Of Human Bondage, no Brasil Escravos do Desejo, de 1934, a primeira três adaptações para o cinema do romance catatau de William Somerset Maugham, é fascinante por um bom número de razões. Uma delas é que o filme é tão antigo, mas tão antigo, que foi lançado quando Bette Davis ainda não era uma grande estrela.
Na verdade, este foi o filme que a transformou em estrela.
Bette Davis (1908-1989) começou a carreira em 1931, aos 23 anos portanto. Naquele ano, e nos dois seguintes, fez nada menos que 17 filmes. Mas, em 1934, não tinha ainda adquirido o status de grande estrela. Tanto que seu nome aparece nos créditos finais abaixo do título do filme – algo que pode parecer um detalhe, uma sutileza, mas não é, de forma alguma. Ao contrário, é algo bastante significativo, emblemático, no cinema de Hollywood – e, a rigor, no cinema de todo mundo.
O astro do filme é Leslie Howard (1893-1943), que, cinco anos mais tarde, faria o papel de Ashley Wilkes, o terceiro mais importante de … E o Vento Levou.
Em uma única tomada – com uma visão de Paris à noite ao fundo – aparecem nos créditos iniciais todas estas informações:
“Radio Pictures presentes / Leslie Howard / in / Of Human Bondage / with Bette Davis / Frances Dee . Kay Johnson / Reginald Denny / A Pandro S. Berman Production / Copyright MCMXXXIV RKO Radio Pictures Inc. – All rights reserved.”
Um filme muito antigo, do tempo em que o nome de Bette Davis ainda aparecia abaixo do título. Of Human Bondage tem hoje 80 anos. E, no entanto – isso é absolutamente fascinante –, impressiona demais verificarmos como, 80 anos atrás, a gramática básica do cinema já estava estabelecida.
O filme do diretor John Cromwell tem muita coisa que ainda hoje parece moderna. Há tomadas em split screen, a tela dividida. Vemos tomadas que mostram não a realidade, mas as fantasias que passam pela cabeça do personagem central. Na montagem, há diversos recursos, como a fusão de imagens entre o final de uma tomada e o início da nova.
Embora eu já tenha visto dezenas e dezenas de filmes dos anos 20 e centenas dos anos 30, este Of Human Bondage de 1934 me impressionou pela sua atualidade, sua modernidade, em termos de linguagem cinematográfica.
Claro, é a visão de alguém que vê filmes há mais de 50 anos. Não será, com toda certeza, a visão dos jovens pouco acostumados a filmes feitos antes de seu nascimento. Estes certamente acharão o filme antigo, velho, caquético.
Não é, não. De maneira alguma.
O professor é direto, quase brutal: diz a Philip que ele não tem talento para a arte
É um filme fascinante por vários motivos, como já disse, e um bom filme. Só não chega a ser um grande filme – mas não porque não houvesse os recursos técnicos na época em que ele foi feito. Na minha opinião, o problema é que é humanamente impossível contar em 83 minutos uma história cheia de nuances e detalhes que Somerset Maugham (1874-1965) descreve ao longo de mais de 500 copiosas páginas.
Fica necessariamente uma coisa menor, uma simplificação, um pálido reflexo.
Servidão Humana, o romance, publicado pela primeira vez na Inglaterra em 1915, descreve em detalhes a vida do protagonista da história, Philip Carey, desde sua infância. Philip perde o pai e logo depois a mãe quando tinha apenas 9 anos de idade; passa a ser criado por tios – a tia tinha afeto por ele, mas o tio, ao contrário, sempre foi distante.
É importante para o romance a descrição da vida do garoto e do adolescente Philip para explicar a formação de seu caráter, e, portanto, por que motivos ele viria a ser inteiramente dominado, como um escravo, por sua paixão por Mildred (o papel de Bette Davis).
Há em Philip Carey muitos elementos do homem que o criou. Exatamente como Philip, Somerset Maugham ficou órfão bem cedo e foi criado por tios; exatamente como Philip, teve grande interesse pela pintura; exatamente como Philip, estudou Medicina. Exatamente como Philip, tinha um pé deformado, o que o fazia mancar.
