Nós todos envelhecemos – nós, os das gerações nascidas aí entre 1945 e 1955, que vimos A Última Sessão de Cinema quando éramos jovens e tínhamos desejos fortes e sonhos ambiciosos e nos apaixonamos pelo filme. Peter Bogdanovich e aquela penca de atores envelheceram, é claro, e nós os vimos envelhecer nas telas.
Nós todos envelhecemos – mas A Última Sessão de Cinema não envelheceu um dia. Não perdeu nada do seu brilho, não ficou datado, desfocado. Porque é um clássico, em vários dos sentidos da palavra. É modelar, exemplar. É também consagrado, teve seu valor posto à prova e resistiu à passagem do tempo. Mas, sobretudo, é sóbrio, sem excessos, sem modismos. Clássico.
Peter Bogdanovich era jovem – como éramos todos jovens, meu Deus do céu e também da terra! –, vinha da crítica, e muitos diretores jovens, em especial os que conhecem a fundo História do Cinema, que passaram pela crítica, cedem à tentação de encher seus filmes de modismos, fogos de artifício, “inovações”, “novidades”, coisas para mostrar que eles não são como a maioria, são diferentes, são geniais.
Aí fazem filmes que, depois de dez anos, parecem datados – e chatos.
Bogdanovich fez em 1971 um filme sobre jovens que era novo, era clara e ferozmente novo, mas era clássico – naquele sentido fundamental de sóbrio, sem excessos, sem modismos.
Era o tempo da Guerra Fria e do macarthismo, mas na cidadezinha não se falava disso
A Última Sessão de Cinema, na minha opinião, é um dos mais belos – e mais tristes – de todos os filmes que já foram feitos sobre a coisa que a língua inglesa resume numa expressão curtinha, coming of age – a chegada ao fim da adolescência, a passagem para a vida adulta. E um dos mais belos – e mais tristes – filmes sobre a vida em cidade bem pequena.
Não é pouca coisa. Como há filmes demais sobre o rito de passagem da adolescência para a vida adulta, e filmes demais sobre a vida em cidade bem pequena, não é pouca coisa.
Peter Bogdanovich tinha 32 anos em 1971, o ano de lançamento do filme. Já havia feito um thriller de orçamento baixíssimo, Na Mira da Morte/Targets, em 1968, e um documentário sobre um de seus ídolos, Directed by John Ford, lançado também em 1971.
Fez também o roteiro, a quatro mãos com Larry McMurtry, o autor do romance A Última Sessão de Cinema, lançado em 1966. Larry McMurtry também era jovem – estava então com 35 anos –, mas, prolífico demais, já havia lançado vários livros antes desse.
(O Indomado/Hud, de 1963, e Laços de Ternura/Terms of Endearment, de 1983, são alguns dos filmes baseados em livros do autor.)
Bogdanovich é urbanóide de metrópole – cresceu em Nova York. Já Larry McMurtry nasceu (em 1936) em Archer City, cidade pequena do Norte do Texas, não muito distante de Oaklahoma. Conhece bem aquilo de que fala no seu livro – a vida numa pequena cidade perdida no interiorzão dos Estados Unidos.
McMurtry situou sua história em 1951 e 1952, a época em que ele mesmo estava com 15 anos – Bogdanovich estava com 12. Fazia apenas seis anos que terminara a Segunda Guerra Mundial, e o governo americano já estava mandando jovens para lutar na Guerra da Coréia.
Era o tempo da Guerra Fria e do macarthismo – mas essas eram coisas muito, muito distantes de Anarene, a cidade fictícia criada por McMurtry a partir de sua vida em Archer City. Ninguém falava disso, ninguém sabia o que era isso.
As pessoas, em Anarene, e especialmente os jovens aí na faixa dos 17, 18 anos, queriam saber de televisão, aquela novidade que começava a aparecer na casa dos mais ricos, filmes de Hollywood no único cinema da cidade, o Cine Royal, o time de futebol americano da cidade, chicletes, álcool e, sobretudo, acima de tudo, mais que tudo, sexo.
Sexo permeia toda a narrativa de A Última Sessão de Cinema.
