O Homem que Elas Amavam Demais / L’Homme qu’on aimait Trop

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Nota: ★★★☆

O Homem que Elas Amavam Demais/L’Homme qu’on Aimait Trop, o sétimo filme em que André Téchiné dirige Catherine Deneuve, pode ser visto como um drama familiar sobre as relações conturbadas entre mãe e filha.

É mais do que isso, no entanto. Fala da complexa engrenagem que é administrar um cassino, num dos lugares que mais atraem ricos e milionários de todo o mundo, a Côte d’Azur; entra na questão da eterna presença das máfias poderosas, do uso dos cassinos para a lavagem de dinheiro criminoso. É uma obra complexa, densa, às vezes exasperante e até cansativa – mas me parece que, sobretudo, é, sim, um filme sobre as relações conturbadas entre mãe e filha.

Relações conturbadas entre mãe e filha. O cinema já fez belas obras sobre isso. Sonata de Outono (1978), do mestre Ingmar Bergman, sobre o angustiante, angustiante, angustiante encontro entre a mãe pianista de fama internacional e sua filha na faixa dos 40 anos, interpretadas por Ingrid Bergman e Liv Ullmann.

Setembro (1987), o drama de Woody Allen sobre a filha (Mia Farrow) que teve uma experiência absolutamente traumática junto com a mãe quando era ainda adolescente, nunca conseguiu se encontrar na vida, e, durante um período de visita da mãe (Elaine Stritch), vê aflorarem todos os problemas da vida inteira.

Mildred Pierce, o imenso dramalhão sobre a mãe batalhadora, abnegada, que faz tudo pela filha, e vê a filha se voltar contra ela de todas as formas possíveis, incluindo o sexo com o homem que a mãe ama – uma história tão poderosa que deu origem a um grande clássico do cinema, Almas em Suplício/Mildred Pierce (1945), com Joan Crawford e Ann Blyth, e a uma excepcional, belíssima série de TV, Mildred Pierce (2001), com Kate Winslet e Evan Rachel Wood como respectivamente mãe e filha.

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Catherine Deneuve faz Renée, a viúva do principal acionista de um cassino

Neste L’Homme qu’on Aimait Trop, Catherine Deneuve, essa deusa, esse monumento, aos 71 anos de idade, interpreta Renée Le Roux, a principal acionista de um tradicional cassino de Nice, o Palais de la Méditerranée, viúva do homem que por anos e anos foi o dono e a alma do lugar. Na estrutura administrativa do cassino na época em que se passa a maior parte da ação, 1976 e 1977, Renée era uma espécie de diretora de relações públicas – a viúva do dono, a bela dama, refinada, elegante, que sabia receber quem quer que fosse, e deixava todos os visitantes à vontade.

A direção efetiva de todo o negócio ficava a cargo de um profissional, um homem do ramo, Guérin (Pascal Mercier).

E o negócio não estava indo maravilhosamente bem, naquela segunda metade dos anos 70. O Palais de la Méditerranée – que ocupava um faustoso, excepcional palácio diante das águas azulérrimas do Mediterrâneo – enfrentava a dura concorrência de novos cassinos, alguns dirigidos por mafiosos que os usavam para lavar dinheiro vindo do crime.

Bem no início do filme, o cassino sofre, numa noite, uma terrível perda de vários milhões de francos.

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Renée confiava muito em um advogado que havia se aproximado bastante dela, Maurice Agnelet (o papel de Guillaume Canet). Maurice advertia Renée que aquele baque poderia ter sido resultado de um ataque planejado por um tal Fratoni (Jean Corso), um biliardário dono de vários cassinos na Côte d’Azur, de origem italiana e suspeito de ligações com a Máfia.

Maurice Agnelet – divorciado, pai de um garoto que na época estava com uns 7 anos, tido como mulherengo incorrigível, conquistador emérito – era também um sujeito extremamente ambicioso. Sugere a Renée que demita Guérin, o diretor-geral do cassino, e assuma ela mesma o posto, colocando a ele, Maurice, como seu lugar-tenente, o segundo homem na hierarquia.