No filme, conhecemos Philip Carey como estudante de arte em Paris. Haverá referências aos tios, embora não se fale que ele ficou órfão muito cedo. Mas o pé deformado é uma característica que está bem presente no filme. Na primeira sequência, logo após os rápidos créditos iniciais, Philip desce de um táxi diante de um bar, e caminha, mancando, até a mesa em que está seu professor de arte. Quer saber de Monsieur Flourney (Adrian Rosley) se ele tem algum talento para a pintura, se deve prosseguir seus estudos, ou não. Solícito, M. Flourney se oferece para ir até onde Philip vive, para ver seus trabalhos mais recentes.
Depois de examinar os quadros que Philip havia pintado – diversos retratos de mulheres, algumas nuas -, o professor pergunta se o rapaz tem dinheiro. Philip diz que tem algum, não muito. M. Flourney é então direto, claro, quase brutal:
– “Não há talento aqui. Só precisão e inteligência. Você nunca será grande, apenas medíocre. E é muito cruel uma pessoa descobrir que é medíocre quando for tarde demais.”
E oferece um conselho: – “Seja corajoso, use suas mãos e faça algo com sua vida”.
Philip diz que tem impedimentos para algumas tarefas – e vemos em close up os sapatos feitos especialmente para o pé deformado -, mas que poderia seguir a profissão do pai, a Medicina.
Leslie Howard-Philip Carey posta-se então diante da janela de seu estúdio, e lá ao longe podemos ver a Basílica de Sacré-Coeur, no topo da colina de Montmartre. A tomada se funde com a seguinte, e vemos o Tâmisa, o Parlamento; não seria absolutamente necessário, mas um letreiro informa que agora estamos em Londres.
Uma das mais tristes histórias de como a paixão pode escravizar um homem
Philip Carey estuda Medicina.
Num bar londrino, conhecerá Mildred – e se tornará escravo dela e de sua própria obsessão por ela.
Mildred trabalha no bar como garçonete. Tem plena consciência de que atrai os olhares e os desejos dos fregueses. Incentiva abertamente que um deles, um homem com aparência de rico, a corteje.
Philip a convida para sair, para ir ao teatro, para jantar. Mildred aceita como se estivesse fazendo um imenso favor àquele estudantezinho que tem algum dinheiro mas não é podre de rico.
A Mildred de Bette Davis (exatamente como a Mildred do livro, pelo que me lembro) é uma mulher grosseira, vulgar, egoísta, interesseira, absolutamente desprovida de bons sentimentos. Entrega-se ao tal freguês que parece rico na esperança de ter uma vida material melhor através do casamento – mas acabará sendo abandonada por ele com uma criança bastarda para criar. E recorrerá a Philip apenas porque sabe que pode fazer dele gato e sapato, o que bem entender.
Vai se meter em outros apuros – e voltará sempre para explorar o pobre coitado que é seu servo, seu escravo.
A trajetória de Philip e Mildred é uma das mais tristes, deprimentes, apavorantes histórias de como a paixão cega pode tornar um homem escravo de seu objeto de desejo. E o filme de John Cromwell transmite para o espectador todo esse clima de negror. Leslie Howard, grande ator, tem uma expressão doce, suave, um tanto melancólica, de quem sabe que não consegue lutar contra os demônios que dominam sua mente e o fazem optar sempre pelo pior caminho a seguir. E a jovem Bette Davis expõe com uma imensa força a imagem de mulher má que a acompanhará ao longo de toda a carreira gloriosa.
Não foi sucesso de público, mas a crítica percebeu as qualidades do filme
O filme não fez muito sucesso na época do seu lançamento, segundo o livro The RKO Story. Na verdade, deu ao estúdio um prejuízo de US$ 45 mil, uma pequena fortuna na época. Os Estados Unidos afundavam-se na Grande Depressão, e as platéias não estavam em nada interessadas em ver tanta miséria moral – ao contrário, queriam ver musicais e comédias em que gente rica entrava e saía de belos restaurantes usando roupas glamourosas. Aquele velho fenômeno: em tempos de crise, nada como um bom escapismo.