Há quatro personagens de mais de 40 anos. O foco do filme são os adolescentes
O filme focaliza um grupo de pessoas de Anarene que se conhecem bem – uma dezena, talvez uma dúzia de pessoas tem importância na trama. O mais velho deles, o que é assim um patriarca, está aí com uns 50 e tantos anos. Chama-se Sam, o Leão, e é o dono do salão de sinuca, da lanchonete e do cinema da cidade. É interpretado por Ben Johnson (na foto acima), uma figura fascinante: cowboy autêntico, homem de rodeios, começou no cinema como cuidador de cavalos nos estúdios e dublê em cenas de cavalgada dos astros John Wayne, Gary Cooper e James Stewart. Foi descoberto por John Ford, e teve papel importante em Caravana dos Bravos (1950).
A presença de Ben Johnson é uma das ligações do filme com o western de uma maneira geral e especificamente com John Ford, um dos maiores ídolos, como já foi dito e ainda será repetido, do diretor Bogdanovich.
As pessoas tidas como “velhas” no filme estão aí com 40 anos, 40 e tantos. Nesse grupo está Lois Farrow, a mulher do homem mais rico da cidade, o sujeito que tem poços de petróleo – o papel da maravilhosa Ellen Burstyn, que tinha apenas 39 quando o filme foi lançado. Está Ruth Popper, a mulher do treinador do time de basquete da escola – uma interpretação acachapante, fantástica, extraordinária de Cloris Leachman, que estava com 45 anos. E ainda Genevieve, a simpática faz tudo da lanchonete de Sam The Lion, uma alma generosa, interpretada por Eileen Brennan, que estava com 39 anos.
Sam The Lion e essas três mulheres citadas são muito importantes na trama – mas o filme focaliza principalmente o grupo de adolescentes aí dos 17, 18 anos.
Os atores escolhidos pelo diretor de casting Ross Brown e, em última forma, por Peter Bogdanovich, não eram tão absolutamente jovens assim. Eles nos parecem hoje jovem demais, absurdamente jovens, porque, repito, os vimos envelhecer ao longo destas últimas quatro décadas e meia. Mas, a rigor, na época, deve ter tido seguramente gente que disse que escolheram atores um tanto passados da idade para representar garotões que ainda estão na escola – não na universidade, mas no secundário.
Timothy Buttons é de 1951 – estava portanto com 20 anos quando o filme foi lançado.
Jeff Bridges é dois anos mais velho, estava com 22.
Cybill Shepherd é de 1950, o mesmo ano que eu – tinha 21.
Randy Quaid também tinha 21. Sam Bottoms era o caçula – tinha 16.
Foi o primeiro filme de Cybill meu Deus do céu e também da terra Shepherd. Um dos dois primeiros de Timothy Buttons, que, naquele mesmo ano de 1971, estrelou Johnny Vai à Guerra/Johnny Got His Gun, o único filme dirigido pelo grande roteirista Dalton Trumbo. Dos principais atores jovens do filme, só Jeff Bridges tinha experiência – uma dúzia de trabalhos, a grande maioria para a TV.
Sonny é o protagonista da história, mas Duanne foi tema de outros livros do autor
Sonny (o papel de Timothy Bottoms, à direita na foto acima) e Duane (o de Jeff Bridges, à esquerda) são amigos-irmãos, daquele tipo que um é o melhor amigo do outro, e fazem tudo junto – estão na mesma classe, no mesmo time de futebol americano, dividem uma picape, dividem a admiração por Jacy (o papel de Cybill mas o que que é aquilo Shepherd), simplesmente a moça mais linda da cidade. Não precisaria ser também a mais rica, mas era – Jacy é filha de Lois Farrow, a mulher do homem dos poços de petróleo.
Sonny é um garotão muito bonito, mas Duane é mais, e então quem Jacy escolheu para namorar foi ele. Bem mais tarde, bem mais tarde, Jacy vai lançar sua teia para capturar Sonny.
Sonny é o protagonista da história. É em torno dele que tudo gira na trama. A vida na empoeirada, feiosa, nada atraente cidadezinha de Anarene é mostrada ao espectador como se através dos olhos de Sonny, o sujeito mais sensível de todas aquelas pessoas.
Seguramente, se alguém ali é o alter-ego do escritor Larry McMurtry, é Sonny. É – dá para o espectador perceber claramente – o personagem preferido do diretor Peter Bogdanovich.