É nesse período conturbado dos negócios da mãe que reaparece em Nice a filha dela, Agnès Le Roux, moça de uns 28 anos, por aí. Agnès acabava de se divorciar do marido com o qual vivera algum tempo na África, muito provavelmente no Marrocos, ou talvez na Tunísia – uma das ex-colônias francesas, certamente. O roteiro – assinado por Téchiné e mais duas pessoas – não se preocupa em explicar muito o passado de Agnès na África.

A narrativa começa exatamente com a chegada de Agnès a Nice. Para surpresa dela, sua mãe não está no aeroporto para recebê-la – Renée havia enviado exatamente Maurice Agnelet para receber a filha, porque estava ocupada no cassino. A idéia era levar Agnès, na limousine dirigida por Mario (Mauro Conte), diretamente para o cassino, para que mãe e filha se reencontrassem de imediato. Agnès, no entanto, exige uma parada junto da praia para dar um mergulho e uma nadada, antes de ver a mãe.

A jovem Adèle Haenel faz a personagem mais importante da história

Esses primeiros momentos do filme já indicam que Agnès é uma jovem determinada, cheia de vontades próprias, independente, resoluta – e, aparentemente, sem ligação afetiva com a mãe.

Renée, muito diferentemente – o filme vai demonstrar isso de maneira cabal -, tem imenso amor pela filha.

Quem interpreta Agnès Le Roux é Adèle Haenel, jovem atriz em tudo por tudo fascinante. Tem um rosto absolutamente camaleônico. Há momentos em que parece nada bonita, até mesmo feia. Há momentos em que parece pura e simplesmente louca. Mostra-se forte, resoluta – e, daí a um tempo, o oposto exato, um ser frágil, débil, vara verde incapaz de ficar de pé. E, em muitas sequências, mostra uma beleza forte, radiante, luminosa, com olhos de um azul fulgurante, raro.

Adèle Haenel nasceu em Paris quase anteontem mesmo – no primeiro dia de 1989, para ser preciso -, filha de uma professora francesa e um tradutor austríaco. Como sua personagem, Agnès, nada muito bem – e, além de nadar, pratica também futebol, ciclismo, boxe e judô. Vive há algum tempo uma relação afetiva com Céline Sciamma, atriz, roteirista e diretora. Céline dirigiu a companheira já em 2007, em Lírios d’Água/ Naissance des Pieuvres, o segundo filme de Adèle.

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Adèle Haenel é, me parece, a figura mais importante do filme, embora o título faça referência ao personagem do advogado ambicioso e conquistador, Maurice Agnelet, e embora o elenco tenha Catherine Deneuve. Catherine acaba, no entanto, ficando num segundo plano – o primeiro plano fica por conta de Agnès Le Roux-Adèle Haenel e Maurice Agnelet-Guillaume Cannet.

A trama de L’Homme qu’on Aimait trop é complexa, intrincada, e não pretendo relatar muito mais dela. Só acho necessário registrar algumas informações sobre a relação mãe-filha. Como herdeira do casal Le Roux, Agnès, naturalmente, tem direito a cotas do cassino, e vai pedir à mãe que pague a ela a importância correspondente. Haverá aí um ponto de atrito grande entre as duas.

Como detentora de parte da sociedade, Agnès tem direito a voto nas reuniões do conselho. E o voto dela será crucial em mais de uma circunstância em que a posição de Renée Le Roux na administração do Palais de la Méditerranée será posta em cheque.

Agnès Le Roux terá aí seu dia de Veda Pierce – a filha ingrata, cruel, de Mildred Pierce.

