Nota:
Na época de seu lançamento, 1958, Another Time, Another Place, no Brasil Vítima de uma Paixão, foi muitíssimo falado. Não tanto por suas qualidades – ou defeitos –, não tanto por ele em si, mas pelas circunstâncias envolvendo sua atriz principal, Lana Turner, então uma das maiores estrelas do cinema mundial.
Lana estava então com 38 anos – era de 1921, morreria em 1995, aos 74. Tinha uma carreira gloriosa, iniciada quando era uma adolescente de 16 aninhos, em 1937. Entre seus sucessos havia o clássico O Destino Bate à Porta/The Postman Always Rings Twice (1946), no qual interpretava Cora Smith, uma das mais sensuais e fatais louras que o cinema havia conhecido até então.
E sem dúvida estava no auge: Another Time, Another Place veio depois de Caldeira do Diabo/Peyton Place (1957) e seria seguido por Imitação da Vida (1959), dois grandes sucessos de bilheteria.
Como se fosse a heroína de um film noir, Lana Turner vivia então um amor bandido: era amante de um gângster chamado Johnny Stompanato.
Stompanato havia viajado até a Inglaterra, onde Lana Turner filmava Vítimas de uma Paixão. Consta que, com uma arma na mão, o bandido foi ter uma conversa com um jovem ator inglês que, no filme, fazia o papel do amante da personagem interpretada por Lana, um tal Sean Connery, e mandou-o se afastar da mulher, não chegar perto dela.
Os casos de discussões e brigas entre o casal e de agressões físicas dele contra ela eram fartamente conhecidos, e, na passagem de Stompanato pela Inglaterra, houve agressões que a deixaram com marcas no rosto e a afastaram das filmagens por duas semanas. O caso foi levado à Scotland Yard, que deportou o gângster de volta para os Estados Unidos.
O assassinato do amante de Lana fez a estréia do filme ser antecipada
Depois do fim das filmagens, quando a estrela voltou aos Estados Unidos, explodiu então aquilo que foi um dos maiores escândalos da história de Hollywood. No dia 4 de abril de 1958, Johnny Stompanato foi assassinado a facadas na casa da atriz. A versão oficial foi a de que Cheryl Crane, a filha de 14 anos de Lana, atacou o homem porque ele estava ameaçando bater na mulher.
“A turbulenta estrela Lana sempre afirmou: ‘Eu acho os homens terrivelmente excitantes’. Mas ela conseguiu mais do que pedia quando levou o ex-gângster Johnny Stompanato, vulgo Johnny Valentine, para a sua cama. Stompanato não tinha nada de namorado engraçado. Quando Turner estava fora filmando Another Time, Another Place na Inglaterra, o lugar em que a ação se passa, ele contraiu vultosas dívidas de jogo e, segundo se alegou, abusou sexualmente da infeliz filha de 14 anos de Turner, Cheryl Crane. A relação tempestuosa de Lana e Johnny, pontuada por altercações físicas violentas, chegou a um clímax sangrento hoje. Quando Stompanato ameaçou sua mãe, Crane enfiou uma faca de 9 polegadas (22 centímetros) no peito dele. A polícia chegou muito rapidamente, mas era tarde para salvar Johnny.”
O parágrafo acima é do maravilhoso livro Cinema Year by Year 1894-2000, da Dorling Kindersley de Londres, que conta em 900 páginas alguns dos fatos mais significativos da História do cinema como se fosse um jornal do dia de cada notícia. Essa aí, com o título de “Filha de estrela mata amante da mãe”, é como se tivesse sido escrita em “Hollywood, 4 de abril de 1958”.
(Naturalmente, em português perde-se a brincadeira da frase “Stompanato was no funny valentine” – jogo de palavras com o título da canção famosérrima, “My Funny Valentine”, com um dos sobrenomes do sujeito, Valentine, que significa namorado.)
O furor na imprensa e na opinião pública por causa do assassinato fez os distribuidores do filme (nos Estados Unidos, a Paramount) anteciparem para maio de 1958 a estréia de Another Time, Another Place, inicialmente planejada para setembro.
Sobre o assassinato de Johnny Stompanato, é necessário fazer dois registros. O primeiro: a defesa da garotinha Cheryl Crane, filha de Lana com o ator Stephen Crane, o segundo dos sete maridos da estrela, invocou a tese de autodefesa, e ela foi inocentada. Segundo: esse episódio da história de Lana Turner foi usado por Woody Allen no seu filme Setembro (1987). Nele, Mia Farrow interpreta uma mulher cuja mãe tinha sido modelo famosa e namorado muitos atores; um de seus amantes foi assassinado.
