Em meados dos anos 60, propuseram a Paul Newman o papel principal em um filme sobre um detetive particular bastante parecido com aqueles dos romances policiais dos anos 40, Philip Marlowe, de Raymond Chandler, e Sam Spade, de Dashiel Hammett.
O autor não era assim propriamente um Hammett, um Chandler. Chamava-se Kenneth Millar (1915-1983), mas, sob o pseudônimo de Ross Macdonald, havia criado um detetive tão hard-boiled quanto Marlowe e Spade, chamado Lew Archer.
Paul Newman topou a oferta – mas, como vinha de dois bons filmes que começavam com a letra h, The Hustler, no Brasil Desafio à Corrupção, de 1961, e Hud, no Brasil O Indomado, de 1963, fez dois pedidos. A rigor, duas exigências. O nome do personagem deveria começar com h – e o nome dele seria o título do filme.
Lew Archer virou Lew Harper. Harper, de 1966, no Brasil ganhou um adendo e virou Harper, O Caçador de Aventuras.
E essa história dos filmes de Paul Newman que começam com a letra h (em 1967 ainda viria Hombre) é uma das melhores coisas deste Harper.
Hum… A frase acima é mais uma brincadeira do que a verdade dos fatos. Harper não é um grande filme, de forma alguma, muito longe disso. Mas é uma diversão agradável. Tem uma trama intrincada, interessante, especialmente atraente para quem gosta das histórias dos detetives hard-boiled, durões, dos anos 40; tem Paul Newman bem à vontade no papel do detetive competente, determinado, incansável, mas que apanha mais que sparing de boxeador – todos os bandidos de Los Angeles e arredores parecem ter um especial prazer em dar umas porradas em Harper. E tem várias atrizes bem interessantes no elenco.
Na verdade, foi por causa das atrizes que decidi rever o filme agora para fazer esta anotação. Quando o vimos pela primeira vez, em 2007, anotei apenas o seguinte:
Um bando de atrizes interessantes, Paul Newman como um detetive à la do Raymond Chandler ou Dashiell Hammett – um divertimentozinho leve, e nada mais.
As personagens de Lauren Bacall e Pamela Tiffin se odeiam
A primeira das várias atrizes que vemos é Lauren Bacall, absolutamente perfeita para seu papel de Mrs. Sampson, uma dondoca casada com um milionário muito milionário. O espectador não fica sabendo exatamente quais são os negócios de Sampson, mas são muitos – e pelo menos alguns deles não são praticados dentro das leis.
Mrs. Sampson não tem nenhum pingo de amor ou respeito pelo marido – mas adora o conforto absoluto que o dinheiro dele proporciona. O casal mora numa daquelas propriedades de milionários americanos que a gente está cansado de ver nos filmes, gigantesca, com uma piscina imaculada, jardins perfeitos. A propriedade fica perto de Santa Theresa, um lugar ao Sul de Los Angeles, a 1 hora e tanto de carro da metrópole.
A dondoca não se importa que o marido tenha casos com outras mulheres – mas teme que ele faça besteiras, tipo ficar bêbado e doar dinheiro para alguma vagabunda. Ficar bêbado ele fica sempre – e doar coisas é uma mania que ele tem. Já havia doado o topo de uma montanha para um desses loucos que criam uma seita. Por isso foi que, quando Sampson desapareceu, ela ligou para um dos advogados da família, Albert Graves (Arthur Hill) – e, por sugestão dele, contratou os serviços de Lew Harper.
Veremos que Harper e Albert são muito amigos, de longa data. No passado, Albert havia sido da promotoria de Los Angeles. No momento atual, ele está absolutamente encantado por Miranda, a filha de Sampson em seu primeiro casamento, que vive ali na mansão com a madrasta, uma destilando ódio da outra.
Depois de falar com Mrs. Sampson, Harper vai até perto da piscina para conversar com Allan Taggert (o papel de Robert Wagner), o empregado da família, piloto do jatinho particular de Sampson e a última pessoa a vê-lo antes que ele desaparecesse.
O que esse Allan tem a dizer para Harper não é muita coisa. No dia anterior, ele havia ido até Las Vegas pegar Sampson; voltaram até o aeroporto mais próximo. Sampson disse que iria para o hotel Bel Air, Allan foi guardar o avião no hangar, e, quando voltou, o patrão havia desaparecido. Ele então fez algumas buscas em lugares que o patrão costumava frequentar, deu vários telefonemas, mas não teve sinal dele.
