wilkinson é parente próximo dos ricaços poderosos dos filmes humanistas de Frank Capra – muitas vezes interpretado por Edward Arnold, que, com sua figura robusta, gorda, era a imagem perfeita do milionário sem coração, sem misericórdia.
Não há outra mulher como esta no universo do western
Sim, um personagem absolutamente típico do western, esse Lew Wilkinson de Edward G. Robinson.
Mas The Violent Men tem dois personagens que, muito ao contrário, são bem mais raros no gênero, e são interpretados por Glenn Ford e Barbara Stanwyck: o homem que não quer saber de briga, de luta, de revólver, de duelo – nem ao sol nem ao pôr-do-sol nem em hora alguma. E a mulher de família, dona de casa, que é forte, poderosa, e má – má como uma cobra peçonhenta. Má – e, além de tudo, infiel ao marido. Pecadora. Adúltera.
Não me lembro de nenhuma outra mulher assim em um western.
Pela regra geral do gênero, há dois tipos de mulheres: as puras e as putas (ou quase). As puras são as donas de casa, as que trabalham duro e apóiam seus maridos em tudo o que fazem. As outras são as dançarinas de saloon, as prostitutas, as perdidas.
Claro, há muitos casos de exceções que fogem à regra geral, e está aí Johnny Guitar, de 1954 – um western em que quem mandam são as mulheres. Ou o bem menos conhecido A Renegada/Woman They Almost Lynched, do ano anterior, 1953, em que igualmente são as mulheres que mandam e os homens são apenas coadjuvantes, quase figurantes.
Mas dona de casa, mulher casada que é adúltera, isso creio que só existe neste The Violent Men.
E não haveria outra atriz em Hollywood, aquele celeiro de tantas atrizes, para fazer com brilho o papel de Martha Wilkinson a não ser Barbara Stanwyck.
Essa atriz extraordinária não tinha receio de interpretar personagens fortes, más, rebeldes, que remavam absolutamente contra a maré e os bons costumes.
Barbara Stanwyck exibiu as coxas e viveu um caso de amor fora do casamento, inter-racial e quase chegado a um sadomasoquismo – três coisas explicitamente proibidas pelo Código Hays, o código de auto-censura dos grandes estúdios – ainda em 1933, em O Último Chá do General Yen, de Frank Capra. Exibiu as pernas e endoidou um vendedor de seguros, fazendo com que ele planejasse matar seu marido, em Pacto de Sangue/Double Indemnity (1946), de Billy Wilder. Exibiu as coxas e deixou louco, alucinado, um bando de velhinhos que estava trancafiado numa grande casa com o dever de escrever uma enciclopédia, em Bola de Fogo (1941), de Howard Hawks. Esteve doida para trair o marido interpretado por Anthony Quinn com o amigo dele feito por Gary Cooper em Sangue da Terra/Blowing Wild (1953), de Hugo Fregonese. Tinha tanta fascinação pelo pai, interpretado por Walter Huston, que agrediu com uma tesoura a mulher escolhida por ele para um novo casamento, em Almas em Fúria/The Furies (1950), de Anthony Mann.
Almas em Fúria, aliás, tem pontos em comum com este Um Pecado em Cada Alma; como este aqui, é um western que tem uma boa pegada de melodrama.)
Martha trai o marido com o próprio irmão dele
A Martha Wilkinson de Barbara Stanwyck é uma mulher de duas caras. Quando está junto do marido, é a própria imagem da esposa abnegada, que faz tudo para agradar a seu homem, para cuidar dele, para defendê-lo contra qualquer ameaça, perigo. Basta, no entanto, não estar perto dele para Martha se jogar em cima do próprio cunhado, o tal Cole, o grandalhão que faz agora o trabalho sujo dos Wilkinsons, e dirige o bando de pistoleiros pagos pela família para atazanar a vida dos proprietários de terras da região.
Martha e Lew Wilkinson têm apenas uma filha, Judith (Dianne Foster, uma atriz muito bonita de que não me lembrava), moça aí de uns 20 anos. Judith tem imenso respeito pelo pai (no que até faz lembrar um pouco o personagem da própria Barbara Stanwyck em Almas em Fúria). Pela mãe, demonstra claramente ter desprezo, por saber que ela é infiel.
Lew, o ricaço ambicioso, que sempre quer mais e mais. Martha, a mulher rica, ambiciosa, que sempre quer mais e mais – e além disso é infiel, adúltera. Cole, o que come a mulher do irmão e faz o serviço sujo da família. Falei bastante dos bandidos, mas, até aqui, apenas uma frase sobre o mocinho.
