Imagine a situação: você ficou viúvo, passado algum tempo casou de novo, está numa boa, levando a vida com a mulher que ama você e a quem você ama. De repente, baixa na sua casa o espírito da morta. Bem visível, e num vestido um tanto provocante. Ela conversa com você – e sua mulher vai à loucura.
A eventual leitora pode simplesmente trocar o gênero, imaginar-se viúva e casada de novo, e bem casada.
É a situação que acontece na vida de Charles Condomine, interpretado por Rex Harrison em uma deliciosa comédia que o então jovem David Lean (1908-1991) dirigiu em 1945.
A trama é apavorante para o personagem central e para sua mulher, Ruth (Constance Cummings, na foto abaixo) – mas é absolutamente, furiosamente hilariante para o espectador. Foi criada por Noël Coward – Sir Noël Peirce Coward (1899-1973), dramaturgo, compositor, diretor, ator, cantor. Só peças escreveu mais de 500.
Gênio, em suma.
… “cujas comédias de costumes altamente sofisticadas deram prosseguimento à tradição teatral inglesa desenvolvida por William Congreve e Oscar Wilde”, dele dizia a douta Encyclopaedia Britannica, ainda na edição de 1976, pouquíssimo tempo após sua morte.
“Coward era adepto de fazer seus personagens dizerem uma coisa enquanto queriam dizer obviamente outra. Como autor de comédias de costumes, Coward captou (e talvez tenha ajudado a moldar) a linguagem aparada e o estilo de vida frágil da geração que emergiu da Segunda Guerra Mundial desiludida e agnóstica.”
Noël Coward detectou bem cedo o talento de David Lean, que é apenas 9 anos mais moço que ele. Os dois dividiram a direção de Nosso Barco, Nossa Alma/In Which We Serve, de 1942, um filme que é puro esforço de guerra – e é absolutamente brilhante. Foi o primeiro filme dirigido por Lean, que àquela altura já havia assinado a montagem de uns 20 títulos, inclusive Pigmalião, de 1938, e Major Barbara, os dois baseados em obras de George Bernard Shaw.
Trabalhariam juntos novamente várias vezes. O segundo filme do diretor, Este Povo Alegre/This Happy Breed, de 1944, outro esforço de guerra, também se baseia em peça de Coward.
Este Uma Mulher do Outro Mundo é o terceiro longa-metragem de David Lean, e sua terceira colaboração com Noël Coward, que assina também a produção. O roteiro é assinado por David Lean, Ronald Neame e Anthony Havelock-Allan, mas consta, naturalmente, que também teve os dedos do autor da peça e produtor do filme.
No mesmo ano de 1945, o ano em que terminou a Segunda Guerra, David Lean dirigiria outra obra-prima, Desencanto/Brief Encounter. O roteiro desse que é um dos mais tristes dramas do cinema tinha as mesmas assinaturas que esta comedinha leve aqui, David Lean, Ronald Neame e Anthony Havelock-Allan – e, mais uma vez, se baseava numa peça de Noël Coward.
É Ruth, a mulher do protagonista, que traz à baila o tema Elvira, a ex
É a voz de Noël Coward, em off, que abre o filme, logo após os créditos iniciais que terminam com os seguintes dizeres, escritos em meio a desenhinhos felizes, como aqueles dos cartazes que anunciam “Home, sweet home”:
– “Quando somos jovens, lemos as coisas mais fantásticas e acreditamos nelas. Quando somos mais velhos, aprendemos com pesar que essas coisas não existem.”
E aí a voz de Noël Coward, em off, contradiz o que acabamos de ler: – “Está errado, está muito errado.”
E ele emenda: “Era uma vez uma encantadora casa de campo na qual vivia um casal muito feliz”.
E logo vemos o casal Charles e Ruth Condomine – interpretados, digo de novo, por Rex Harrison e Constance Cummings. Eles estão em seus dois quartos conjugados, no segundo piso da bela casa, muito britanicamente se preparando para receber visitas para o jantar. Ruth pede a Edith, a empregada (Jaqueline Clarke), que traga dois cálices de bebida, enquanto Charles, de roupão sobre o pijama, termina de fazer a barba após o banho.
Conversam sobre vários assuntos. A conversa passa por Elvira, a primeira mulher dele, com quem ele viveu cinco anos, e que havia morrido ainda muito jovem. É Ruth que traz o assunto Elvira à baila. Isso é algo bem típico das mulheres: trazer à baila o tema ex-mulher, terreno pantanoso, em que há sempre o perigo de se afundar.