Perto de Allan Taggert, junto da piscina, estava Miranda, a jovem filha do milionário. Miranda é o papel de Pamela Tiffin, então com 24 aninhos, o rosto bonitinho demais, o corpo perfeito – uma das muitas jovens bonitinhas demais da Hollywood dos anos 60 que nunca chegaram a ser muito mais do isso, jovens bonitinhas demais.
Junto da piscina, Miranda-Pamela Tiffin naturalmente está de biquíni. O diretor Jack Smight (1925-2003), de quem em seu livro Dicionário de Cineastas Rubens Ewald Filho diz que “parecia uma revelação, mas logo foi envolvido pela máquina”, não é bobo, e bota a câmara para mostrar a moça rebolando no trampolim, ao som de uma música chatinha. E olha, Pamela Tiffin pode não ser uma boa atriz, mas é preciso reconhecer que sabia rebolar.
E ainda tem Janet Leigh, Shelley Winters, Julie Harris
Janet Leigh, essa, sim, uma boa atriz, bela demais 6 anos depois de interpretar Marion Crane em Psicose (1960), faz Susan, uma advogada, ao que tudo indica competente, bem sucedida, que, no momento em que Harper se dedica a procurar pistas que levem ao paradeiro do milionário Sampson, está tentando se divorciar dele. Mas Harper foge do papo de divórcio como o diabo da cruz.
Susan-Janet Leigh não aparece muito tempo na tela, infelizmente. Aparece, creio, em apenas quatro sequências, mas elas não são curtas, e têm importância – não propriamente na trama, mas na construção do personagem de Harper.
O espectador vai compreendendo que o detetive particular e a advogada tiveram – ou ainda têm – uma fantástica paixão. Mas a profissão dele, a dedicação dele ao trabalho perigoso, sem horários definidos, as repetidas promessas de que tudo vai mudar jamais cumpridas, tudo isso levou Susan Harper a ficar absolutamente determinada a abortar a paixão e se separar do marido.
As duas outras atrizes do elenco têm, ao contrário de Susan Harper, papéis importantes na trama policial, na caçada empreendida por Harper à procura do milionário desaparecido.
Shelley Winters interpreta Fay Estabrook, uma mulher que, no passado, teve uma boa carreira no cinema, mas hoje é viciada em muita comida e muito álcool. Tornou-se próxima de Sampson – e Harper se finge de um velho fã dela para investigá-la, tentar descobrir qual é exatamente a ligação que ela tem com o milionário, e se ela poderia ter alguma pista que levaria a ele.
E Julie Harris faz o papel de Betty Fraley, uma cantora de jazz que já havia tido uma boa carreira, mas agora sobrevivia cantando em bares não muito respeitáveis. Betty já havia sido presa por uso de drogas – Harper vê picadas nos braços dela.
Eventualmente, o detetive vai descobrir uma conexão entre a cantora Betty e a ex-atriz Fay. E mais: vai descobrir também uma conexão importante entre Betty e Allan Taggert, o empregado de Sampson, que a garota Miranda paquera sem qualquer sucesso.
Lauren Bacall, Janet Leigh, Shelley Winters, Julie Harris e ainda a bonequinha Pamela Tiffin. É: Harper é um filme de muitas atrizes interessantes.
Nove anos depois, Newman interpretaria Harper de novo
Quando a Warner lançou Harper em DVD no Brasil, incluiu como um especial uma rápida apresentação do filme feita pelo crítico Robert Osborne. É nessa introdução ao filme que Osborne conta aquela história dos filmes da carreira de Paul Newman começados com a letra h.
Ele conta também que os produtores queriam inicialmente que Frank Sinatra fizesse o papel do detetive Lew Archer. Não deu certo, e foi então que procuraram Paul Newman. O grande ator não se importou nada com o fato de ter sido o segundo nome a ser chamado; não tinha problema com isso. Na verdade, o papel do pugilista Rocky Graziano em Marcado pela Sarjeta/Somebody Up There Likes Me também se destinava a outro ator, James Dean – morto em 1955, um ano antes do lançamento do filme. Marcado pela Sarjeta, de Robert Wise, foi o filme que revelou Paul Newman para o público e para os grandes estúdios, o filme que iniciou sua carreira como um dos grandes astros do cinema americano.
E o fato é que Paul Newman gostou de interpretar esse detetive Lew Archer, perdão, Lew Harper. Nove anos depois, em 1975, ele voltaria a interpretar Lew Harper em outro filme, A Piscina Mortal/The Drowning Pool, em que contracenou com sua mulher, Joanne Woodward, e também com uma adolescente linda, a filha de Tippi Hedren, Melanie Griffith.
