Chocolate / Chocolat

3.5 out of 5.0 stars

Quando Chocolate estava aí com uns 30 minutos, me ocorreu que faltava drama, tensão. Foi só pensar isso, e não deu outra: a partir daí, o espectador tem uma hora e meia de drama demais, tensão demais, tristeza demais.

A vida de Rafael Padilla, que obteve imenso sucesso como o palhaço Chocolat, na Paris do início do século XX, teve dramas, infortúnios, tristezas que poderiam preencher as vidas de dezenas e dezenas de pessoas.

Como sofreu aquele homem, meu Deus do céu e também da terra.

O filme que conta sua vida faz justiça ao talento de Chocolat, o primeiro artista de pele negra da história da França. É um belo filme, uma produção extremamente bem cuidada, com uma maravilhosa recriação de época, fotografia extraordinária (de Thomas Letellier), trilha sonora belíssima (do sempre competente Gabriel Yared).

O roteiro é claro, direto, sem firulas, sem frescuras: alinhava com competência trechos da rica, densa vida do clown. É assinado por Cyril Gély, um nome novo, e se baseia na biografia escrita por Gérard Noirel Chocolat – Clown Nègre.

O papel do primeiro artista negro da França coube como uma luva para Omar Sy

O papel de Chocolat coube como uma luva para Omar Sy, essa força da natureza que começou a carreira em 2000 e se tornou mundialmente conhecido em 2011 graças ao gigantesco sucesso que foi Intocáveis/Intouchables, em que ele interpreta o homem que traz a alegria de volta à vida de um milionário que havia sofrido um acidente e se tornado tetraplégico.

A dupla de realizadores que fez Intocáveis faria depois outro filme para o talento e a beleza de Omar Sy brilharem – Samba (2014), uma deliciosa maravilha. Agora famosérrimo, Omar Sy tem ganhado um dinheirinho em produções caras americanas, como X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (2014), Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros (2015) e Inferno (2016), a nova aventura do Robert Langdon criado por Dan Brown.

Fazer um filme sério e importante como este Chocolate deve ter sido um imenso prazer para Omar Sy. Assim como deve ter sido de especial significação para seu realizador, o grande ator e diretor bissexto Roschdy Zem, francês descendente de marroquinos. A questão do racismo já estava presente no primeiro dos quatro longa-metragens que dirigiu até agora (Chocolate foi o quarto), Má-Fé/Mauvaise Foi, de 2006, em que interpreta um árabe que vive bem com uma jovem judia interpretada por Cécile de France – até que ela engravida, e aí o mundo cai sobre suas cabeças.

No século XIX, os europeus ainda se espantavam ao ver um negro

Quando o filme começa, um letreiro nos informa o onde e o quando: “Norte da França, 1897”. No meio de um campo, numa área rural, está montado o Circo Delvaux.

Um palhaço está apresentando um número para Théodore Delvaux (Frédéric Pierrot, na foto acima), o dono do circo.

O número do palhaço é ele se atrapalhando com um violino – e é sensacional, extraordinário. Veremos que ele se chama Georges Footit, é um artista experiente, veterano, criativo, talentoso. É interpretado por James Thiérrée, um ator que eu jamais tinha visto, de quem nunca ouvira falar.

Mas Théodore Delvaux parece mais enjoado que gato de hotel. Nem bem permite que Footit termina seu número, e já o dispensa. Diz que, para atrair espectadores, é preciso haver algo realmente extraordinário, sensacional.

Footit, que, pelo jeito, estava passando pela região para tentar um emprego no circo de Delvaux, resolve ficar para assistir a um espetáculo.

E, assim como os espectadores, é surpreendido com um número: um homem negro, grande, imenso, apresentado como Kananga, o Rei Negro.

Kananga, o Rei Negro, faz caretas ameaçadoras, grunhe como se estivesse falando um dialeto africano, chega perto do público – e as pessoas ficam de fato muito assustadas. As crianças, então, parecem morrer de medo.

Não era nada comum, naquele final de século XIX, a presença de pessoas negras em vários países europeus. E os espectadores de fato se assustavam com aquilo que nunca haviam visto antes.

Essa é uma realidade histórica que parece hoje, aos nossos olhos, uma coisa fantástica, inacreditável. A rigor, parece pura e simplesmente mentira. Mas é uma realidade que é mostrada em outros filmes, como, por exemplo, Vênus Negra (2010), do diretor francês de origem tunisiana Abdellatif Kechiche, e O Elo Perdido/Man to Man (2005), do francês Régis Wargnier.