Fascinantemente, no entanto, foi o personagem de Duane que se transformou no protagonista de quatro outros livros de McMurtry: Texasville (1987), Duane’s Depressed (1999), When The Light Goes (2007) e Rhino Ranch: A Novel (2009).
Texasville também virou filme, uma produção de 1990 também dirigida por Bogdanovich e com os todos os principais atores de A Última Sessão, nos mesmos papéis haviam interpretado no filme de 19 anos antes. Em Texasville, a ação se passa em 1984, 32 anos após os acontecimentos do filme anterior; nele, muda a importância dos personagens: Duane passa a ser o protagonista, e Sonny vira secundário.
O personagem Billy, o garoto mudo, é uma beleza, muito bem desenhado
Alguns pontos interessantes, a ressaltar, ou que me impressionaram de maneira especial ao rever o filme agora, depois de 36 anos (tinha visto uma vez no lançamento aqui, em 1972, outra em 1973 e depois mais uma em 1981):
* Toda a composição do personagem Billy é uma maravilha. O espectador vê Billy, interpretado por Sam Bottoms, irmão mais novo de Timothy Bottoms, logo na primeira sequência do filme. Venta forte em Anarene; venta muito forte, furiosamente. A câmara vai fazendo um suave travelling, mostrando uma das principais ruas da cidade, a rua do cinema, quase inteiramente deserta, todas as janelas das lojas e das casas fechadas na tentativa de barrar a poeira densa levantada pela tempestade de vento.
No meio da rua, varrendo a rua com uma vassoura de piaçava, está Billy, um garoto de 16 anos.
Nesse momento aparece Sonny, dirigindo a velhíssima picape. Sonny vai até Billy, o abraça, o leva para dentro da sinuca de Sam The Lion.
Um garoto que varre a rua no meio de uma tempestade de vento.
Billy é mudo – isso é fato. Se é retardado, débil mental, louco, isso não é dito. Todo mundo gosta de Billy, o trata bem – Sam The Lion e Sonny mais que todos.
Em vários filmes sobre pequenas comunidades há a figura da pessoa que parece ou meio retardada ou meio louca. Me vem à lembrança a figura de Michael, o louco do pequeno povoado de A Filha de Ryan (1970), do mestre David Lean, interpretado por John Mills. Em cada filme, essa pessoa fora da razão comum tem sua importância.
Billy é como se fosse o mascote das pessoas da cidadezinha perdida no meio do nada texano.
Billy adora Sonny – basta Sonny aparecer para ele abrir um belo sorriso. Sonny desenvolveu com Billy um toque que demonstra amizade, afeição. Sempre que se encontram, Sonny pega o boné de Billy e o coloca ao contrário, com a aba voltada para a nuca.
Uma das seqüências mais belas e mais tristes deste filme belo e triste acontece em um cemitério (na foto abaixo). A câmara do diretor de fotografia Robert Surtees focaliza, da esquerda para a direita, os rostos de Genevieve, a faz tudo da lanchonete, de Billy e de Sonny. Genevieve e Sonny têm expressões de profunda tristeza diante da morte da pessoa muito querida.
Sonny tira o boné de Billy. Na última homenagem a um ente querido, a cabeça tem que ficar descoberta.
Billy não compreende isso. Acha que Sonny está brincando com ele, como sempre brinca de mexer com o boné.
Sonny desiste de tentar tirar o boné na cabeça do garoto. Ele não iria mesmo compreender.
É uma tomada absolutamente impressionante, emocionante.
Cada vez mais acho que os bons filmes se revelam quando revelam pequenos detalhes sobre o comportamento dos personagens.
Não haveria A Última Sessão de Cinema sem Hank Williamas
* Não há trilha sonora em A Última Sessão de Cinema. Não há música composta para o filme.
Não me lembrava desse detalhe, que a rigor não é um detalhe, é uma marca importante. Se é que reparei nisso quando vi o filme das outras vezes, tinha me esquecido.
Há música ao longo de boa parte dos 118 minutos do filme, sim – mas não música feita para o espectador escutar. É sempre música incidental, música que está tocando nos ambientes em que estão os personagens. Que toca no rádio dos carros, ou no rádio dos bares, ou no toca-disco de uma ou outra casa.
E dá-lhe Hank Williams.
