Deus existe. Vive em Bruxelas, trancado num apartamento; não sai nunca à rua. Passa a maior parte do tempo em seu escritório, onde ninguém – nem sua mulher, nem sua filha de uns 12 anos – pode entrar. Fica ali trabalhando no computador, e seu trabalho consiste basicamente em fazer a humanidade infeliz.
Inventa novas desgraças, aciona as antigas.
Tem furor legiferante: a cada dia cria novas leis para atazanar a vida dos seres humanos. Algumas são bobinhas, tratam de minudências, como o que nós costumamos chamar de Lei de Murphy: “Sempre que um pão com manteiga cair no chão, cairá com a face com manteiga voltada para baixo”. Há as que atazanam o dia-a-dia: “O sono vai durar sempre cinco minutos a mais do que a hora em que o despertador tocar”.
Outras são mais sérias, são danações, maldições eternas, como esta aqui, que o vemos redigir – com imenso prazer – em seu computador:
“Lei 1522: Se algum dia você se apaixonar por uma mulher, há uma grande chance de você não passar a vida com ela.”
Deus é um tremendo de um sádico. Seu prazer é fazer sofrer os seres que criou.
Em suma, Deus é um sacana – esta é a palavra escolhida pelos exibidores brasileiros nas legendas de O Novíssimo Testamento/Le Tout Noveau Testament. No original francês, a palavra é salaud, que significa isso mesmo. Segundo o dicionário Le Robert, salaud é “homem desprezível, moralmente repugnante”. Segundo meu velhíssimo Petit Larousse, “pessoa pouco honorável”.
Quem diz que Deus é um salaud, um sacana, um safado, é a própria filha dele, Ea, interpretada por uma garotinha linda, boa atriz, bem dirigida, por quem o espectador se encanta de cara, chamada Pili Groyne.
Se o eventual leitor se perguntar mas por que raios Deus vive justamente em Bruxelas – e não em Nairobi, Moscou, Teerã, Washington, Montreal ou Brasília –, é simples: é porque o filme é belga, uai. Na verdade, é uma co-produção Bélgica-França-Luxemburgo – mas basicamente é belga. O diretor e um dos dois autores da história e do roteiro, Jaco Van Dormael, é belga da cidade de Ixelles, onde nasceu em 1957. Deve também ser belga o outro autor de argumento e roteiro, Thomas Gunzig. E é belga a garotinha Pili Groyne.
Este é um daqueles filmes que são brilhantes em tudo, forma e conteúdo
O Novíssimo Testamento é um daqueles filmes brilhantes, resultado de um conjunto de idéias originais, com uma trama que excede em criatividade, inventividade, inteligência, e com efeitos visuais à altura da genialidade das sacadas dos criadores.
Nesse sentido, o filme de Jaco Van Dormael é daquela especial estirpe de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), de Jean-Pierre Jeneut; Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), de Michel Gondry; Mais Estranho que a Ficção (2006), de Marc Forster; (500) Dias com Ela (2009), de Marc Webb; Medianeras (2011), de Gustavo Taretto; Homens, Mulheres e Filhos (2014), de Jason Reitman.
É tudo um brilho.
O filme abre com a voz em off da jovem atriz Pili Groyne, enquanto vemos um quadro representando A Última Ceia – não tenho certeza se é o de Da Vinci, mas isso não importa. Só que, além de Jesus Cristo e de seus 12 apóstolos, nesse quadro que a câmara mostra há alguns outros rostos.
E a voz em off da garotinha Pili Groyne vai nos dizendo:
“No início eram 12 apóstolos. Isso foi antes de eu encontrar os meus seis apóstolos. Antes de o mundo ficar melhor. Preciso contar a história desde o começo, quando eu ainda morava com os meus pais.”
E então vemos o título do filme: Le Tout Noveau Testament. Nos países de língua inglesa, foi The Brand New Testament. O título brasileiro está corretíssimo. Esse é um daqueles títulos que nenhum distribuidor é louco de abandonar, traduzir por outra coisa qualquer.
