Apenas sete anos depois de terem protagonizado algumas das mais quentes, arrebatadoras cenas de sexo do cinema americano em Corpos Ardentes/Body Heat (1981), Kathleen Turner e William Hurt se reencontram, dirigidos pelo mesmo realizador, Lawrence Kasdan. Estão frios, gélidos.
Ele chega de viagem, dão um levíssimo beijo, quase sem que os lábios de um encostem nos do outro. Ela oferece um chá, ele agradece pela gentileza dela. E então ela diz:
– “Macom, você sabe que eu te amo. Mas eu não posso mais viver com você.”
Ele está distraído. Acha que não ouviu direito:
– “O quê? O que você disse?”
– “Eu quero o divórcio, Macom. Aluguei um apartamento no centro.”
O Turista Acidental está com apenas seis minutos quando acontece o diálogo.
É claro, é óbvio que Macom Leary e sua mulher Sarah não têm nada a ver com Ned Racine e Matty Walker, os personagens de Corpos Ardentes. Ao mesmo tempo, a química do encontro de Kathleen Turner e William Hurt no filme de 1981 foi tão forte, tão poderosa, os personagens eram tão marcantes, que é impossível não pensar em que como aquele vulcão todo pôde se apagar no curtíssimo espaço de sete anos.
Estão belos, naturalmente, no filme de 1988, Kathleen Turner e William Hurt. Mas, aos 38 anos, William Hurt já tinha entradas grandes, o cabelo já começava a ralear. Kathleen Turner, aos 34, mantinha a beleza arrasadora, mas já começava a ficar um pouco menos longilínea, um pouco mais encorpada.
O protagonista sempre foi introvertido, contido. Com a perda do filho, ficou mais ainda
Depois de ouvir a mulher dizer que quer o divórcio, entregando o prato feito de que já havia até alugado um apartamento, Macon tenta argumentar que eles haviam tido um ano muito difícil, mas que isso não era motivo para o fim do casamento.
Nessa altura, iniciozinho do filme, o espectador ainda não sabe – teve apenas uma pequena indicação –, mas Macon e Sarah haviam perdido o filho de 12 anos, Ethan (Seth Granger), um ano antes. O garoto estava numa lanchonete, houve um assalto, um tiro, e Ethan morreu.
Desde então, Macon e Sarah haviam se distanciado inexoravelmente.
Macon sempre havia sido – o filme vai nos mostrando – uma pessoa fechada, introvertida, contida. Sarah usa para defini-lo o adjetivo muffled – de to muffle, abafar, silenciar, amortecer.
Não gosta de falar sobre sentimentos, emoções. Não gosta de mostrar para os outros o que sente.
Com a perda do filho, essas características parecem ter se tornado ainda mais fortes.
Guias de viagem para quem só viaja a serviço, por obrigação, contra a vontade
O jeito de Macon ser na vida combina perfeitamente com a profissão a que se dedica faz anos. Macon Leary escreve guias de viagem para homens de negócios que são obrigados a viajar mas que na verdade gostariam mesmo era de ficar em casa, ou no máximo em seu bairro, em sua cidade, fazendo coisas rotineiras, já conhecidas.
Um editor inteligente, perspicaz, chamado Julian (Bill Pullman) havia sacado que Macon seria a pessoa perfeita para escrever guias de viagem para ensinar pessoas que não gostam de surpresas, novidades, a encontrar nas mais diferentes cidades do país e do mundo costumes idênticos aos de casa. Como encontrar, por exemplo, em Londres ou Paris não as coisas típicas dessas duas metrópoles fascinantes, e sim os lugares em que poderiam comer quase exatamente como na lanchonete da esquina de casa.
E então Macon havia começado a escrever os guias de uma coleção chamada O Turista Acidental. Poderia também ser O Turismo Relutante, daria no mesmo. Pessoas que são obrigadas a viajar a trabalho mas que não procuram o diverso, o diferente; pessoas que vêem a vida de maneira oposta à que Georges Moustaki canta em sua música “Il faut voyager”: “É preciso viajar, é preciso ir / Até lá, onde não se é ninguém, / Lá onde não se conhece nada. / Falar outra língua, ouvir outros ruídos, / Provar outros frutos, viver outras lendas. / É preciso viajar, é preciso ir / Se perder no fim do mundo”
A abertura de O Turista Acidental, os primeiros cinco minutos do filme, antes de Macon Leary voltar para casa de uma viagem a trabalho e ouvir que a mulher quer o divórcio, são brilhantes, belíssimos.