Não é só Hank Williams, claro. Há outro grande do country do início dos anos 50, Lefty Frizzell. Há até Eddie Fisher cantando uma canção – o cantor e ator que se casaria com Debbie Reynolds em 1955, e seria o pai de Carrie Fisher, e em 1959 se separaria dela para se casar com Elizabeth Taylor – que aliás aparece no filme.
Há até um jovem Tony Bennett cantando “Blue Velvet”, mas também cantando “Cold, cold heart”, de Hank Williams.
As rádios tocavam principalmente – e os personagens ouviam, e aí os espectadores também ouvem – Hank Williams.
Não haveria A Última Sessão de Cinema sem Hank Williams.
Quatro filmes são citados; vemos cenas de dois deles, na tela do Cine Royal
* O espectador fica sabendo que o Cine Royal, o único de Anarene, exibe, ao longo do tempo em que se passa a ação, O Pai da Noiva, Iwo Jima – O Portal da Glória/Sands of Iwo Jima, Winchester ‘73 e Rio Vermelho.
Dos dois do meio, só vemos os cartazes, à frente do cinema. Sands of Iwo Jima, de 1949, mostra a batalha pela ilha ocupada pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial; John Wayne interpreta um heróico sargento. Winchester ’73, claro, é o grande western clássico de Anthony Mann com James Stewart, lançado em 1950.
Vemos, junto com os personagens do filme, uma sequência de O Pai da Noiva (1950), de Vincente Minnelli, com o grande Spencer Tracy e a jovem Liz Taylor, linda de matar. Na verdade, vemos a sequência até mais do que os personagens, porque naquele momento Duane e Jacy, assim como Sonny e sua então namorada, Charlene (Sharon Taggart), estão se agarrando e se beijando no escurinho do cinema. Há uma tomada deliciosa: Charlene avança sobre Sonny; a câmara pega os dois, e vemos o cabelo de Charlene, a parte de trás da cabeça dela, e um pedaço do rosto de Sonny. Ele está com o olho bem aberto, olhando para a tela. Corta, e vemos que na tela está Liz Taylor.
Essa sequência acontece quando o filme está aí com uns 15, talvez 20 minutos. A sequência em que o espectador vê trechos de Rio Vermelho, o clássico que Howard Hawks lançou em 1948, vem bem mais para o fim. É exatamente a última sessão de cinema, the last picture show: o Cine Royal vai fechar. Miss Moley (Jessie Lee Fulton), a senhora que cuidava de tudo no cinema, cedeu ante a força dos fatos. Quase ninguém mais estava indo ao cinema, ela diz. Agora todos ficavam em casa vendo televisão.
Sonny e Duane estão praticamente sozinhos na platéia, enquanto John Wayne e Montgomery Cliff chefiam uma porção de cowboys que vai tocar a manada de gado até o Missouri.
É uma belíssima homenagem de Peter Bogdanovich a John Ford, ao western, ao cinema.
Não é por frescura que Bogdanovich filmou em P&B. O filme só poderia ser em P&B
* A opção de Bogdanovich pelo preto-e-branco é marcante. Em 1971, nos Estados Unidos, filmes em preto-e-branco eram uma absoluta raridade. Nos anos 60 ainda havia alguns, mas eles foram raleando cada vez mais para o final da década. Também na Europa todos os grandes realizadores haviam aderido às cores ao longo dos anos 60. (Falo extensamente sobre isto no texto A década que coloriu o cinema.)
Não que tenha sido uma opção por capricho ou frescura ou modismo, apenas para parecer diferente. Ao contrário: longe de ser uma brincadeirinha formal, o preto-e-branco tem tudo a ver com o conteúdo, o tema, a história. Em 1951, 1952, os filmes em cores é que eram minoria. Os filmes que os personagens viam no único cinema da cidade eram todos em preto-e-branco. A vida na pequenina cidade texana era seguramente em preto-e-branco.
De 1971 em diante, haveria outros poucos exemplos de filmes americanos em preto-e-branco – sempre filmes diferenciados, distantes do cinemão comercial, autorais, como Manhattan (1979), de Woody Allen, O Touro Indomável (1980), de Martin Scorsese, O Selvagem da Motocicleta/Rumble Fish (1983), de Francis Ford Coppola, A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg.
Bogdanovich veio na mesma leva de Allen, Scorsese, Coppola e Spielberg
A citação de Woody Allen, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Steven Spielberg não é gratuita. Absolutamente não é gratuita.