Será?
Fui conferir no IMDb.
Na Alemanha, Das Brandneue Testament, e ninguém precisa saber alemão para saber que neue, nói, é novo. Na Espanha e vários países latino-americanos, El Nuevo Nuevo Testamento. Perfeito.
Ah, mas sempre tem neguinho que foge do óbvio, do certo. Título na Itália: Dio existe e vive a Bruxelles. E os portugueses foram nessa: Deus Existe e Vive em Bruxelas. Os exibidores italianos e portugueses jogaram fora o título original e puseram como título a tagline, a frase escolhida pelos produtores para vender o filme, a frase que fica nos cartazes, nos anúncios. A frase que a filha de Deus fala bem no início da narrativa.
O Dio!
O que faz lembrar que Deus fuma e bebe em excesso. E chama seu próprio nome em vão demais da conta, quando enfrenta uma barra pesada, uma saia curta, uma situação desagradável – e ele enfrentará muita barra pesada, muita situação desagradável ao longo do filme.
Mas passei o carro à frente dos bois.
O Deus do filme é um sacana, um sádico, bebe e fuma demais. E é feio
A voz em off de Pili Groyne prossegue:
– “Deus existe. Ele mora em Bruxelas.”
Tomada geral de uma Bruxelas de clima absolutamente inóspito, cinzenta, escura, feia, com chuva forte, raios, trovoadas.
– “Ele é um sacana. Ele trata muito mal a mulher e a filha. Falou-se muito do filho dele, mas bem pouco da filha. A filha dele sou eu.”
E estamos vendo o rostinho lindo de Pili Groyne, quer dizer, de Ea, a filha de Deus. E em seguida vemos Deus, isto é, Benoît Poelvoorde. Benoît Poelvoorde não é assim apolíneo, está muito longe de ser um Alain Delon – muito antes ao contrário. Para fazer o papel de Deus, está com a barba por fazer, o resto de cabelo que ainda não caiu despenteado, parecendo sujo, gorduroso. Está sempre com a cara amarrada, feia, mal-humorada.
Deus é um sacana, um sádico, bebe e fuma demais, é sujo, desleixado, mal-humorado. E feio.
O escritório em que ele trabalha é uma sala imensa, de pé direito altíssimo, inteiramente sem janelas. Só tem a porta de entrada, que vive permanentemente fechada. As quatro paredes são formadas por uma infinidade de gavetinhas onde estão guardadas as fichas dos seres humanos.
– “Esse é meu pai. É Deus. Mesmo antes da criação do mundo o meu pai já era aborrecido. Então ele criou Bruxelas.”
Nova tomada de uma Bruxelas cinzenta, lúgubre.
Um letreiro: Gênesis.
“Ele tinha criado umas coisas, mas não tinha dado certo.”
Vemos girafas andando pelas ruas da cidade, entre os prédios. É: com girafas não teria mesmo dado certo. Não deu muito certo nem mesmo com esses bípedes sem pluma que ele acabou inventando, imagine se com girafas, ou elefantes.
Ea, a filha adolescente de Deus, subverte tudo, muda toda a história da humanidade
Depois do Gênesis, vem o Êxodo. Um letreiro indicará isso para os espectadores.
No Êxodo do Novíssimo Testamento, a filha de Deus sai de casa.
Ea se enche de ficar trancada naquele apartamento, só com a mãe (interpretada por Yolande Moreau) conformada e inativa e com o pai sempre mal-humorado, irascível, mandão – que, entre outras idiossincrasias, nunca permite que ela se sente à sua direita na mesa de jantar. À direita de Deus, fica sempre uma cadeira vazia, já que seu filho não está, foi morto, uns 2.000 anos atrás. E então a garota planeja dar o fora dali.
Conversa com o irmão. O irmão fica a imensa maior parte do tempo paralisado, uma estatuinha em cima de um móvel – mas com a irmã ele conversa. Vira gente (interpretado por David Murgia) e fala com Ea.