Cartazes do filme dizem “Introducing Sean Connery”. São mentirosos
As voltas que o mundo dá: o filme que em 1958 foi faladíssimo por causa da história escandalosa envolvendo a grande estrela Lana Turner hoje é obscuro, pouco conhecido. Passou outro dia na TV a cabo, no Telecine Cult, e uma pessoa escreveu no Facebook que estava passando um filme B em que o Sean Connery, antes de virar 007, fazia o papel de amante de uma mulher uns dez anos mais velha do que ele.
(De fato, Lana tem nove anos mais que ele.)
Ao ler o post, corri para programar a gravação do filme numa exibição seguinte – e só depois voltei ao Facebook para comentar que não poderia ser propriamente um filme B, já que tinha Lana Turner no elenco. Um filme inglês que levou Lana Turner a atravessar o Atlântico não poderia ser um filme B.
Mas de fato é fascinante ver como tudo muda com o tempo. Hoje, para muita gente, Another Time, Another Place parece um filme B cuja principal atração é ter Sean Connery no elenco.
Há cartazes do filme que usam a expressão “Introducing Sean Connery”. Não dá para saber se são da época mesmo do lançamento do filme nos Estados Unidos, ou se são posteriores a 1962, quando Sean Connery fez o primeiro 007 do cinema, O Satânico Dr. No/Dr. No.
Sejam esses cartazes de 1958, ou pós a transformação de Sean Connery em astro mundial por dizer “My name is Bond. James Bond”, eles são mentirosos. Em 1958, o ator escocês que estava então com 29 anos (é de 1930) já havia feito várias séries de TV e 3 filmes.
A ação começa em Londres, em 1945, pouco antes do fim da Segunda Guerra
Nos créditos iniciais, é assim a ordem dos nomes dos atores: Lana Turner em primeiro lugar, é claro. É a grande estrela. Depois vêem Barry Sullivan e Glynis Johns.
Só depois, já em corpo bem menor, aparece o nome de Sean Connery.
Mas é ele que aparece primeiro no filme. Um letreiro avisa o leitor que estamos em Londres, 1945 – veremos em seguida que é primeiro semestre, primeiros meses, porque a Segunda Guerra Mundial ainda não terminou. Uma equipe de sapeadores está trabalhando em uma ogiva lançada sobre a capital britânica e que não chegou a explodir. O personagem de Sean Connery chama-se Mark Travers – é um respeitado, famoso repórter da BBC, e está transmitindo ao vivo o trabalho da equipe de especialistas em desarmar bombas.
Uma loura de beleza impressionante chega ao local, e um policial inglês diz que ela não pode passar daquele determinado ponto, porque uma bomba está sendo desarmada naquele momento e há o risco de ela explodir. Sara Scott – este é o nome da personagem de Lana Turner –exibe então para o policial inglês uma carteira em que está escrito “Licença de Correspondente de Guerra Aliado”.
O policial então a deixa passar, depois de fazer uma britânica brincadeirinha.
Diante dos soldados colocados atrás de sacos de areia, a poucos metros do local da queda da ogiva, o inglês Mark Travers dá uma bronca na americana, dizendo algo tipo – “Sra. Scott, este é um lugar perigoso”.
Daí a um minuto os dos se afastam um pouco dos sacos de areia que protegem os militares e os correspondentes de guerra de uma eventual explosão, e entram no carro da BBC – e lá dentro começam a se beijar.
O inglês demora para revelar para a amante que é casado
Para resumir um pouco, a história é assim:
Um mês antes daquela cena mostrada na abertura do filme, os dois jornalistas – o inglês que trabalha para a BBC de Londres, e a americana que trabalha para um jornal de Nova York, de nome fictício, The New York Standard – haviam se conhecido, e se apaixonado perdidamente.
Logo após essa sequência de abertura, Sara vai contar para Mark que o chefe dela, o dono do jornal para o qual ela trabalha, Carter Reynolds (Barry Sullivan), a havia pedido em casamento várias vezes. Na última vez, antes de ela sair de Nova York para Paris, onde cobriria a guerra na cidade tomada pelos nazistas, ela havia dito que aceitava.
Agora, o patrão – e noivo – estava para chegar a Londres. Mas ela contaria para ele que estava apaixonada por Mark.
O espectador nota que Mark-Sean Connery não está muito à vontade.
Sim, ele está apaixonado pela louraça ianque linda – mas não parece muito à vontade.
E aí finalmente ele confessa: é casado. Tem mulher e filho em St. Giles, pequenina cidade de Cornwall. (Acho um horror dizer Cornualha.)