É unânime a constatação de que Scorsese, Coppola e Spielberg foram os nomes mais importantes do movimento que promoveu uma grande revolução em Hollywood, nos anos 70. Não que tenham sido eles os responsáveis pelo fim do sistema dos grandes estúdios – até porque os grandes estúdios continuam aí. Mas eles mudaram a forma de os grandes estúdios se relacionarem com os diretores e com os atores. A força dos estúdios, dos chefões tipo Irving Thalberg, Jack Warner, David O. Selznick, Darryl F. Zanuck, diminuiu muito, e aumentou a importância dos realizadores, a partir da revolução comandada por esses três grandes artistas.
Isso é a mais absoluta verdade, não há quem não concorde. E foi de fato um movimento que aconteceu no mesmo período: Scorsese fez seu primeiro longa em 1967, e firmou-se como nome importante a partir de Alice Não Mora Mais Aqui (1974), por coincidência com Ellen Burstyn (na foto acima). Coppola estreou em 1966 e estourou com The Godfather (1972). Spielberg fascinou os mais atentos em 1971 com Encurralado e virou fenômeno com Tubarão (1975).
Quanto a Woody Allen, esse aí sempre correu por fora. Não pode ser associado a movimento algum porque é figura única – embora tenha dividido um longa-metragem com os contemporâneos Scorsese e Coppola em 1989, Contos de Nova York. Mas fez tudo na mesmíssima época que os outros três: primeiro longa em 1969, amplo reconhecimento com Annie Hall (1977).
Pois bem: Peter Bogdanovich fez tudo ao mesmo tempo que os outro quatro grandes realizadores citados aí. A rigor, foi o primeiro entre eles a estourar – porque A Última Sessão de Cinema foi um estouro, agradando tanto à crítica quanto à Academia, que o indicou a oito Oscars e o premiou com dois.
Se sua importância não é reconhecida como a de Scorsese, Coppola e Spielberg, Allen correndo por fora, o problema não é dele, nem da realidade dos fatos, mas de quem escreve sobre cinema.
É “por causa de umas questões paralelas” – para usar a expressão de Chico Buarque – que a importância de Bogdanovich e de toda a sua obra não é inteiramente reconhecida.
O filme teve oito indicações ao Oscar; Ben Johnson e Cloris Leachman venceram
Mas a importância de A Última Sessão de Cinema, especificamente, esta foi bem reconhecida. As questões paralelas viriam depois.
Tanto Leonard Maltin quanto Roger Ebert deram ao filme a cotação máxima de 4 estrelas.
Diz Maltin: “Brilhante estudo da vida numa pequena cidade do Texas durante os anos 1950, e como as vidas dos personagens se entrelaçam, da novela de Larry McMurtry (ele e o diretor Bogdanovich escreveram o roteiro). Os Oscars foram para (Ben) Johnson e (Cloris) Leachman por suas atuações sensíveis, mas todo elenco trabalha no mesmo nível. Belamente fotografado em preto & preto por Robert Surtees. Estréia no cinema de (Cybill) Shepherd. Sequência: Texasville. ‘Edição Especial’ do filme, disponível em laserdisc, foi completamente remontada por Bodgdanovich em 1990, e inclui sete minutos de material original cortado do filme.”
Interessante essa informação sobre remontagem feita pelo próprio autor em 1990. Não sabia disso.
Aproveito que Maltin citou que Ben Johnson e Cloris Leachman (nas duas fotos abaixo) levaram os Oscars – nas categorias de atriz e ator coadjuvante – para registrar as outras seis indicações que o filme teve aos prêmios da Academia: filme, diretor, ator coadjuvante para Jeff Bridges, atriz coadjuvante para Ellen Burstyn, roteiro adaptado, fotografia.
Ao Globo de Ouro, foram seis indicações, e o filme levou os prêmios de melhor filme drama, melhor diretor e melhor ator coadjuvante para Ben Johnson. As outras indicações foram para Ellen Burstyn e Cloris Leachman na categoria atriz coadjuvante e melhor estréia promissora para Cybill Shepherd.