Entusiasma-se com a idéia de a irmã sair de casa. Aconselha-a procurar apóstolos para ela, assim como ele mesmo havia feito. Dá a dica de que ela pode fugir do apartamento usando uma determinada combinação na máquina de lavar roupa. E faz a sugestão: antes de ir embora, Ea deve dar um jeito de estragar o computador. “Sans le ordi, il ne peut faire rien”, diz JC para a irmã. Sem o computador, ele não consegue fazer nada. (Adorei ouvir o “ordi”, simplificação jovem de “ordinateur”. Palavrinha muito “sampá”, que é como eles dizem “sympathique”.)
E então, numa hora em que Deus está dormindo profundamente, depois de beber bastante, Ea rouba a chave do escritório, entra e senta-se diante do ordi, do computador – e faz uma coisa absolutamente louca, incrível, absurda, sensacional, que simplesmente muda toda a História, muda tudo, de um momento para o outro:
Ela dá um comando que faz com que cada pessoa receba, em mensagem em seu celular, o número de dias que ainda tem para viver.
“Uau!”, diz JC. “O velho vai perder a credibilidade! Vai ficar furioso!”
De todas as grandes sacadas, de todas as belas idéias que Thomas Gunzig e Jaco Van Dormael tiveram para criar o filme, esta aqui sem dúvida é a mais genial.
Há muita sacada inteligente em Le Tout Noveau Testament. Tudo é bela sacada. Mas essa coisa de o grande ato de rebeldia da filha de Deus contra o pai ser revelar para todos os mortais exatamente o tempo que cada um ainda tem para viver é a cereja no topo do maravilhoso bolo.
A data da morte é o maior segredo que existe na vida de cada pessoa, de cada pequena pessoinha que pisa a casca deste planeta, nosso lindo balão azul, the pale blue dot, ce jardin qu’on appelait la Terre.
Não há mistério maior. Nem mesmo as Três Grandes Perguntas – quem somos, onde estamos, para onde vamos – são tão apavorantes quanto o fato de que a gente não sabe quando vai morrer. Posso dormir sem saber quem sou onde estou para onde vou. Não saber quanto tempo ainda me resta de vida me apavora muito mais.
Depois de permitir que o grande segredo, o grande mistério fosse revelado para cada um dos seres humanos, Ea passa na sala em que está a estatuinha do seu irmão para se despedir: – “Enviei a data da morte para todo mundo”, diz ela.
JC fica espantado com a esperteza, a grande sacada da maninha: – “Uau! O velho vai perder a credibilidade! Vai ficar furioso!”
Ela vai embora, e por um momento a câmara permanece em JC. Ele dá um sorriso que demonstra isso – espanto, surpresa, choque, alegria – e comenta com seus botões, em voz alta, de tal forma que nós aqui diante da tela ouvimos: – “Dar à humanidade a consciência da própria morte… Arrasou!”
Depois da grande revelação, tudo muda no mundo. Guerras são interrompidas
Segue-se aí uma grande série de tomadas de pessoas recebendo aviso de que chegou mensagem em algum aplicativo do celular.
São imagens absolutamente acachapantes.
Há planos gerais de locais em que há multidões – e na tela vão surgindo, ilegíveis, porque pequenos demais, as reproduções das mensagens de texto.
Há planos mais fechados, mostrando uma pessoa aqui, uma pessoa ali, outra pessoa lá, lendo a mensagem que chega pelo celular – e, ao lado do rosto de cada uma, surge o cronômetro marcando quanto falta de tempo de vida. Anos, meses, dias, segundos, décimos de segundos.
Os numerinhos nos décimos de segundo correm a uma velocidade espantosa, alucinante, apavorante.
Cada vez que a gente respira está mais perto da morte. Se tivéssemos diante de nós aqueles numerinhos, mostrando quão pouco falta, e com que velocidade o tempo passa, talvez todos nós agíssemos de maneira diferente. Como pessoas, como grupos, como sociedades, como países.