Imagens em close-up mostram objetos sendo colocados em uma pequena mala de mão, enquanto a bela voz de William Hurt-Macon Leary, em off, vai dizendo o que o autor de guias de viagem para viajantes relutantes ensina.
– “Um viajante a negócios só deve levar o que cabe na bagagem de mão. Despachar bagagem é procurar problemas. Inclua vários saquinhos de sabão em pó, para não ter que cair nas mãos de lavanderias desconhecidas. Poucos produtos não são vendidos em saquinhos para viagem.
– “Um terno basta, se você estiver levando removedores de manchas. O terno deve ser cinza médio. O cinza não apenas esconde parte da sujeira como também é próprio para funerais repentinos. Leve sempre um livro, como forma de se proteger de estranhos. Revistas lêem-se rapidamente, e jornais de outro lugar indicam que você é um forasteiro. Não leve mais que um livro. É um erro comum superestimar o potencial tempo livre e consequentemente sobrecarregar a bagagem. Nas viagens, assim como na maior parte da vida, menos é invariavelmente mais.
– “E o mais importante: nunca leve em sua viagem algo tão valioso ou estimado cuja perda deixaria você arrasado.”
O timing, claro, é perfeito. Quando a voz de William Hurt-Macon Leary começa a falar esta última frase, vemos um porta-retrato com a foto de um garotinho, que depois saberemos que é Ethan, o filho morto.
Quando a última palavra dessa introdução é pronunciada, terminam os créditos finais – um avião cruza a tela.
Sarah sai de casa, e Macon fica só com o cachorro e os sonhos com o filho morto
Macon está sentado na poltrona do corredor. Lendo, é claro, como tentativa de impedir que estranhos lhe dirijam a palavra. Mas o sujeito que está ao lado dele, na poltrona do meio, e é gigantesco, não se incomoda com o livro. Puxa papo com o autor de guias de viagem para turistas acidentais.
Depois de algumas frases sobre o fato de ser muito gordo, sobre Baltimore, a cidade para onde estão indo e que é tanto a de Macon quanto dele, o gordo pergunta o que o outro faz, e Macon responde. O gordo abre uma gordo sorriso: é fã da coleção O Turista Acidental. Viu? diz ele – terno cinza. Mala de mão.
– “Vejo que você está carregando um livro. Mas comigo não deu certo, não é?”
Macon dá um sorrisinho sem graça, sem jeito, desenxabido. Na sequência seguinte, ouvirá de Sarah que ela quer o divórcio.
Macon até que tenta argumentar um pouco, mas Sarah se mostra firme como uma rocha. Sairá em seguida da casa confortável do casal, deixando o marido sozinho com seus recorrentes sonhos com o filho que já se foi e o cachorro Edward, que era o companheiro inseparável do garoto Ethan.
Entra na vida do sujeito retraído uma moça que é em tudo diferente dele
Muitos anos mais tarde, para seu filme mais recente, de 2012, Querido Companheiro, Lawrence Kasdan e sua mulher Meg escreveriam uma história em que um cachorro tem grande importância.
A história de O Turista Acidental não é uma criação original de Lawrence Kasdan, o escritor que foi um dos autores dos roteiros de O Império Contra-Ataca, o segundo filme da trilogia original de Star Wars, e também de Os Caçadores da Arca Perdida, a primeira aventura de Indiana Jones.
O filme se baseia no livro homônimo de Anne Tyler. Kasdan é um dos autores do roteiro, ao lado de Frank Galati.
Como em Querido Companheiro, um cachorro tem importância grande na trama de O Turista Acidental. Depois que Sarah sai de casa, Macon tem que viajar a Londres, para atualizar o guia de viagem sobre a capital inglesa. Descobre uma loja-hotel para cães, e vai até lá, com a intenção de deixar Edward.
Uma moça bonita, de cabelos encaracolados, lábios carnudos, olhos grandes e muito vivos, vestida com roupas de muitas cores, é quem o atende. Quando ela sai de trás do balcão e vem ver Edward de perto, a câmara se abaixa para mostrar o cão, e mostra também que a moça usa um vestido curtíssimo, até menos da metade das coxinhas muito longas e muito finas.
Ela diz para Macon seu nome e sobrenome: Muriel Pritchett. É o papel de Geena Davis, então com 32 aninhos e pelo menos dois filmes de sucesso, a refilmagem de A Mosca, de 1986, e Os Fantasmas se Divertem/Beetlejuice, daquele mesmo ano de 1988. Três anos depois ela se transformaria em estrela com Thelma & Louise, de Ridley Scott.