Sara fica em absoluto estado de choque.
Chega a Londres o noivo/patrão. Carter Reynolds é apresentado ao espectador como um patrão e chefe duro, severo, ditatorial – e também determinado, firme, bem relacionado, inteligente, safo. Saca de imediato toda a situação.
A situação, na verdade, está um tanto indefinida. Mark tinha dito a Sara que não a veria mais, que ficaria com a esposa. Mas Sara não tinha acreditado naquilo, achava que eles dois iriam dar um jeito de ficar juntos. E, antes que Mark viajasse para Paris, para cobrir a capitulação dos alemães na França, os dois têm um rápido encontro que deixa tudo no ar, indefinido. Não se sabe se eles vão continuar juntos ou se ele romperá a relação e ficará com a esposa.
A partir daqui há spoilers. Spoilers. Spoilers. Spoilers. Spoilers
Naquele momento, então, quando estamos com 35 minutos de filme, a situação está indefinida, no ar.
Quem eventualmente está lendo este texto e tem interesse em algum dia ver o filme deveria realmente parar por aqui, porque agora virão spoilers e mais spoilers.
O avião em que Mark viaja de Londres para Paris cai pouco antes do pouso em Le Bourget, e ele morre.
O sujeito que a protagonista ama desesperadamente morre quando o filme está com 35 minutos. O ator do filme mais conhecido hoje em dia sai de cena quando o filme está com 35 minutos.
E então Sara dá uma pirada. E não é só ela que fica meio doida, mas a história também.
Depois de seis semanas em um hospital, onde tentam fazê-la se recuperar do choque da morte do grande amor, Sara se compromete com o noivo e patrão Carter a voltar a Nova York num navio que sairia de Plymouth.
Só que, na véspera do dia da partida do navio, ela viaja até St. Giles, a cidade de Cornwall em que o falecido amor vivia. Quer ver o lugar em que Mark nasceu, cresceu…
É claro, é óbvio, está escrito nas estrelas que, tendo ido à cidade de Mark, Sara acaba vendo Brian (Martin Stephens), o filho de Mark. Está passando em frente à casa que sabe ser de Mark, alguém chama Brian pelo nome. Aí fica pálida, parece que vai desmaiar, e a mãe de Brian, a viúva, aparece, e a convida para entrar em sua casa.
A senhora Trevor, Kay Trevor (o papel de Glynis Johns, na foto acima), é uma mulher bela, tranquila, resolvida, fascinante. Dirá as melhores frases do filme.
– “A vida tem um estranho jeito de parecer tranquila até você ficar feliz. Aí, quando você está muito sorridente, ela te dá um grande soco no queixo.”
– “Estranho, não é? Como a presença de alguém que você ama torna um lugar bonito.”
A presença de alguém que você ama torna um lugar bonito.
Lawrence Durrell escreveu a mesma coisa, numa frase mais bela: “A city becomes a world when you love one of its inhabitants”. Uma cidade vira um mundo quando você ama um de seus habitantes.
A decisão da protagonista de mergulhar no ambiente do amado morte é mórbida
Quando Sara Scott-Lana Turner resolveu ir para a cidadezinha do falecido, pensei: diacho, mas que coisa mais mórbida!
Lembrei de O Quarto Verde/La Chambre Vert (1978), o filme absolutamente mórbido de François Truffaut sobre um sujeito que faz em casa um memorial para a esposa morta.
Quando contei a trama básica para Mary (que, esperta, não quis ver o filme comigo), ela se lembrou de outro filme – o australiano A Pequena Morte (2014), em que um personagem só consegue comer a própria mulher quando ela está profundamente adormecida, desfalecida.
Caetano e Milton disseram na canção maravilhosa que qualquer maneira de amor vale a pena. Uma belíssima frase, uma beleza de noção.
O amor dessa Sara Scott que a faz mergulhar no ambiente e no passado do amor morto junto com a esposa dele, no entanto, não me parece que valha a pena. Parece uma exceção à regra de que qualquer maneira de amor vale amar.
O cara estava feliz no casamento – mas de repente surge outra. Acontece todo dia
Este melodramão danado me deixou pensando: diacho, mas é tão comum essa coisa do amor que chega de repente sem que a gente espere…
Para muita gente, se uma pessoa casada se apaixona por outra é porque o casamento já ia mal.
Besteira. Não é assim – ou, no mínimo, não é necessariamente assim. Nem na arte, nem na vida real.