Um cineasta que sempre focaliza a família, as relações afetivas

André Téchiné, nascido em 1943, fez o mesmo caminho de seus predecessores François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer: antes de dirigir, escreveu sobre filmes nos mesmos Cahiers du Cinéma em que os grandes nomes da nouvelle-vague haviam escrito. Seus filmes, como bem sintetiza o livro 501 Movie Directors, exploram as intrincadas relações humanas e a complexidade das emoções das pessoas – passando longe da visão sentimental tão comum em filmes de Hollywood. “Os filmes de Téchiné não oferecem respostas fáceis para as audiências; em vez disso, são observações sobre os dilemas cotidianos de pessoas que enfrentam as consequências de suas emoções e a natureza doçamarga das relações humanas”. Pô, taí, gostei desse texto do 501 Movie Directors, assinado por uma inglesa quase homônima da cantautora querida, Carol King.

A família é um dos interesses fundamentais do realizador. Em Minha Estação Preferida/Ma Saison Préferé (1993), por exemplo, ele faz um apanhado de todos os tipos de problemas familiares: a crise da meia idade, a crise da geração de meia idade quando os pais ficam velhos e se tem que decidir o que fazer, as dificuldades de comunicação, a dificuldade de expressar sentimentos e sensações, as dificuldades da adoção, a distância dos filhos – e, ainda, um amor quase incestuoso entre dois irmãos, interpretados por Catherine Deneuve e Daniel Auteil.

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A mesma dupla de grandes atores, Catherine e Auteil, disputa o amor de uma jovem ladra em Os Ladrões/Les Voleurs (1996). O filme fala de irmãos, de família, de amor, de solidão, de relação homossexual, encontro e desencontro. Mas o tema básico é como o outro lado da lei é tão mais atraente para uma criança do que o lado “certo”, em uma sociedade baseada na acumulação de dinheiro e bens.

Se as relações familiares, e as relações afetivas de uma maneira geral, são a base dos filmes de Téchiné, a questão dos dois lados da lei, da marginalidade, dos que optam por viver do outro lado dela também está presente em várias de suas histórias.

Quem ainda não viu o filme deveria parar de ler aqui

L’Homme qu’on Aimait Trop conta uma história real.

Fascinantemente, o filme só conta isso para o espectador ao final da narrativa, antes dos créditos finais, naqueles letreiros comuns nos filmes baseados em histórias reais, que resumem o que aconteceu com os personagens depois dos fatos mostrados na tela.

Os dizeres “Baseado em uma história real” são extremamente comuns, costumam ser um bom ponto de venda de filmes, atraem a atenção de muitos espectadores. No entanto, os cartazes do filme não trazem essa afirmação, ou qualquer outra parecida. Nem há essa informação na abertura do filme – não há créditos iniciais, só se mostram os nomes das companhias produtoras.

Também a capinha do DVD – lançado no Brasil pela Paramount – não faz qualquer menção à história real.

Não dá para saber por que o realizador e os produtores escolheram não usar o apelo do “baseado em uma história real”. É bem possível que o caso seja tão conhecido na França que sequer ocorreu fazer menção ao óbvio. Se bem que não usar isso no cartaz do filme para o maior mercado consumidor do mundo, o americano, é algo um tanto difícil de entender.

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De qualquer forma, como o filme só faz a revelação no final, preferi não falar dessa informação no início do texto. A rigor, a rigor, para quem gosta de ver o filme sabendo o mínimo possível da trama, a informação de que tudo aconteceu na vida real pode ser um spoiler.

Eu mesmo comentei com Mary, quando o filme já se aproximava do fim, que provavelmente aquela era uma história real – “se não tiver acontecido de verdade, qual é o sentido de contar essa história?”, eu disse.

Fiz o comentário um pouquinho antes de haver um grande corte de tempo no filme. Quando faltam aí uns 15 minutos para o fim, talvez 10, surge um letreiro: “30 anos depois”.

E, nos créditos finais, veio – ao menos para mim – uma nova surpresa. É explicitado que o roteiro se baseia no livro Une Femme Face à La Mafia, escrito por Renée Le Roux e Jean-Charles Le Roux. Mais ainda: o roteiro é assinado por Téchiné, pelo roteirista profissional Cédric Anger e por Jean-Charles Le Roux.