Glenn Ford faz o mocinho, John Parrish. É um homem do Leste, da área mais civilizada, desenvolvida, do país. Do Leste – e do Norte: lutou na Guerra da Secessão com o exército da União, contra os confederados do Sul, os escravagistas. Foi capitão do Exército, levou um tiro no pulmão e, para se tratar, se curar, estabeleceu-se ali naquele lugar que fica a Oeste e a Sul da sua própria terra. Comprou um pedaço de terra, criou gado, com a ajuda de homens que serviram com ele no exército. Arranjou uma namorada, que virou noiva, moça fina, de boa família, Caroline Vail (May Wynn). Prometeu a ela que, quando ficasse curado do pulmão, se casaria com ela, venderia suas terras e a levaria para o Leste.
Um tipo raro no Velho Oeste: o homem sem arma
John Parrish é aquele tipo raro nos faroestes – o homem que não anda armado.
Faz lembrar o Jim McKay interpretado por Gregory Peck em Da Terra Nascem os Homens/The Big Country, de William Wyler (1958). Jim McKay, eu escrevi, num momento de alguma inspiração, “está mais longe de casa que o E.T. de Spielberg. É um absoluto alienígena pousando num planeta muito distante do seu – e os habitantes do planeta em que ele cai acham tudo nele estranhíssimo, em especial o fato de que é destituído da peça mais fundamental da indumentária local, o colt com o revólver ao alcance da mão. Como se não bastasse esse absurdo, ainda há outro, igualmente desconhecido pelos seres que habitam a terra grande: o alien, ao ser provocado, chamado para a briga, não reage.”
John Parrish também é assim: está longe de sua terra. E, chamado para a briga, não reage.
Quando a ação começa, ele está chegando à cidadezinha mais próxima de seu rancho, justamente para consultar o médico do lugar, ver como está sua saúde, se já pode voltar para sua terra obviamente muito mais fria que aquela ali. Um grupo de pistoleiros contratados pelos Wilkinsons passa perto dele, a toda, de tal forma que ele cai no chão. Mas não parte para a briga: levanta-se, tira o pó da roupa e vai consultar o médico, o dr. Henry Crowell (Raymond Greenleaf).
Os médicos dos westerns costumam ser dados a umas filosofadas, enquanto atendem seus pacientes – e o dr. Crowell confirma a regra. Enquanto examina John Parrish, filosofa sobre a falta de paz que há naquela região: – “Os homens sempre arranjam motivos para evitar viver em paz”.
O dr. Crowell tem toda razão. John Parrish faz o que pode para não se envolver na eterna luta dos pequenos fazendeiros para conseguir se manter em suas terras, apesar das provocações todas dos Wilkinsons e seus pistoleiros de aluguel.
Numa determinada noite, bem no início do filme, ele vai contra o Código Hays, as tradições do western, os costumes da sociedade e do cinema americano nos anos 1950 e trepa com a noiva – mas já havia prometido se casar com a moça e levá-la para o Leste. É de fato o que ele pretende fazer.
Até que um bando de pistoleiros dos Wilkinsons mata um de seus empregados.
O polonês Maté fez 33 filmes em Hollywood
Sobre o diretor Rudolph Maté (1898-1964), o crítico e historiador Jean Tulard diz que sua obra como realizador nos Estados Unidos (33 filmes, entre 1947 e 1963) não está à altura de sua importância como diretor de fotografia na Europa. De origem polonesa, Maté foi diretor de fotografia de obras-primas do realizador dinamarquês Carl Theodor Dreyer, como O Martírio de Joana D’Arc (1928) e O Vampiro (1932), entre muitos outros filmes importantes, como, só para dar um exemplo, Ser ou Não Ser, o grande clássico de Ernst Lubitsch.
Mas, prossegue Jean Tulard, “seus filmes de ação, numa escala menor, têm um certo charme” – sejam thrillers ou westerns.
Na minha opinião, este The Violent Men tem mais que charme. É um western bem interessante.
Anotação em dezembro de 2019
Um Pecado em Cada Alma/The Violent Men
De Rudolph Maté, EUA, 1955
Com Glenn Ford (John Parrish), Barbara Stanwyck (Martha Wilkison), Edward G. Robinson (Lew Wilkison), Dianne Foster (Judith Wilkison, a filha de Martha e Lew), Brian Keith (Cole Wilkison, o irmão de Lew), May Wynn (Caroline Vail), Warner Anderson (Jim McCloud), Basil Ruysdael (Tex Hinkleman), Lita Milan (Elena, a amante de Cole), Richard Jaeckel (Wade Matlock), James Westerfield (xerife Magruder), Jack Kelly (DeRosa), Willis Bouchey (xerife Martin Kenner), Harry Shannan (Purdue, vizinho de John Parrish), Raymond Greenleaf (dr. Henry Crowell)
Roteiro Harry Kleiner
Baseado no romance de Donald Hamilton
Fotografia W. Howard Greene e Burnett Guffey
Música Max Steiner
Montagem Jerome Thoms
Figurinos Jean Louis
Produção Columbia Pictures. DVD Versátil.
Cor, 96 min (1h36)
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