– “Se eu morresse antes de você se cansar de mim, será que me esqueceria tão rápido?”
Ao que Charles – na pele daquele Rex Harrison bem jovenzinho, 19 anos antes de interpretar o professor Higgins em My Fair Lady – responde:
– “Eu não me esqueci de Elvira. Me lembro muito bem dela. Era fascinante e enlouquecedora. Lembro-me como era encantadora quando as coisas saíam como ela queria, e como era extremamente ácida quando isso não ocorria. Lembro que era tremendamente atraente, e sua integridade espiritual era nula.”
Ruth poderia ter mudado de assunto. Mas insiste. Pergunta se Elvira era fisicamente mais atraente que ela. A essa pergunta Charles se nega, enfática e brincalhonamente, a responder.
Falar muito no diabo…
A velhinha médium é interpretada pela excelente Margareth Rutherford
No diálogo entre marido e mulher que se preparam para receber visitas para jantar, ficamos sabendo quem serão elas e qual é o propósito daquela reunião. Sim, a reunião tem um propósito específico: Charles é um escritor, e está com a idéia de escrever um romance policial em que a personagem central é uma médium. Ele queria observar, na prática, como trabalha uma médium, para dar maior autenticidade à sua narrativa.
Por isso havia feito o convite a Madame Arcati, uma médium até de certa fama que havia se mudado de Londres para a pequena cidade mais próxima da casa dos Condomine.
Para que houvesse mais pessoas, convidou também o médico da cidadezinha, o dr. George Bradman (Hugh Wakefield) e a mulher dele, Violet (Joyce Carey). O dr. Bradman e sua mulher têm conhecimento do propósito do encontro.
Os dois casais são absolutamente céticos, não acreditam em nada que tenha a ver com espíritos, mediunidade, e por isso haviam combinado que fariam todo o esforço possível para não rir do que Madame Arcati viesse a fazer durante a sessão mediúnica após o jantar.
Madame Arcati é interpretada por Margaret Rutherford, aquela comediante absolutamente impagável que interpretou a detetive amadora Miss Marple, de Agatha Christie, em uma série deliciosa de filmes do início dos anos 60.
Os Condomine e os Bradman devem ter feito esforço hercúleo para não rir de Madame Arcati, sem dúvida alguma. Para nós, os espectadores, que podemos rir à vontade, o personagem da velhinha médium criada por Noël Coward é absolutamente hilariante.
Tudo vai ficando mais desagradável para Ruth – e engraçado para o espectador
Pode-se, é claro, não crer em bruxas, pero que las hay, las hay.
E então, durante a sessão mediúnica conduzida por Madame Arcati após o lauto jantar oferecido pelos Condomine, Charles, o cético mais cético de todos, crê ter ouvido uma voz conhecida. O espectador também ouve uma voz de mulher.
E, depois que os três convidados se retiram, Elvira, a ex-mulher, a morta, entra na sala de estar do até então feliz casal.
E entra, como eu já disse lá atrás, num vestido esvoaçante, um tanto diáfano, provocante. Kay Hammond (1909-1980), a atriz que faz Elvira, era um mulherão, para os padrões da época e dos ingleses. E está ótima no papel. Bem, todos os atores estão excelentes. Afinal, são atores ingleses, e foram dirigidos por David Lean, que estava começando a carreira, mas já tinha talento de sobra.
A rigor, não é exatamente Elvira que está ali – é o espírito de Elvira. O ectoplasma.
Ruth não a vê. Só Charles a vê – Charles e o espectador, na maior parte do tempo. Há algumas tomadas em que o aposento onde estão os três é mostrado como se fosse através dos olhos de Ruth, e então vemos apenas Ruth e Charles. Mas em boa parte do tempo a câmara mostra o que está sendo visto por Charles, e então o vemos e às suas duas mulheres, a viva e a morta.
Dá para prever as piadas: Charles se dirige a Elvira, e Ruth, que não a vê, acredita que ele está falando com ela.
E Charles, em especial naqueles primeiros momentos, é bastante rude com Elvira – e Ruth acha que ele está sendo grosseiro com ela.
Quanto mais Charles se enrola, e quanto mais Ruth fica irritada, nervosa, zangada, furiosa, achando que Charles está fazendo piada com ela, mais Elvira se diverte.
Quando viva, Elvira era bastante sapeca, safada – o espectador irá percebendo isso ao longo da narrativa. Para falar com todas as letras, Elvira dava mais que chuchu na cerca – para fora, quero dizer, não apenas para o então marido.