Guerras que estavam rolando são interrompidas depois que as pessoas recebem a informação de quanto tempo mais cada um tem para viver.
Vemos Catherine Deneuve ser informada de quanto tempo a personagem dela tem para viver. Vemos outros atores – e eu não conhecia os demais, mas todos vão reaparecer na narrativa.
O espectador ainda não sabe, mas, entre as várias pessoas mostradas recebendo a notícia de quanto tempo têm para viver, estão os seis apóstolos que a garotinha Ea vai escolher.
Deus acorda num mau humor de cão – e tem um ataque de nervos
Os notícias de TV só falam da notícia sensacional: alguém revelou a data da morte de cada ser humano, e tudo, absolutamente tudo mudou no mundo.
Quando Deus acorda, de ressaca, num mau humor do cão, vê o noticiário, percebe rapidamente que foi coisa de Ea. Sai pelo apartamento berrando pela filha, não a encontra. Vai até seu escritório – e depara com o computador desligado.
É como JC havia previsto: “Sans le ordi, il ne peut faire rien”.
Deus não fica à beira de um ataque de nervos: Deus tem um ataque de nervos!
Como quase todo macho pego no contrafluxo, bota a culpa na mulher. Chega para a mulher e berra:
– “Sabe o que a sua filha fez? Ela ensinou a data da morte de todo mundo” Como que você quer que eu resolva isso, se estou sem meu computador? Você entende? Antes… Todos estavam nas minhas mãos, porque não sabiam quando iam morrer. Todos andavam pisando em ovos. Entende? Mas agora eles sabem. Eles não vão mais se preocupar com nada. Eles vão decidir o que vão fazer com o resto das suas vidas. Entende? Se ela fizer como o irmão, se encontrar uns malucos… Você imagina as conseqüências? Imagina se ela ensina a todo mundo como sair da merda!”
Quando tudo dá errado, achamos que Deus é o diabo
O Deus que O Novíssimo Testamento goza, que é a razão das piadas todas, é, obviamente, o Deus cristão, o Deus da Bíblia – lido, visto, entendido como o contrário do que quer dizer a Biblia, mas ao mesmo tempo sugerido por certas passagens dela, por interpretações (seguramente errôneas) que foram sendo feitas ao longo destes 2 mil anos de Cristianismo.
Para cada interpretação do Deus cristão como um ser absolutamente bom, magnânimo, compreensível, pai carinhoso, pai misericordioso, sempre houve a interpretação oposta, de Deus como um velho barbudo colérico, mal-humorado, fumegante, dono da verdade, rígido que nem o mais sanguinário sargento de filme de Stanley Kubrick.
Esse Deus cristão bravérrimo, mais bravo que o sargento Hartman de Nascido para Matar/Full Metal Jacket (1987), sempre esteve no imaginário popular. O que Thomas Gunzig e Jaco Van Dormael fizeram foi apenas exagerar, exacerbar um pouquinho mais.
Cada pessoa criada em família cristã que por qualquer motivo se rebelou contra os ensinamentos religiosos imaginou um Deus cruel como este do filme.
Cada pessoa criada em família cristã que perdeu um ser querido e se revoltou contra o absurdo que é perder um ente querido viu esse Deus cruel que o filme mostra.
A gente gosta demais de Deus quando as coisas dão certo. Quando tudo dá errado, achamos que Deus é o diabo.
Ninguém condenou os autores do filme à morte. Não soltaram bombas nos cinemas
Não está no Velho Testamento, não está no Novo. Não está no Corão. Não está na Cabala, a Bíblia do judaísmo. Não está, creio, nas bases do hinduísmo. Brincar com Deus, fazer piada com Deus, fazer as pessoas rirem com piadas sobre Deus – isso não é pecado, não é coisa ruim, não é crime.
De forma alguma.
O Novíssimo Testamento foi lançado em 2015, e, pelo que se saiba, não houve qualquer alteração no Universo. Não houve sentenças de morte aos criadores de tal blasfêmia, proferidas por organizações cristãs radicais. Não houve atentados terroristas contra os produtores, os exibidores.