“O filme tem sentimentos básicos decentes”, mas tem visão rasa, diz Pauline Kael
Pauline Kael começa dizendo que o filme é “direto, envolvente e narrativo”. “É simples e sem condescendência na recriação do que significa ser uma atleta ginasial, do que é um baile no interior, dos agarramentos em carros e cinemas, e da desolação que se segue à formatura do ginásio. Interessado na experiência adolescente vista em termos da anomia das planícies – solidão, ignorância sobre o sexo, confusão sobre os próprios objetivos na vida –, o filme tem sentimentos básicos decentes, com as pessoas relacionando-se umas com as outras, às vezes em níveis muito simples, e tornando-se infelizes quando não conseguem relacionar-se. A fotografia estilizada de Robert Surtees é em preto-e-branco, e os frequentes delineamentos – que fazem parecer que estamos olhando o mapa da vida como ela era – ajudam a esclarecer o tema.”
Depois disso, a prima donna da crítica americana começa a dizer que o filme tem uma visão rasa da vida da cidadezinha que é perigosamente próxima da TV, “sobretudo da série Peyton Place” – e aí me dá preguiça de continuar transcrevendo.
É como se fosse o melhor filme feito em 1951, diz Ebert
O texto de Roger Ebert começa assim: “Havia alguma coisa especial em ir ao cinema nos anos 1950 que nunca mais vai ser igual. Era a década do último suspiro do grande hábito americano de ir ao cinema, e diante dos meus olhos, em meados dos anos 50, as matinês para crianças dos sábados morreu uma morte lenta no Cine Princess na Rua Principal de Urbana. Por cinco ou seis anos da minha vida (os anos entre a época em que eu já tinha idade para ir sozinho, e a época em que a TV chegou à cidade), o sábado à noite no Princess era uma viagem à caverna mágica que cheirava a jujuba, dropes e pipoca. Foi provavelmente em uma daquelas tardes de sábado que formei minha primeira opinião crítica, decidindo vagamente que havia algo em John Wayne que o tornava diferente dos outros caubóis”
Que maravilha!
Para esclarecer: Roger Ebert nasceu (na citada Urbana, de Illinois) em 1942.
O Cine Princess de Urbana fechou no começo dos anos 60, Ebert informa. E em seguida: “The Last Picture Show de Peter Bogdanovich usa o fechamento de outro cinema em outra Rua Principal como o motif para enquadrar um grande número de coisas que aconteceram nos Estados Unidos no início dos anos 1950. O cinema é o Royal, e junto com a casa de sinuca e o café aberto a noite inteira, ele fornece a pequeno excitação e sensação de comunidade que sobrevive em uma pequena cidade do Texas chamada Anarene. Todos os três pertencem a Sam The Lion, que é provavelmente o único homem satisfeito da cidade. Os outros estão infectados por uma moléstia geral, e se empenham em infidelidades sexuais em parte para lembrar a si mesmos que estão vivos.”
E bem mais adiante:
“The Last Picture Show foi descrito como uma evocação dos filmes de narrativa clássica de Hollywood. É mais do que isso; é um registro daquela época que foi feito depois – o melhor filme de 1951, você poderia dizer. Usar canções e a decoração de um determinado período para criar nostalgia é algo bastante familiar, mas entrar no túnel do tempo no campo visual, da maneira certa, e de uma maneira que vai afetar as platéias mesmo sem que elas estejam atentas, esse fato é uma danada de uma proeza de direção. Os filmes criam nossos sonhos da mesma maneira com que os refletem, e quando nós perdemos os filmes nós perdemos nossos sonhos. Fico pensando se o filme de Bogdanovich afinal não explica o que foi que Pauline Kael, e muitos de nós todos, perdemos nos filmes.”
Ah, cacete, quando leio os textos do Ebert dá vontade de parar de escrever. Pra quê, se o cara já falou tudo e de forma muitíssimo melhor?
A vida pessoal do diretor o tornou persona non grata em Hollywood
Bem, faltou registrar algo sobre as tais questões paralelas que acabaram interferindo na carreira de Peter Bogdanovich e seguramente na análise de sua obra.
Depois de Na Mira da Morte/Targets, sucesso de crítica, vieram este A Última Sessão e em seguida Essa Pequena é uma Parada (1972) e Lua de Papel (1973). Em três anos consecutivos, três filmes muito elogiados e bastante lucrativos.
Chegaram a usar para Bogdanovich aquela coisa que pretendem que seja o maior elogio do mundo, e periga ser uma maldição: falaram dele como “o novo Orson Welles”.