Em sua versão espírito, Elvira é extremamente alegre, despreocupado. Mais ainda: um espírito brincalhão, gozador, gaiato.
Essa seria, creio, a melhor tradução do título original da peça de Noël Coward e do filme de David Lean, Blithe Spirit: espírito gozador, espírito gaiato.
Depois de morta, de fato Elvira é uma pândega, uma gaiata.
A situação vai ficando cada vez mais desagradável para a pobre Ruth – e mais engraçada para o espectador.
Elvira, a morta, aparece sempre como uma coisa diáfana, translúcida
Como não tem matéria, como é só espírito, os vivos não conseguem tocar em Elvira. Há um momento em que Charles tenta tocá-la – mas não toca em nada, passa por ela como se ali só houvesse ar. Espírito, em suma, e não matéria.
No entanto, seguindo algum tipo de lógica talvez um tanto tortuoso, Elvira consegue carregar coisas materiais, como um vaso de planta, uma cadeira. Para quem não a vê, é como se o vaso de planta ou a cadeira estivessem flutuando no ar.
Ah, sim, e se Elvira soprar, os humanos conseguem sentir o sopro. Elvira soprará no rosto de Madame Arcati, mais adiante, na narrativa – e Madame Arcati experimentará um prazer absoluto em pela primeira vez sentir o bafo de gente do outro mundo.
Na tela, a figura de Elvira é… Não acho outra palavra melhor: é diáfana.
Diáfana: que dá passagem à luz. Translúcida. O contrário de opaca.
Sim, é isso: Elvira-Kay Hammond aparece sempre diáfana, translúcida. Dando passagem à luz.
Como foi que, em 1945, décadas antes da Industrial Light & Magic de George Lucas, mais décadas ainda antes das computer generated images, os ingleses conseguiram aquilo? Não tenho a mínima idéia, nem a menor curiosidade em saber isso. Não tenho interesse algum em entender técnicas de filmagem que fogem do dia a dia, do normal, formas de se criarem efeitos especiais. Esse tipo de coisa sempre me deu imensa preguiça.
Sei é identificar quando a coisa funciona – e a forma com que, em 1945, numa indústria que acabava de sair de uma guerra feroz, os técnicos conseguiram fazer aquilo, seja ela qual tenha sido, foi brilhante.
O diretor de fotografia era um gênio, Ronald Neame – que é também um dos três que assinam o roteiro do filme. Os créditos dizem que os efeitos especiais ficaram por conta de Tom Howard.
Do outro lado do Atlântico e do outro lado do continente americano, em Los Angeles, aquela cidade em que se concentram os maiores estúdios de cinema do mundo, deram para Tom Howard o Oscar de efeitos especiais. Foi a única indicação que Blithe Spirit recebeu – e virou prêmio.
Esse tema já teve variações – inclusive Dona Flor e Seus Dois Maridos
As coincidência: Kay Hammond, a atriz que faz a diáfana, translúcida (e safadinha) Elvira, fez o papel de Eliza Doolittle em uma refilmagem feita para a TV inglesa, em 1954, de Pigmalião, a peça de George Bernard Shaw. Como já foi dito acima, Pigmalião, o filme de 1938, dirigido por Anthony Asquith e Leslie Howard, tinha montagem de um jovem que despontava como imenso talento, David Lean.
E, como se sabe, Pigmalião, a peça, é a origem do musical My Fair Lady, imenso sucesso no West End londrino, na Broadway e depois no cinema com Rex Harrison no papel do professor Henry Higgins.
Blithe Spirit, a peça, estreou na Londres que era bombardeada pelos aviões nazistas em 1941 – e foi um sucesso absoluto. Muito, muito depois, em 1964, o próprio Noël Coward dirigiu uma adaptação musical da peça na Broadway, com o título de High Spirits.
Eu, pessoalmente, detesto refilmagens – e mais ainda refilmagens de filmes bons demais, que são, portanto, desnecessárias. Mas me peguei pensando que é estranho que não tenham tentado refilmar essa história deliciosa.
Fiquei pensando, também, como esse tema de o fantasma de ex-cônjuge ficar atravancando a vida de um casal já teve tantas variações. A rigor, a rigor, Dona Flor e Seus Dois Maridos é uma variação do mesmo tema básico deste Blithe Spirit. Jorge Amado escreveu o livro em 1966, que virou aquele filme delicioso, maravilhoso, de Cacá Diegues, em 1976, e que deu original a uma refilmagem americana um tanto bobinha, Meu Adorável Fantasma/Kiss me Goodbye, do grande Robert Mulligan, de 1982.