Ainda bem que foi assim, é claro, é óbvio.
É apenas um filme. Uma comédia. Uma brincadeira, uma sátira, uma loucura, uma coisa para fazer a gente rir.
Quando a gente pensa que qualquer tipo de brincadeira, chiste, qualquer coisa, que fala não do Deus cristão e de Jesus Cristo, mas de Alá e seu profeta Maomé causa bombas, mortandade, não se deve, de forma alguma, pensar que aquela outra religião é por algum motivo qualquer pior.
As religiões não são ruins, de forma alguma.
Ruins, imprestáveis, insuportáveis, criminosas, terroristas – e que portanto têm que ser combatidas de todas as formas – são as maneiras fanáticas de mal interpretar o que as religiões querem dizer.
O Novíssimo Testamento é uma comédia deliciosa, engraçadíssima. Mas, como todo grande filme, tem seu lado sério, faz o espectador pensar, refletir.
Os seis novos apóstolos são figuras muito doidas, muito estranhas
Antes de sair do escritório do pai, Ea pega da primeira gavetinha que abre, aleatoriamente, seis fichas de pessoas – e, do lado de fora, no mundo, sai à procura delas, para que sejam seus apóstolos.
A primeira pessoa que ela encontra é um mendigo, um sem-teto, Victor (Marco Lorenzini). Ele se afeiçoa pela menina, e ela por ela. Ea pede que ele vá anotando tudo o que acontece – ele será o apóstolo redator do Novíssimo Testamento.
Há um diálogo especialmente delicioso entre eles. Ea está contando para o novo amigo que Adão veio para cá, para a Terra, e o irmão dela também veio, mas o mataram. Ele pergunta o nome do irmão dela, e ela diz “JC”.
– “JC? Como JC Van Damme?”
– “Quem?” – pergunta Ea.
– “Jean-Claude Van Dame. Duplo Impacto. Olhos de Dragão.”
Juntos, a filha de Deus e o mendigo vão atrás das seis pessoas que serão os novos apóstolos. Martine (Catherine Deneuve) é uma mulher riquíssima, entediada, que, depois de saber quanto tempo ainda resta para viver, apaixona-se pelo gorila de um circo.
Uma bela apaixonado por um gorila. O que será que Thomas Gunzig e Jaco Van Dormael quiseram dizer com isso? Ecos de A Bela e a Fera? De King Kong? Uma homenagem a Ciao, Maschio (1978), de Marco Ferreri?
O filme, que já havia tido os capítulos Gênesis e Êxodo, terá então O Evangelho Segundo Martine, Segundo Aurélie, Segundo Jean-Claude, Segundo o Obcecado, Segundo o Assassino e Segundo Willy.
Aurélie (Laura Verlinden) é uma bela mas solitária, triste, amargurada mulher que, quando criança, havia perdido o braço num acidente no metrô.
Jean-Claude (Didier De Neck) é outro solitário, que trabalhou a vida inteira num serviço burocrático que detestava. Quando chegou a mensagem de texto com o tempo que ele tinha ainda para viver, abandonou o emprego, a casa, tudo, sentou-se num banco de praça e pretendia nunca mais sair dali – até que, depois de uma conversa com Ea, passou a seguir um pássaro, por onde ele fosse.
Marc (Serge Larivière) tinha ficado obcecado por uma jovenzinha alemã que viu numa praia, quando bem garotinho. Obcecado por ela, e por consequência por todas as mulheres do mundo. Como nos romances de escritores de imaginação fértil demais, vai reencontrá-la depois de ficar sabendo quanto tempo ainda tinha para viver.
François (François Damiens) tinha simplesmente pirado, depois de saber a data de sua morte. Pegou um fuzil e resolveu sair para atirar em pessoas escolhidas a esmo: se fosse o dia de a vítima morrer, então ele tinha apenas executado os desígnios de Deus. Se não fosse, ele erraria o tiro, a pessoa sobreviveria.