Aí, em 1974, veio o quinto longa, Daisy Miller – e todo mundo caiu de pau. Em 1975 veio Amor, Eterno Amor/At Long Last Love – e todo mundo caiu de pau. Só um filme do realizador feito nos anos 80 teve sucesso e reconhecimento da crítica, como bem lembrou Hamilcar Dantas em carta para este site (ver abaixo): Marcas do Passado/Mask, de 1985, com Cher e Eric Stoltz.
Não há um grande e único fato que explique por que, após quatro filmes elogiados, incensados, virou unanimidade absoluta esculhambar cada novo filme do realizador. Mas há um conjunto de circunstâncias que talvez indiquem os motivos difusos, não nítidos, não claros, para a carreira de Bogdanovich entrar numa rota descendente em velocidade de piloto de Fórmula 1.
Tem a ver com comportamento – e moralismo, calhordice, caretice.
Depois de uma carreira respeitável no teatro em Nova York, Bogdanovich tinha chegado a Hollywood casado com Polly Platt, uma talentosa diretora de arte que trabalhou com ele em seus primeiros filmes. O casal teve dois filhos.
Aí, durante as filmagens de A Última Sessão de Cinema, surgiu diante dele Cybill Shepherd, com aquela beleza enlouquecedora e aqueles 21 aninhos.
O casamento de dez com Polly Platt acabou.
E o realizador insistiu em colocar a gatinha linda como atriz principal de Daisy Miller e de Amor, Eterno Amor.
Falaram mal da atuação dela e dos filmes dele.
No início dos anos 80, recaída, reincidência, novo crime abominável hediondo, de paixão por gatinha jovem: Bogdanovich teve um caso com Dorothy Stratten, a coelhinha da Playboy que seria assassinada pelo marido ciumento.
A história trágica de Dorothy Stratten seria contada em Star 80 (1983), um filme tristíssimo, pesadíssimo, o último dos cinco únicos realizados pelo grande Bob Fosse, o autor de Cabaret (1972) e All That Jazz (1979). Em Star 80, Bob Fosse – eu jamais soube por quê – retrata Bogdanovich, com outro nome, é claro, como um absoluto mau caráter, um pulha, um safado.
Em 1988, novo escândalo (na visão da imprensa marrom, o jornalismo sobre celebridades): Peter Bogdanovich casou-se com a irmã mais jovem da falecida Dorothy Stratten, Louise. Ele, o sacripanta, o reincidente, o comedor de anjos, estava com 49 anos, e ela tinha apenas 20 – a mesma idade que Dorothy tinha ao ser morta pelo ex-marido louco de ciúme.
Sim, verdade: é muito difícil admitir que esses fatos da vida pessoal de Peter Bogdanovich tenham a ver com a forma com que sua obra passou a ser vista pelos críticos e pelo público.
Mas o fato é que, nos anos 90, Bogdanovich enfrentou oito anos de exílio do cinema – tempo em que fez trabalhos para a TV e escreveu mais um monte de livros sobre cinema. Apenas em 2001 conseguiu realizar um novo longa, o ótimo O Miado do Gato/The Cat’s Meow, a reconstituição de um episódio verídico acontecido em 1924 envolvendo várias figuras importantíssimas de Hollywood, a morte em circunstâncias jamais esclarecidas do pioneiro da indústria cinematográfica Thomas Ince. E, mesmo assim, para conseguir realizar o filme, só pôde contar com dinheiro alemão e inglês.
Só voltaria a fazer um filme americano em 2014, 21 anos após o que havia sido o último, Um Sonho, Dois Amores/The Thing Called Love, de 1993. A volta foi com Um Amor a Cada Esquina/She’s Funny That Way, um filme esplêndido, uma comédia romântica deliciosa que é uma belíssima homenagem aos filmes da Era Dourada de Hollywood.
As colunas de fofoca falaram muito mal de Bogdanovich e sua paixão por jovenzinhas, mas no seu filme de 2014 ele respondeu às fofocas com algo que os fofoqueiros sequer seriam capazes de entender: She’s Funny That Way traz Cybill Shepherd em uma participação especial. E o roteiro é assinado pelo realizador e sua ex-mulher Louise Stratten.