Muriel diz seu nome inteiro, consegue obter de Macon a informação de que o cão não pode ficar com a mulher dele porque ela mora em outro lugar e lá não permitem animais, e já adianta para ele a informação de que também é divorciada.
A moça Muriel se oferece, e Macon se fecha como um tatu-bola
Todos os primeiros diálogos entre o fechado, introvertido, contido, travado, muffled Macon e a livre leve solta e abertamente disponível a um novo relacionamento Muriel são absolutamente deliciosos. Ela se oferece para conversar, para treinar o cachorro Edward, para qualquer coisa – e ele se fecha, como um tatuzinho-bola.
Além do abismo do tipo de personalidade, há entre eles um Grand Canyon social, cultural. Macon é classe média para alta, Muriel é classe média para baixa. Macon é letrado, estudado, Muriel é bem menos. Ele se veste em geral de cinza, ela usa roupas coloridas, saias e vestidos curtinhos, gigantescas unhas postiças do vermelho mais vivo que há, sapatos de cores vivas.
Da segunda vez em que se encontram, quando Macon volta da Inglaterra e vai até a loja recolher Edward, Muriel diz que o cachorro deveria ser treinado, e ela é uma boa treinadora. Cachorros que mordem são sua especialidade. Ela usa o termo speciality – um termo, aliás, corretíssimo, segundo comprova o primeiro dicionário que consulto agora para checar, o excelente Dictionary of English Language and Culture da inglesa Longman.
Pois não é que Macon dá uma resposta ofensiva, grosseira, mal educada?
– “Specialty. O Webster prefere specialty.”
Mas Muriel não se ofende com a grosseria. Muriel, veremos, é uma mulher de muitas specialities. Ou specialties – whatever. Tanto faz.
Quando a arte imita a vida com tanta sensibilidade, ela fica ainda maior
O roteiro de Lawrence Kasdan e Frank Galati é uma maravilha de descrição de personalidades, tipos diferentes de caráter, de forma de encarar a vida. É de uma sensibilidade absurda. O filme é todo cheio de pequenos detalhes que vão nos mostrando as reações desses personagens aos fatos da vida.
Vemos, por exemplo, as pequeninas mostras de preconceito social da família de Macon diante da mais pobre, menos culta Muriel. Lá pelas tantas, um de seus irmãos, Porter (David Ogden Stiers), pergunta a Macon o que, afinal, ele quer com “essa tal de Muriel” – “this Muriel person”.
As sequências que mostram o relacionamento de Macon com Alexander (Robert Hy Gorman), o filhinho de Muriel, são também demonstrações de extrema sensibilidade.
Macon está com Alexander numa loja de departamentos, comprando roupas para o garoto, quando de repente se aproximam dele uma mulher e um rapaz. Essas coisas dos encontros casuais da vida. O rapaz era colega, amigo de Ethan, o filho que Macon havia perdido.
A sequência é belíssima, e demonstra a extrema sensibilidade dos roteiristas, do diretor.
No momento exato em que Laura Canfield (Maureen Kerrigan) chega perto de Macon, ele, na falta do que fazer, enquanto Alexander tinha levado diversas roupas ao provador, estava botando na cabeça um chapéu um tanto ridículo.
Quando Laura Canfield se dirige a ele, Macon está duplamente embaraçado: por estar com um chapéu grotesco na cabeça, e por estar na seção de roupas infantis, ele, que já não tem mais filho – e portanto está sendo flagrado com o filho de outra pessoa.
Dá-se um diálogo – dolorido, doloroso – que poderia ter acontecido com qualquer um de nós.
E então Laura diz: – “Compramos todo o departamento de meias. A cada semana Scott acaba com suas meias. Sabe como eles são nessa idade.”
E aí, uma fração de segundo depois de dizer a frase, ela percebe que falou besteira, que Macon não sabe como os garotos são nessa idade, porque o garoto dele morreu.
E então ela emenda, sem graça, sem jeito: – “Quer dizer…”
No original, ela diz: – “Or rather…”
E então Macon a salva da situação embaraçosa, fala uma frase qualquer.
Que esplendorosa sensibilidade os realizadores mostram nessa pequena sequência.
Quando a arte imita a vida com tanto talento, tanta sensibilidade, ela fica ainda maior.
“O mundo é lugar perigoso e caótico”
Detalhinho saboroso. O rapazote que faz o papel de Scott, que havia sido colega de Nathan, e que só aparece naquela rápida sequência, é Jake Kasdan, filho de Lawrence e Meg Kasdan. Nasceu em 1974, um ano antes da minha filha (o que faz sentido, já que Lawrence é da minha geração, quase exatamente um ano mais velho que eu). Minha filha, felizmente, ao contrário de tantos filhos de jornalistas, não quis seguir a profissão do pai. Faz tempo que dou graças aos céus por isso.