A crítica, porém, percebeu as qualidades de Of Human Bondage, que acabou se tornando, conforme assinala o livro, o filme de maior prestígio produzido pela RKO naquele ano de 1934.
Por sua interpretação como a malvada, sluttish Mildred, Bette Davis recebeu uma indicação para o Oscar – a primeira de suas 11 indicações. (Venceria em duas delas – Perigosa/Dangerous, de 1935, e Jezebel, de 1938.)
Sluttish é o adjetivo que o livro sobre a RKO usa para designar Mildred. É um bom qualificativo: sluttish, dizem os dicionários, é sujo, devasso, imoral.
Diz a primeira-dama da crítica americana Pauline Kael: “Bette Davis causou um grande impacto no papel de Mildred, a amante cockney…”
Sim, a Mildred de Bette Davis fala em cockney, o inglês das pessoas pobres, iletradas, de Londres e arredores. Não deve ser lá um cockney perfeito, mas há algumas expressões ou pronúncias que são nitidamente cockney, como o possessivo “me” em vez “my” – “me money”, “me clothes”, “me house”.
Então, Pauline Kael diz:
“Bette Davis causou um grande impacto no papel de Mildred, a amante cockney calculista e traiçoeira que enterra suas garras no sensível herói Leslie Howard. (Howard era o homem nascido-para-ser-traído até aparecer Dirk Bogarde.) Ela faz o papel funcionar por pura força de vontade; não deixa que ele aconteça, faz com que aconteça – e, cara, é melhor você se cuidar! Mildred, essa loura oxigenada, talvez seja demasiada e espalhafatosamente má para ser convincente, mas a energia de Davis foi pela primeira vez liberada em sua totalidade na tela, e o papel a transformou numa estrela. John Cromwell dirigiu esta versão cuidadosa, meio formal, do romance de Somerset Maugham. As outras mulheres na vida do herói são feitas pela adoravalmernte jovem Frances Dee e a notável e estranha Kay Johnson.”
Às vezes Pauline Kael me irrita com suas implicâncias contra tudo e todos, mas o texto dela é sempre maravilhoso. Volta e meia discordo completamente dela, mas acho acertadíssimo tudo o que ela disse sobre este filme aqui.
Leonard Maltin dá ao filme 3 estrelas em 4: “Versão bem filmada, com boas atuações, da história de W. Somerset Maugham sobre a estranha paixão do médico Howard pela vulgar garçonete (Davis). Muitos acham que a atuação de Davis é exagerada, mas por qualquer tipo de julgamento é poderosamente impressionante, e a colocou no mapa de Hollywood”.
Maltin, assim como Pauline Kael, acrescenta a informação de que a história foi refilmada em 1946 e em 1964.
Sim, houve mais dois Of Human Bondage. A versão de 1946 no Brasil teve o título de Escravo de uma Paixão – mais adequado que o título brasileiro desta primeira versão, Escravos do Desejo. O plural aí não tem qualquer sentido.
Escravo de uma Paixão/Of Human Bondage foi dirigido por Edmund Goulding; Philip é interpretado por Paul Henreid, o ator que faz Victor Laszlo em Casablanca, e que contracenaria com Bette Davis em A Estranha Passageira/Now Voyager (1942). O papel de Mildred coube à bela Eleanor Parker, de Chaga de Fogo (1951), O Homem do Braço de Ouro (1955), Os Viúvos Também Sonham (1959), A Noviça Rebelde (1965).
A terceira versão, de 1964, teve finalmente no Brasil o título correto, o título do romance, Servidão Humana. Mildred era interpretada por Kim Novak, no auge da beleza estonteante – no mesmo ano, ela fez o delicioso Beije-me, Idiota, de Billy Wilder. O pobre Philip foi feito por Laurence Harvey, e o diretor foi Ken Hughes.
Terminou o comentário sobre o filme. Agora vem um viajandão nada a ver
E aqui embarco num viajandão, uma digressão muito pessoal. Meu primeiro caderninho de cinema diz que vi Servidão Humana versão 1964. Não me lembro de nada do filme. O caderninho especifica que vi no dia 8 de maio de 1965, na sessão das 6 da tarde, no Cine Palladium, na época o melhor cinema de Belo Horizonte, onde, meses antes, em dezembro de 1964, tinha sido a festa de formatura da 4ª. série de ginásio do Colégio de Aplicação. Agora em agosto de 2014, fizemos uma grande reunião para comemorar os 50 anos da formatura. Foi uma absoluta delícia.