Em Vênus Negra, um holandês que se fixou durante um tempo no Sul da África leva primeiro para Londres e depois para Paris uma mulher africana, e a exibe em shows humilhantes como se fosse uma criatura monstruosa. A época é 1808.

Em O Elo Perdido, uma aventureira que vende animais selvagens africanos para zoológicos europeus e um antropólogo levam um casal de pigmeus para a Escócia, por volta de 1870.

Em Chocolate, o mestre de cerimônias do Circo Delvaux, o próprio Théodore Delvaux, apresenta o Rei Negro Kananga como tendo sido trazido das selvas dos gorilas, “o elo perdido entre aqueles primatas e nós”.

E, ao longo do filme, repete-se várias vezes o espanto das pessoas diante da cor da pele de Kananga, depois Chocolate. Um garoto passa o dedo no braço dele, para ver não era tinta, se não saía.

A dupla de palhaços, um negro, um branco, faz um tremendo sucesso

O experiente Georges Footit fica muito impressionado com a figura imensa do negro que faz o papel de canibal para assustar os frequentadores do circo. Inteligente, safo, imagina que um número de dois palhaços, um branco e um negro, seria uma absoluta novidade, algo jamais visto, jamais concebido em qualquer lugar da França.

Vai então conversar com o homem. Expõe sua idéia, sugere dar a ele um treinamento de como se conduzir como um palhaço, como movimentar seu corpo de forma engraçada.

Apresentam-se diante de Delvaux – e este, que é dono de um circo pobre, mas não é burro, percebe imediatamente que tem diante de si um número precioso. Rebatizam Rafael com o nome artístico de Chocolat.

A dupla Footit e Chocolat rapidamente passa a ser a maior atração do circo.

Chocolat inicia um namoro com Camille (Alice de Lencquesaing), uma bela dançarina do Circo Delvaux.

A fama da dupla começa a se espalhar. Joseph Oller (Olivier Gourmet), o dono da casa de espetáculos circenses mais luxuosa de Paris, vai ver uma apresentação – e logo em seguida propõe levá-los como contratados para o seu Nouveau Cirque.

Fazem em Paris, na casa elegante, um sucesso ainda mais retumbante. Em poucos meses, estão ficando ricos.

A fortuna que chega não altera em absolutamente nada a vida de Georges Footit. Já quem nunca comeu melado…

Estávamos por aí, com cerca de 30 minutos do filme, quando comecei a pensar que até então faltava drama, tensão.

E então todo o drama que é possível conceber começa a desabar sobre Chocolat.

Os realizadores deixam muito claro que não é um relato exato dos fatos reais

Como acontece sempre nos filmes baseados em histórias reais, ao final da narrativa letreiros nos informam sobre alguns fatos básicos acontecidos depois do que foi mostrado na tela.

Eis o que é dito: “Rafael Padilla morreu em 4 de novembro de 1917. Não tinha sequer 50 anos. Seu nome e sua obra foram esquecidos há muito tempo. Com Georges Footit, ele revolucionou a comédia clownesca e impôs para sempre o duo do augusto e do palhaço branco”.

Nos créditos finais, é realçado o fato de que o filme é uma adaptação livre da biografia escrita por Gérard Noirel. Ou seja: o filme deixa claro que não pretendeu ser uma biografia bastante fiel à verdade dos fatos. Que os autores da adaptação tomaram liberdades.

Três pessoas assinam a adaptação – que é como os franceses chamam a história, o argumento, a trama, o libreto, antes de ser transformada no roteiro, com as anotações específicas da linguagem cinematográfica, posição de câmara, tipo de iluminação, essas coisas: o próprio diretor Roschdy Zem, o autor da biografia Chocolat – Clown Nègre, Gérard Noiriel, e Olivier Gorce.

O produtor Nicolas Altmayer explicou em entrevistas que não se trata de uma biografia, mas de uma ficção inspirada no livro sobre a vida de Chocolat. “Gérard Noiriel não via inconveniência alguma em se tomar algumas liberdades com a história real. O importante era que não se traísse o espírito, e que os acontecimentos fossem verossímeis. Quanto ao que concerne o contexto histórico, nos baseamentos em documentos e documentários, e Cyril Gély (o roteirista) foi bastante fiel à realidade da época retratada.”