A verdade é que pouquíssima coisa é de fato inteiramente original, e tudo, absolutamente tudo se copia, ou se repete.
Não sei se antes de Blithe Spirit houve alguma outra história baseada nessa idéia de o cônjuge morto voltar para pegar no pé do ex – mas pode ter havido, é claro.
O que achei especialmente fascinante foi que, no mesmo sabadão em que vimos de tarde esta deliciosa comédia inglesa de 1945, vimos à noite um drama inglês triste demais, tristérrimo, em que a lembrança de uma namorada do passado vem incomodar e infelicitar um casal que se ama e vive em harmonia e com ternura – 45 Anos, com Charlotte Rampling e Tom Courtenay, uma produção de 2015, exatos 70 anos depois do filme de David Lean.
O filme foi um fracasso comercial tanto na Inglaterra quanto nos EUA
Vejo na página de Trivia do IMDb que Noël Coward teria detestado o resultado final do filme, e teria dito ao amigo David Lean: “Como foi que você conseguiu foder a melhor coisa que eu já fiz?”
Ahnnn… Não acredito que isso tenha acontecido, mas aí está, transcrevi do IMDb. Outras informações da página de Trivia sobre o filme:
* Na montagem original da peça no West End londrino, Margareth Rutherford fazia o papel de Madame Arcati e Kay Hammond, o de Elvira, exatamente como no filme. Jacqueline Clarke, no entanto, que no filme é creditada sem o c, Jaqueline Clarke, e interpreta a criada Edith, fez, no teatro, o papel de Ruth, a segunda mulher de Charles.
* Sucesso absoluto na Londres bombardeada pelos nazistas, a peça foi também montada na Broadway, ao mesmo tempo, a partir de 5 de novembro de 1941; teve 657 performances, até 5 de junho de 1943.
* O ator Clifton Webb interpretou Charles na Broadway. Logo depois, foi fazer o papel de Waldo Lydecker em Laura, de Otto Preminger – um dos personagens mais nojentos de toda a história do cinema, na minha opinião.
* No trailer original, os produtores tiveram o cuidado de não mostrar Elvira, o fantasma. Para manter o suspense de como seria mostrado um fantasma, um espírito, o trailer mostrava portas se abrindo com lufadas de vento (como aparecem mesmo no filme), mas sem Kay Hammond.
* O filme foi um fracasso comercial tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos.
Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido no mundo, naqueles tempos em que os guias de filme eram vendidos, deu 3.5 estrelas em 4 para o filme: “Deliciosa adaptação da comédia-fantasias de Noel Coward (ele não usa o trema) sobre um homem cuja primeira mulher morte aparece para assombrar – e insultar – sua nova vida de casado de novo. Rutherford está maravilhosa como Madame Arcati, a médium; ganhou um Oscar pelos efeitos especiais. Rogeiro do diretor, do produtor (Anthony Havelock-Allan) e do diretor de fotografia (Ronald Neame).
Vejo no Cinemania que Pauline Kael, a primeira-dama da crítica americana, uma das pessoas mais cri-cris que já pisaram na face no planeta, também falou sobre o filme. Faço questão de não ler o que a cri-cri cha-chata escreveu, para não ficar de mau humor.
Este filme é a maior delícia.
Anotação em fevereiro de 2016
Uma Mulher do Outro Mundo/Blithe Spirit
De David Lean, Inglaterra, 1945
Com Rex Harrison (Charles Condomine), Constance Cummings (Ruth Condomine, a atual mulher), Kay Hammond (Elvira Condomine, a ex-mulher), Margaret Rutherford (Madame Arcati), Hugh Wakefield (Dr. George Bradman), Joyce Carey (Violet Bradman), Jaqueline Clarke (Edith, a empregada), Noël Coward (o narrador)
Roteiro David Lean, Ronald Neame e Anthony Havelock-Allan
Baseado na peça de Noël Coward
Fotografia Ronald Neame
Música Richard Addinsell
Montagem Jack Harris
Efeitos especiais Tom Howard
Produção Noël Coward, Two Cities Films. DVD NBO Editora – Classic Collection.
Cor, 96 min
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Fosse eu casada com Rex Harrison, e batesse as botas, teria as mesmas atitudes da falecida.
PS: AMO o Waldão.