Peter Bogdanovich fez filmes maravilhosos, e o maior de todos é este A Última Sessão de Cinema. Mas a história de sua própria vida é mais cheia de drama e intensidade do que todos os seus filmes.
Anotação em maio de 2017
A Última Sessão de Cinema/The Last Picture Show
De Peter Bogdanovich, EUA, 1971
Com Timothy Bottoms (Sonny Crawford), Jeff Bridges (Duane Jackson), Cybill Shepherd (Jacy Farrow), Ben Johnson (Sam the Lion), Cloris Leachman (Ruth Popper), Ellen Burstyn (Lois Farrow), Eileen Brennan (Genevieve), Clu Gulager (Abilene), Sam Bottoms (Billy), Sharon Taggart (Charlene Duggs), Randy Quaid (Lester Marlow), Joe Heathcock (o xerife), Bill Thurman (Popper, o treinador), Barc Doyle (Joe Bob Blanton), Jessie Lee Fulton (Miss Mosey)
Roteiro Larry McMurtry e Peter Bogdanovich
Baseado no romance de Larry McMurtry
Fotografia Robert Surtees
Montagem Donn Cambern e Peter Bogdanovich
Casting Ross Brown
Desenho de produção Polly Platt
Produção Stephen J. Friedman, Columbia Pictures Corporation, BBS Productions, Last Picture Show Productions.
P&B, 118 min (1h58)
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Disponível no Now
Caro Sr. Sergio Vaz. Parabéns pelo site, sou um leitor voraz de seus belos textos. Sou apaixonado também por “A última sessão de cinema” e me encantei mais uma vez com seu texto. Mas gostaria de sugerir um acréscimo que faça justiça ao Sr. Bogdanovich. O mesmo realizou em 1985, o belo (na minha opinião) filme “Marcas do destino”, com Cher e Eric Stoltz caindo então no ostracismo que o senhor cita até 2014.
Parabéns e, por favor, continue a nos presentear com essas viagens pelo cinema. Abraços.
Lindo texto, uma bela homenagem a um de meus filmes favoritos.Foi um choque a primeira vez que assisti na TV( por coincidência,engatei depois o Lua de Papel).Quatro horas com este diretor maravilhoso,virei admirador.Assisti Cat’s Meow no cinema,numas férias nos USA( e foi muito bom).Ele fez bela presença como ator nos The Sopranos,além de livros definitivos sobre Orson Wells e John Ford.O cara é mestre mesmo.
Resgate cinematográfico maravilhoso.
Comentários, idem.
Concordo com a crítica à subestimação do
filme Marcas do Destino, com Cher, belo filme.
Belíssimo texto. Rio Vermelho é filme de Howard Hawks e não de John Ford, seu amigo
Putz, Pedro, muitíssimo obrigado pelo comentário, pelo elogio – e, sobretudo, pela correção. Claro, claro, “Rio Vermelho” é Hawks, e não John Ford. O filme até já foi comentado por mim aqui no site. Fiz confusão na hora de escrever, não peguei o erro ao reler… e estava aí há tempos.
Muitíssimo obrigado. Já corrigi!
Um abraço!
Sérgio
Amo A Última Sessão de Cinema. Seus comentários e análises são muito especiais. Lua de Papel , Essa Pequena e uma Parada, etc.. , são ótimos, mas A Última Sessão é imbatível. O retrato de uma cidade do interior é, até hoje, o retrato de nossa solidão e do sentido (sic) da vida.
Pela segunda vez estou vindo ler os comentários sobre o filme “A última sessão de cinema”, e me deparo com seu texto falando- por mim- tudo o que eu haveria querido dizer! Eu havia assistido esse filme nos anos 80, na Globo, qdo eu ainda era uma adolescente e vivia numa cidade zona do interior. Me vi no cenário do filme! É tudo absolutamente tão real, mesmo falando de uma adolescência de 3 décadas antes da minha, q ñ tem como não sentir um fascínio absurdo e uma vontade de ficar gritando aos quatro ventos:” vejam esse filme”!!! Na verdade, sempre pensei q fosse do Elia Cazan, pelo estilo talvez, e me surpreendi hj ao ler q é de outro diretor. À propósito, vc tem q escrever aqui alguma coisa sobre um dos mais fascinantes filmes- se não o mais- desse mesmo estilo, “Houve uma vez um verão”, dirigido por esse diretor. Sempre muito gratificante ler-te!