O próprio Chocolat foi o responsável por boa parte das tragédias de sua vida

Se o espírito das coisas não foi traído, então, pelo que o belo filme de Roschdy Zem mostra, Rafael Padilla foi ele mesmo o responsável por parte das tragédias que aconteceram em sua vida.

O dito popular “quem nunca comeu, quando come se lambuza” é cruel, duro, mas extremamente verdadeiro. Chocolat foi prova disso, assim como tantos artistas de teatro, de cinema, da música, como tantos desportistas ao longo das décadas.

Chocolat foi presa fácil dos males que podem vir juntamente o dinheiro que chega rápido, e em excesso.

O filme mostra que, mesmo quando era Kananga, o Rei Negro, e ganhava um salarinho miserável pago pelos Delvaux, marido e mulher, ele já tinha fascinação por jogo.

Com os rios de dinheiro que começou a ganhar em Paris, o fascínio exacerbou-se, e ele era capaz de perder fortunas do dia para a noite.

Torrou o que ganhou com o jogo, as drogas, as mulheres, as roupas, o carro.

Não conseguia compreender como seu colega e par Georges Footit não esbanjava o dinheiro dele.

Ou seja: Chocolat foi o único responsável por parte das tragédias que viriam a se abater sobre ele. O filme deixa isso absolutamente claro.

Como se não bastassem seus próprios defeitos, sua incapacidade de saber como lidar com a repentina fartura, havia ainda os imensos problemas trazidos pelo fato de a cor de sua pele ser negra.

Um intelectual haitiano, ativista da negritude, faz a cabeça de Chocolat

Um personagem que seguramente é um compósito é o haitiano Victor, o homem que primeiro desperta em Chocolat a consciência de sua negritude, e embute na cabeça dele que o seu ato no Noveau Cirque de Paris é ofensivo aos negros.

Victor (interpretado por Alex Descas, um ator francês de origem antilhana) de fato parece ser, mais que um ser humano real, um compósito – o resultado da reunião de características de pessoas reais em um único personagem, para melhor efeito dramático.

E é uma bela sacada dos realizadores. O efeito dramático de fato é imenso. Chocolat já é um artista de imensa fama, reconhecido na rua e venerado pelas crianças, sempre presente nos jornais, quando, de repente, é parado por um grupo de policiais que exigem ver seus documentos. O espectador já sabia que Chocolat não tem documentos – é um sans papier, um “clandestino, quiebra ley, Mano Negra, ilegal”, como resumiria muitas décadas depois, com genialidade, o compositor Manu Chao, francês descendente de galega e basco.

Um pouco mais tarde, Georges Footit contará para Chocolat e para o espectador que a ação da polícia foi provocada por uma denúncia feita por Yvone Delvaux (Noémie Lvovsky), a mulher do dono do circo em que o duo começou a carreira, uma pessoa apresentada como um poço de mágoa, frustração, despeito.

Mas o fato é que Chocolat é levado para a prisão e sofre todo tipo de humilhação pelos policiais e carcereiros.

Até então, o fato de ele ter pele negra tinha sido motivo de curiosidade, assombro, espanto – e sucesso imenso primeiro no circo interiorano, depois no Noveau Cirque de Paris.

Na prisão, a pele negra é a justificativa usada por brancos idiotas para agredir e humilhar Chocolat de forma covarde, brutal, absurda.

E acontece de seu colega de cela ser um negro intelectual, estudado – um ferrenho ativista da negritude.

Não é nada, mas nada difícil convencer Chocolat de que participar de um número em que um palhaço branco bate em um palhaço negro é uma horrorosa, ignominiosa, ciclópica demonstração de preconceito racial, de exercício de flagrante delito contra os direitos humanos.

E então – conforme o filme mostra, deixa claríssimo – Chocolat não consegue separar as coisas. Ao contrário, mistura tudo num caldeirão só, e passa a ver Georges Footit como um inimigo, um opressor.

O sujeito que o tirou de um cirquinho interiorano em que se fazia passar por um canibal violento e o transformou no primeiro grande artista de pele negra a fazer sucesso em Paris vira, na cabeça dele, um opressor.

Dois grandes atores em interpretações magníficas, Omar Sy e James Thiérrée

São dois grandes atores, esses dois que interpretam Chocolat e Footit.