Um parágrafo sobre Frank Sinatra, que acabou cedendo o papel para Paul Newman: naquela mesma época, The Voice fez o papel de um detetive particular, Tony Rome, em dois filmes: Tony Rome, de 1967, e A Mulher de Pedra/Lady in Cement, de 1968, ambos dirigidos por Gordon Douglas. Alguns anos depois, em 1980, interpretou um detetive da polícia de Nova York que caça um serial killer em O Primeiro Pecado Mortal/The First Deadly Sin.
O grande William Goldman estava começando a carreira
Foi apenas o segundo roteiro assinado por William Goldman (1931-2018), que se tornaria um dos mais respeitados e reconhecidos roteiristas do cinema americano. Foi ele que escreveu, só para dar uns poucos exemplos, Butch Cassidy (1969), Papillon (1973), As Esposas de Stepford (1975), Todos os Homens do Presidente (1976), Chaplin 1992), Maverick (1994)…
Muito depois do lançamento do filme, William Goldman diria em entrevistas que ele percebeu que daria certo como roteirista quando terminou de escrever a sequência de abertura de Harper. E, de fato, a sequência é uma maravilha: vemos Lew Harper acordando de ressaca em um aposento que – saberemos só um pouco mais tarde – é o seu escritório, com a plaquinha de “Detetive Particular” na porta. No banheiro, ele enfia gelo na pia e enfia a cara lá dentro. Depois se prepara para coar café – para descobrir que não tem mais pó. Vê, então, dentro da lata de lixo, o coador de papel usado da outra vez. Aí – fazer o que, né? – pega o coador usado, e coloca na cafeteira.
A sequência inteira, mais a cara azeda que Paul Newman faz ao tomar o café, seguramente faz o espectador simpatizar com o protagonista da história que está começando.
Leonard Maltin encantou-se com o filme, deu a ele 3.5 estrelas em 4: “Ação-mistério de primeira com Newman como detetive particular contratado por Bacall para investigar o desaparecimento do marido; a gasta Winter, a frustrada Harris estão envolvidas na trama sofisticada, rápida, movimentada. Roteiro de William Goldman, de The Moving Target de Ross Macdonald. Sequência: The Drowning Pool.”
O verbete sobre o filme da prima donna da crítica americana, Pauline Cricri Kael, começa assim: “Paul Newman numa tentativa equivocada de recapturar o mundo do detetive particular de Bogart em À Beira do Abismo. Desculpa para suas caretas; que pode fazer um ator com um papel que exige que ele seja espancado até virar uma polpa sangrenta – e tudo isso lhe servindo apenas de afrodisíaco? Shelley Winters aplica um pouco de respiração artificial ao filme, mas ele logo recai em coma.”
Ao final de seu texto, Dona Kael acaba dizendo – dá para perceber que com imensa má vontade – que o filme tem um “elenco de grandes nomes” e que “foi um sucesso”.
O Guide des Films de Jean Tulard diz o seguinte sobre Détective Privé, que foi o título dado pelos exibidores franceses: “Este filme foi saudado na época do lançamento como uma evolução do filme noir: ele relançava a moda do detetive desiludido, dos assassinos, dos drogados e das ninfomaníacas, que estão todos presentes. Sem surpresas, mas bem feito.”
Anotação em fevereiro de 2020
Harper – O Caçador de Aventuras / Harper
De Jack Smight, EUA, 1966
Com Paul Newman (Lew Harper)
e Arthur Hill (Albert Graves), Lauren Bacall (Mrs. Sampson), Julie Harris (Betty Fraley), Janet Leigh (Susan Harper), Pamela Tiffin (Miranda Sampson), Robert Wagner (Allan Taggert), Robert Webber (Dwight Troy), Shelley Winters (Fay Estabrook), Harold Gould (o xerife), Roy Jenson (Puddler), Strother Martin (Claude, o pastor), Jacqueline deWit (Mrs. Kronberg), Eugene Iglesias (Felix)
Roteiro William Goldman
Baseado no livro The Moving Target, de Ross Macdonald
Fotografia Conrad L. Hall
Música Johnny Mandel
Montagem Stefan Arnsten
Produção Jerry Gershwin e Elliott Kastner, Warner Bros. DVD Warner Bros.
Cor, 120 min (2h)
**1/2
Título na França: Detective Privé.
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