O livro – fica sabendo quem quiser – foi lançado em 1989. E Jean-Charles vem a ser filho de Renée Le Roux, a mulher que no filme é interpretada por Catherine Deneuve. O que tem alguma estranheza, porque no filme não se menciona em momento algum a existência de um filho homem de Renée. Ao contrário: pelo que o filme mostra, o espectador tem toda razão em achar que Agnès era a única filha da herdeira do cassino.

Dos 20 filmes de Téchiné, apenas dois foram baseados em histórias reais

Esta foi a segunda vez, nos 20 longa-metragens até hoje assinados pelo realizador, que Téchiné filmou um fait divers – a expressão exclusivamente francesa para designar história real que é bastante noticiada pela imprensa, que atrai a atenção das multidões, em geral envolvendo crime e/ou figuras públicas. Em 2009, ele lançou La Fille du RER, em inglês The Girl on the Train, que aparentemente não foi lançado no Brasil. O filme conta a história de uma moça que, em 2004, denunciou ter sido vítima de um ataque anti-semita; o caso atraiu a atenção de toda a imprensa francesa – e logo surgiu a versão de que não tinha havido ataque algum, que a moça tinha inventado tudo.

O que fez André Téchiné se interessar em filmar essa história real iniciada em 1976 e que ainda tinha continuação em 2014, o ano do lançamento da produção, foi, segundo informa o AlloCiné, o site que tem tudo sobre os filmes franceses, a personalidade de Agnès Le Roux. O realizador leu as cartas escritas por Agnès para o advogado Maurice Agnelet, e só depois é que deu a palavra definitiva de que aceitaria filmar a história.

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Ele contou em entrevistas que deixou claro para Jean-Charles, filho e irmã das duas personagens centrais da história, que não tomaria partido na questão que é o tema central do final da história – e que, afinal, é um dos grandes mistérios da crônica policial e jurídica da França. As sequências finais – tento dizer sem dar um spoiler aberto e total – se passam num tribunal; Renée e Jean-Paul defenderam uma tese, na vida real e em seu livro, a respeito da culpabilidade de um suspeito. O que Téchiné fez foi não abraçar essa tese, e sim deixar a conclusão para cada espectador.

Mas afinal, as suspeitas são procedentes ou não? De fato, cada espectador terá seu veredicto. Mary e eu, que em geral temos opiniões parecidas sobre quase tudo, discordamos.

O que não deixa margem a dúvidas é o seguinte: essa moça Adèle Haenel vai longe. Tem um rosto camaleônico, às vezes lindíssimo, às vezes até feio, sabe exibir no rosto uma imensa gama de sentimentos, e demonstra talento. Ter sido escolhida por André Téchiné, o cineasta que já dirigiu Catherine Deneuve sete vezes, e mais Emmanuelle Béart, Marie-France Pisier e Juliette Binoche é garantia mais que suficiente.

Anotação em novembro de 2015

O Homem que Elas Amavam Demais/L’Homme qu’on l’aimait Trop

De André Téchiné, França, 2014

Com Guillaume Canet (Maurice Agnelet), Adèle Haenel (Agnès Le Roux), Catherine Deneuve (Renée Le Roux)

e Judith Chemla (Françoise), Mauro Conte (Mario), Jean Corso (Fratoni), Hugo Sablic (o filho de Agnelet adulto), Jean-Pierre Getti (o presidente do tribunal do júri), Pascal Mercier (Guérin)

Roteiro André Téchine, Cédric Anger e Jean-Charles Le Roux

Baseado no livro Une Femme Face à la Mafia, de Jean-Charles Le Roux e Renée Les Roux

Fotografia Julien Hirsch

Música Benjamin Biolay

Montagem Hervé de Luze

Produção Fidélité Films, VIP Cinéma 1, Mars Films, Caneo Films. DVD Paramount.

Cor, 116 min

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Título nos EUA: In the Name of My Daughter. Em Portugal: O Homem Demasiado Amado.

 

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