Jake Kasdan, que o pai botou pra fazer uma ponta em seu filme de 1988, seguiu os caminhos do pai. Foi ator em 5 filmes/e ou episódios de séries de TV, roteirista de 4, produtor de 9 e diretor de 15.
Numa entrevista para um filmete que acompanha O Turista Acidental no DVD, feita em 2003, Lawrence Kasdan diz que o filme tem muito das preocupações que ele gosta sempre de botar em suas obras: “O mundo é um lugar perigoso e caótico, e as pessoas farão qualquer coisa para tentar controlar seus medos”.
No próprio filme, através de um de seus personagens que estão aprendendo que a vida não sai conforme nossos planejamentos, Kasdan diz uma frase belíssima:
– “Começo a achar que o importante não é o quanto você ama alguém. Talvez o mais importante seja quem você é quando está com alguém.”
“Nunca vi um filme tão triste em que há razão para tantas risadas genuínas”
Esses personagens tão bem construídos são ainda mais valorizados pelas excelentes interpretações de todos os atores, não apenas os principais, William Hurt, Kathleen Turner e Genna Davis, mas também por todos os coadjuvantes e pelo elenco de apoio.
O trio central está soberbo. São atuações espetaculares. Geena Davis ganhou o Oscar pela sua Muriel Pritchett. O filme teve outras três indicações ao Oscar – melhor filme, melhor roteiro adaptado e melhor trilha sonora para John Williams –, mas não levou. Teve também indicações para o Globo de Ouro de melhor filme drama e melhor trilha sonora, e para o Bafta de melhor roteiro adaptado. Ao todo, foram 4 prêmios e outras 8 indicações.
O Guide des Films de Jean Tulard diz o seguinte sobre o filme (que na França teve o título de Voyageur Malgré Lui, viajante apesar dele mesmo): “Esse tipo de assunto já foi filmado corretamente por um (Norman) Jewison ou (Robert) Mulligan, mas para tornar belo um personagem terno, é necessária a acuidade dentro da percepção de coisas delicadas. Kasdan se afirma autor completo. A novidade, Geena Davis, é excelente. Quanto a Turner e Hurt, já se sabe há muito que eles são do estofo dos grandes.”
Roger Ebert, o crítico que amava os filmes que via, termina assim seu texto sobre O Turista Acidental, para o qual dá a cotação máxima de 4 estrelas: “Nunca vi um filme tão triste em que há razão para tantas risadas genuínas. O Turista Acidental foi um dos melhores filmes de 1988”.
Não há como não concordar com o guia de Jean Tulard e com Roger Ebert. Para mim, O Turista Acidental foi um dos melhores filmes dos anos 1980.
Anotação em junho de 2013
O Turista Acidental/The Accidental Tourist
De Lawrence Kasdan, EUA, 1988
Com William Hurt (Macon Leary), Geena Davis (Muriel Pritchett), Kathleen Turner (Sarah Leary)
e Bill Pullman (Julian), Amy Wright (Rose Leary), David Ogden Stiers (Porter Leary), Ed Begley Jr. (Charles Leary), Robert Hy Gorman (Alexander Pritchett), Seth Granger (Ethan Leary)
Roteiro Frank Galati e Lawrence Kasdan
Baseado no livro de Anne Tyler
Fotografia John Bailey
Música John Williams
Montagem Carol Littleton
Produção Warner Bros. DVD Warner Bros.
Cor, 121 min.
R, ****
Título na França: Voyageur Malgré Lui.
Amo, amo muito esse filme. Amo todos os seus personagens com destaque para os irmãos (e a irmã) solteirões de Macon. Há ótimas sequências, especialmente, aquela do telefone que toca e ninguém atende. Ótimo texto, Sérgio.
Acabei de rever na televisão, um filme adorável. Foi o primeiro livro que li que, terminado, comecei de novo, de imediato. Um romance repleto de riquezas, impossíveis de serem filmadas. Acrescento que ela, Muriel, é o mais alto QI de Hollywood, que legal, não? e sabedora disso fundou algo, que atualmente chamar-se-ia ONG. Belo comentário, como sempre!
Como me delicio ao ler seus comentários Sérgio! Vc curte mesmo o que faz, tão maravilhosamente bem: escrever! Gosto de filmes que mostram a dificuldade do ser humano em superar suas perdas, suas lembranças que marcaram sua vida…Amei o filme! Que atuações!
Abraços