Não é assim neste filme que não é grande, mas tem lá suas qualidades. Mark estava feliz com Kay, e amava sua mulher – mas aí passou na frente dele uma outra mulher, essa Sara que ele não estava esperando. Ele não esperava outra mulher, ela não estava atrás de outra mulher – mas ela apareceu.
Sara pergunta a Mark se ele ainda ama a esposa, ele diz que não sabe – mas é claro que sabe. Ele ama a mulher, não quer fazer a mulher sofrer – e diz isso para Sara. Mas está também apaixonado por Sara. Naquele momento, está amando as duas.
É o que acontece, por exemplo, em Le Bonheur (1965), de Agnès Varda: o protagonista, François, um carpinteiro, homem simples, bom, honesto, marido feliz que ama a mulher e os filhos, conhece Émilie, e se apaixona. Chega a acreditar que pode ter uma felicidade a mais, somar duas felicidades.
Qualquer ser humano que, em algum momento da vida, embora amando um outro/uma outra, tenha sido surpreendido pela paixão por um novo amor sabe como isso é belo, e trágico, e horroroso, e nirvânico.
Eu sei, porque aconteceu comigo quando eu tinha 26 anos, 3 menos do que Sean Connery tinha quando fez esse Mark que amava Kay mas de repente se apaixonou por Sara.
O filme dá uma saudade danada do jornalismo antes da grande crise
Another Time, Another Place me atingiu diretamente, pessoalmente, não apenas porque me fez lembrar disso, essa coisa de a gente de repente, sem estar procurando, sem estar a fim, mergulhar em uma grande paixão, mas também por falar tanto de jornalismo.
Não fala de jornalismo de uma maneira realista, me parece. Creio que nem a autora do romance, Lenore J. Coffee, nem o roteirista Stanley Mann , nem o diretor Lewis Allen conhecia o funcionamento de uma redação, as condições de trabalho dos jornalistas, seu dia-a-dia.
O jornalismo mostrado pelo filme preto-e-branco é róseo demais. A sucursal londrina do jornal de Nova York em que Sara trabalha é imensa demais, imponente demais, e tem gente demais. Não creio que sucursal londrina de nenhum órgão de imprensa seja tão grande e tenha tanta gente – nem mesmo a do New York Times, do Washington Post, da CNN, da CBS.
E nenhuma repórter ou colunista de órgão de imprensa, o mais rico e poderoso que fosse, teria salário capaz de pagar aquela mansão em que Sara mora, com empregada e tudo.
De fato, o retrato que o filme faz de órgãos de imprensa e jornalistas é bastante róseo, distante da realidade.
Mas fiquei pensando, enquanto via o filme e depois, matutando sobre ele, como tudo na imprensa era melhor, mais folgado, uns 20 anos atrás, antes da grande crise que pegou de vez os órgãos de informação com a chegada da internet e do noticiário online.
Os jornais tinham muito mais anúncios do que hoje, e portanto mais dinheiro para investir em gente, e portanto em qualidade do produto.
A busca pela verdade – como têm insistido os grandes jornais americanos nestes primeiros tempos de Donald Trump na Casa Branca – é absolutamente necessária à democracia.
Só que buscar a verdade custa caro.
Ver Another Time, Another Place dá saudade dos tempos anteriores à crise da grande imprensa no mundo inteiro. Dá um nó na garganta.
Anotação em março de 2017
Vítima de uma Paixão/Another Time, Another Place
De Lewis Allen, Inglaterra, 1958
Com Lana Turner (Sara Scott)
e Barry Sullivan (Carter Reynolds), Glynis Johns (Kay Trevor), Sean Connery (Mark Trevor), Terence Longdon (Alan Thompson), Sidney James (Jake Klein), Martin Stephens (Brian Trevor, o filho de Mark e Kay), Doris Hare (Mrs. Bunker, a empregada de Sara), Julian Somers (o gerente do hotel em St. Giles), John Le Mesurier (Dr. Aldridge), Cameron Hall (Alfy), Jane Welsh (Jonesy, a secretária), Robin Bailey (capitão Barnes), Bill Fraser (sargento)
Roteiro Stanley Mann
Baseado em livro de Lenore J. Coffee
Fotografia Jack Hildyard
Música Douglas Gamley
Montagem Geoffrey Foot
Produção Kaydor Productions, Lanturn. Distribuição Paramount Pictures.
P&B, 91 min
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Boa tarde, Sérgio! Desculpe-me a intromissão, mas creio que o filme Vítima de uma Paixão foi postado errado, já que ele é da década de 50.
Nossa, você tem toda razão. Muitíssimo obrigado, Valdecir! Vou lá trocar!
Um abraço!
Sérgio