Omar Sy, que eu já conhecia bem, é aquela força da natureza, aquele monumento.

Nunca tinha visto nem ouvido falar em James Thiérrée, repito. Ele faz um Georges Footit que é em quase tudo o oposto, o antônimo, o antípoda de Chocolat. Até o baque violentérrimo da prisão, Chocolat é um homem alegre, pra cima, expansivo, livre leve solto. Um hedonista – um sujeito apaixonado pelos prazeres mundanos, aqueles que as religiões chamam de pecado.

James Thiérrée compôs um Footfit denso, pesado, ensimesmado, fechado, acabrunhado, triste. Um artista de talento, imaginação, como já foi dito, um artista que domina sua arte e faz questão de estar sempre se aprimorando nela – mas um homem triste. Faz lembrar o título brasileiro da cinebiografia de Buster Keaton, um dos grandes gênios da comédia no cinema – O Palhaço Que Não Ri.

Mary e eu ficamos impressionadíssimos com a interpretação desse ator que não conhecíamos – e seguramente todas as pessoas que virem o filme ficarão também.

Foi só depois que o filme terminou que ficamos sabendo que o homem é neto de Charlie Chaplin.

E depois que soube disso fiquei chocado comigo mesmo, com minha falta de atenção, de percepção: em diversas tomadas ao longo de Chocolat, o rosto de James Thiérrée é muito, mas muito, mas muito parecido com o de Charles Spencer Chaplin.

Incrivelmente parecido com o Chaplin de Luzes da Cidade (1931), Tempos Modernos (1936) – a época em que ele estava com 40 e tantos anos, como James Thiérrée tinha na época de lançamento de Chocolat.

Nasceu em 1974, na Suíça, o país para onde o avô se mudou com a mulher Oona ao deixar Hollywood para trás. O avó morreria apenas 3 anos depois do nascimento do neto, em 1977.

É filho de Jean-Baptiste Thiérrée e Victoria Chaplin. Victoria, filha de Charlie e Oona, deu ao filho o segundo nome do pai: ele é James Spencer Henry Edmond Marcel Thiérrée.

Começou a carreira em 1991; Chocolat foi o título de número 29 em sua filmografia como ator.

Assim como o avô, é homem multitalento. Compõe e toca violino. Na trilha sonora de Chocolat, pode-se ouvir seu violino.

A arte é uma poderosa arma contra a ignorância, a opressão, o racismo

Ao finalzinho de Chocolate, o diretor Roschdy Zem nos presenteia com um filmetinho feito no Nouveau Cirque de Paris ali por volta de 1905, com Footit e Chocolat apresentando um de seus números – que já havíamos visto os dois atores fazer diante de uma câmara de cinema, lá pelo meio do filme.

É de babar. Pelo talento de Footit e Chocolat, pelo talento de Omar Sy e James Thiérrée. Por existir a arte, e ela poder ser usada como arma contra a ignorância, a opressão, o racismo.

Anotação em junho de 2017

Chocolate/Chocolat

De Roschdy Zem, França, 2016.

Com Omar Sy (Rafael Padilla, o Chocolat), James Thiérrée (Georges Footit)

e Clotilde Hesme (Marie Hecquet), Olivier Gourmet (Joseph Oller), Frédéric Pierrot (Théodore Delvaux), Noémie Lvovsky (Yvonne Delvaux), Alice de Lencquesaing (Camille), Alex Descas (Victor), Olivier Rabourdin (Firmin Gemier), Thibault de Montalembert (Jules Moy), Héléna Soubeyrand (Régina Badet), Xavier Beauvois (Jacques Potin), Krystoff Fluder (Marval, o liliputiano), Antonin Maurel (o palhaço Ortis), Mick Holsbeke (o palhaço Green)

Roteiro Cyril Gély

Adaptação Olivier Gorce, Gérard Noiriel, Roschdy Zem

Fotografia Thomas Letellier

Música Gabriel Yared

Montagem Monica Coleman

Casting David Bertrand

Produção Eric Altmayer e Nicolas Altmayer, Mandarin Cinéma, Gaumont, Korokoro, M6 Films, Canal+, Ciné+.

Cor, 119 min (1h59)

***1/2

7 Comentários para “Chocolate / Chocolat”

  1. Assisti esse filme pela primeira vez essa semana e esse texto caiu como uma luva, perfeito. É tudo que pensei, mas jamais escreveria tão deliciosamente.

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