Estavam lá, nessa reunião, algumas moças por quem tive paixonite, arrastei asinhas, fui vidrado, seja lá qual for a melhor forma de expressar amor adolescente. Mercedes, Dudu, Lalá. Estava também Regina, irmã de Bete, que foi a primeira grande paixão da minha vida. Desde 1968 nunca mais a revi.
Foi Bete que me deu de presente o cartapácio Servidão Humana, uma edição da Editora Globo – não a atual, mas a original, de Porto Alegre, que publicou diversos grandes clássicos ingleses, americanos e franceses até os anos 60.
Depois que vi agora, pela primeira vez, o filme de John Cromwell com Leslie Howard e Bette Davis, me deu vontade de dar uma folheada no livro, reler alguns trechos – e, de quebra, reler a dedicatória feita por Bete, na última página, que era como usávamos escrever dedicatórias naquela época, na última página, e não na frente.
Não achei o Servidão Humana. Estão lá no lugar alguns outros poucos livros de Maugham, Histórias dos Mares do Sul, Confissões, Um Gosto e Seis Vinténs, O Fio da Navalha e uma edição deste último em inglês – mas não estava o catatau de Servidão Humana. E aí, só aí, me veio à memória, no começo um tanto indistintamente, mas depois de forma mais clara, que de fato me desfiz dele algum tempo atrás, em uma das tentativas de liberar espaço nas estantes e prateleiras, botando fora suportes físicos que acho que não vou usar mais.
Sim, é verdade: joguei fora o exemplar do Servidão Humana que Bete me deu de presente em 1964 ou 1965. Me lembro agora: o livro estava troncho, velhinho demais, se desfacelando. Joguei fora – com a dedicatória!
Mas como é possível que eu tenha jogado fora exatamente esse livro, com dedicatória da Bete?
A eterna questão dos suportes físicos.
Vivo sempre o conflito entre guardar ou não guardar. Algumas vezes cedo ao diabinho que manda jogar coisas fora.
Em geral, é exatamente aquele suporte físico de que a gente se desfaz que a gente mais tarde vai procurar. Exatamente aquele disco que deu uma vontade doida de ouvir. Exatamente aquele livro que deu vontade de folhear, reler partes.
Diabo.
Anotação em outubro de 2014
Escravos do Desejo/Of Human Bondage
De John Cromwell, EUA, 1934
Com Leslie Howard (Philip Carey), Bette Davis (Mildred),
e Frances Dee (Sally), Kay Johnson (Norah), Reginald Denny (Griffiths), Alan Hale (Miller), Reginald Sheffield (Dunsford), Reginald Owen (Athelny), Desmond Roberts (Dr. Jacobs), Adrian Rosley (Monsieur Flourney, o professor de artes em Paris)
Roteiro Lester Cohen
Baseado no romance de W. Somerset Maugham
Fotografia Henry W. Gerrard
Música Max Steiner
Montagem William Morgan
Produção Pandro S. Berman, Radio Picture. DVD Versátil.
P&B, 83 min
***
Bette Davis soberana desde novinha
Eu tenho Servidão Humana Editora Globo Porto Alegre 🙂
Nunca vi este filme nem nenhuma das outras adaptações do romance. Só estou a escrever porque reli há muito pouco tempo o livro que eu aprecio imenso.
É um dos tais romances de que raramente resultam grandes filmes; pelo contrário muitos bons filmes são adaptações de romances medíocres. Basta pensar nos filmes que Hitchcock realizou com base em livros que são em regra descartáveis.
Uma amiga me mandou o link dessa versão de 1934 porque falei do livro num vídeo meu; mas confesso que não tive (ainda) coragem de ver. Isto porque me lembro de que o livro me fez sofrer bastante; eu sofria junto com Philip. E sendo Leslie Howard a viver Philip, sei que vou sofrer ainda mais. No momento, não dá.