E, finalmente, temos Willy (Romain Gelin). Willy era um garotinho de uns 10, 12 anos, que recebeu a informação de que teria pouco menos de dois meses de vida. Os pais ofereceram a ele todas as opções possíveis: queria abandonar a escola, viajar, ir para a praia? Willy pediu para passar a se vestir como uma menina.
“Não tenho prazer algum em chocar. Apenas contei uma história de fadas.”
O Novíssimo Testamento foi indicado tanto ao Globo de Ouro quanto ao César, o Oscar francês, na categoria Melhor Filme Estrangeiro. Venceu 11 prêmios e teve outras 12 indicações em diversos festivais mundo afora.
Jaco Van Dormael tem 15 títulos em sua filmografia, mas vários deles são documentários de curta-metragem. Este aqui é seu quinto longa-metragem de ficção. E que ficção!
Ele foi o autor da trama e dos roteiros de todos os seus filmes anteriores. O Novíssimo Testamento foi sua primeira experiência de escrever um roteiro a quatro mãos. Ele e seu colaborador Thomas Tunzig levaram seis meses para concluir o trabalho. Pouquíssimo tempo, em comparação aos dez anos que Van Dormael levou para escrever o roteiro de Mister Nobody (2009).
“Não sou crente, mas tive uma educação católica”, disse o realizador, em entrevista citada no site AlloCiné, o que tem tudo sobre o cinema em língua francesa. “Eu me interesso pelas religiões da mesma forma como me interesso por belas histórias.”
Sobre a possibilidade de chocar católicos e a própria Igreja, ele afirmou: “Não pensei sobre isso. Não tenho prazer algum em chocar. Eu apenas contei uma história de fadas.”
Com exceção de Catherine Deneuve, todos os principais atores do filme são belgas.
Que estrela tem essa garotinha Pili Groyne, que faz o papel principal do filme. Nascida em 2003, aos ridículos, ínfimos 12 anos de idade tinha já dois filmes apresentados no Festival de Cannes! Ela estreou no cinema como a filha de Marion Cotillard no filme Dois Dias, Uma Noite (2014), dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, queridinhos de todos os críticos de cinema do mundo e também dos organizadores do festival mais badalado do mundo. No ano seguinte, este O Novíssimo Testamento participou do festival, na mostra Quinzena dos Realizadores.
Entre o drama dos Dardenne e essa comédia impagável aqui, fez um filme de terror, sob a batuta de outro cineasta belga incensado pela crítica, Fabrice Du Welz, Allelluia (2014).
Parece que, para essa menina que arrasa como a filha de Deus, o céu é o limite.
Anotação em junho de 2016
O Novíssimo Testamento/Le Tout Noveau Testament
De Jaco Van Dormael. Bélgica-França-Luxemburgo. 2015
Com Pili Groyne (Ea), Benoît Poelvoorde (Deus)
e Yolande Moreau (a mulher de Deus), Catherine Deneuve (Martine), François Damiens (François), Laura Verlinden (Aurélie), Serge Larivière (Marc), Didier De Neck (Jean-Claude), Marco Lorenzini (Victor), Romain Gelin (Willy), Anna Tenta (Xenia, a alemã), Johan Heldenbergh (o padre), David Murgia (Jesus Cristo), Gaspard Pauwels (Kevin), Bilal Aya (Philippe), Johan Leysen (o marido de Martine), Dominique Abel (Adão), Lola Pauwels (Eva), Sandrine Laroche (Catherine), Louis Durant (Marc aos 9 anos), Jean Luc Piraux (o pai de Willy), Anne-Pascale Clairembourg (a mãe de Willy)
Argumento e roteiro Thomas Gunzig e Jaco Van Dormael
Fotografia Christophe Beaucarne
Música An Pierlé
Montagem Hervé de Luze
Casting Michaël Bier e Patrick Hella
Produção Terra Incognita Films, Climax Films, Après le Déluge, Juliette Films, Caviar Films, Orange Studio.
Cor, 113 min
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