Achei No Silêncio de uma Cidade, no original While the City Sleeps, que o grande Fritz Lang fez já no final de seu exílio em Hollywood, em 1956, um filme fascinante.
No Silêncio de uma Cidade trata de um assassino serial; tem muito de noir, tem um tanto de suspense. Mas na verdade seu principal tema é a concorrência, a disputa entre as pessoas por maior poder dentro de uma empresa. No caso específico, é uma empresa jornalística – o que torna tudo mais fascinante, apaixonante, tanto para jornalistas quanto para seres humanos. Como aconteceu de eu ter virado jornalista, aprendi que a) as pessoas se dividem em jornalistas, de um lado, e seres humanos, de outro; e b) que o jornalismo, essa profissão muitas vezes sórdida, algumas vezes simplesmente cinzenta, às vezes chata como qualquer outra, exerce um fantástico, admirável fascínio sobre as pessoas.
Um intróito de três minutos mostra um assassino preparando a ação
Em 1956, ainda não era muito comum esse recurso que depois viraria tão absolutamente onipresente de abrir a narrativa com algumas sequências, e só depois vir com os créditos iniciais. Fritz Lang e o roteirista Casey Robinson usaram esse recurso – com brilho.
O filme tem um intróito. O zelador do prédio da jovem bibliotecária Judith Felton (Sandy White), um imigrante que ainda não domina muito bem o inglês, chamado George Pilski (Vladimir Sokoloff), está no apartamento da moça, para fazer um conserto qualquer. Toca a campainha, Judith pede ao zelador que atenda. É o entregador da loja. Judith diz que já está pago, Pilski pode receber a compra.
Compra recebida, o entregador é mostrado do lado de fora do apartamento, tentando ouvir o diálogo lá dentro. O velho Pilski diz que voltará mais tarde, quando Judith estiver fora, jantando, para terminar o serviço.
O zelador sai, desce as escadas. O entregador, que havia subido para o andar de cima, desce, toca a campainha. Judith atende; o rapaz diz que a mercadoria entregue era de outra pessoa; Judith vai pegar o pacote, diz que não, que está escrito ali o nome dela. Enquanto ela checa a encomenda, o rapaz aproveita para apertar um botão da fechadura, para que a porta não fique trancada.
Judith está enchendo a banheira. Ouve um barulho – a câmara focaliza seu rosto, ela dá um grito de horror.
Esse intróito não leva mais que uns três minutos.
E aí vêm os créditos iniciais. Eles informam que o roteiro de Casey Robinson foi baseado na novela The Bloody Spur, de Charles Einstein.
O dono do império de imprensa está doente, mas não pára de trabalhar
Após os créditos iniciais, o diretor de fotografia Ernest Laszlo, sujeito do primeiro time, nos mostra um prédio feito de papelão, em que aparecem os nomes Kyle Co. e The New York Sentinel.
No prédio da corporação Kyle funcionam um jornal, o The New York Sentinel (fictício, é claro), uma agência de notícias, um agência fotográfica e uma emissora de TV. Emissora de TV, aquela coisa nova – o filme é de 1956.
O dono daquele pequeno império de imprensa, Amos Kyle (Robert Warwick), está doente, deitado numa cama de hospital instalada em sua sala no prédio da corporação que leva seu nome.
Ao lado de sua cama, no escritório, estão diversas máquinas de telex, uma de cada grande agência de notícias.
O velho Amos Kyle agarra um telex que acaba de sair da máquina de uma concorrente dele com a notícia do assassinato de Judith Felton.
A enfermeira bem que tenta dar uma bronca, mas o doente exige que sejam chamados à sua presença os chefes de seu jornal nova-iorquino, John Day Griffith (Thomas Mitchell), de sua agência de notícias, Mark Loving (George Sanders), e de sua agência fotográfica, Harry Kritzer (James Craig). E, além dos três chefes, o patrão exige a presença de Edward Mobley (o papel de Dana Andrews), o âncora do programa de TV do conglomerado Kyle.
Do seu leito de enfermo, o patrão dá uma sonora bronca nos três chefes pelo fato de a morte da garota Judith Felton ter sido noticiada primeiro pela concorrência. Exige que aquele caso seja tratado como prioridade. Manda os três chefes embora, e embarca numa conversa com Mobley. Gostaria que ele, Mobley, assumisse a chefia do conglomerado, quando ele, Amos, passasse desta para melhor. Diz que um dos grandes erros da sua vida foi ter mimado demais seu filho, Walter Kyle, um sujeito despreparado, um playboyzinho.
Mobley diz que não gostaria de ser nada diferente do que já é.
Incrível: um jornalista que não tem ambição de virar chefão!
Incrível, fantástico, breaking news, manchete: o jornalista Edward Mobley diz ao patrão que de fato não é ambicioso, não quer virar chefão, quer continuar sendo o que é – um âncora de jornal de TV (numa época em que, creio eu, não havia âncoras de jornais de TV), às vezes repórter, tendo tempo para, de vez em quando, escrever um livro.
Um caso raríssimo na história do jornalismo mundial, na história das empresas, sejam de que área forem: alguém que quer ficar onde estar, não quer ser chefão!
Mobley está para entrar ao vivo na TV daí a poucos minutos. E, no meio da conversa dele com o patrão que o queria como seu sucessor, Amos Kyne morre de um ataque cardíaco.
Ah, que maravilhosa morte, a de um ataque cardíaco fatal em meio a uma discussão de trabalho, sem passar pela série de humilhações a que as pessoas são submetidas nos hospitais antes de finalmente morrer!
O herdeiro cria uma guerra entre os chefes de área
Um conglomerado de imprensa cujo criador e dono se chama Kyle, e que usa como logotipo a letra K. Kyle, quatro letras, começando com um K. Alguma referência a Kane, o nome fictício que Orson Welles inventou para retratar William Randolph Hearst (1863-1951), o primeiro grande magnata da imprensa americana?
Sei lá. Mas de uma coisa eu sei: um dos maiores problemas do capitalismo, da existência de conglomerados, empresas familiares, é o fato de que as grandes empresas familiares são familiares, e então, quando morre o dono, quem assume é o filho mais velho do dono. Não assume quem está mais preparado; assume o filho mais velho do dono – seja ele bom de serviço ou não.
No caso específico, há um filho só, Walter Kyne (interpretado por Vincent Price, tão maléfico quanto muitos de seus personagens de filmes de terror).
Walter Kyne, que o próprio pai considerava um imprestável, e que não tem a menor idéia do que seja jornalismo, assume o conglomerado jornalístico com uma idéia fixa: vai criar o cargo de diretor-executivo da corporação – e com isso fazer com que os três chefes briguem entre si, disputem, guerreiem, para ver qual deles será escolhido.
O desafio maior lançado por Walter Kyne é acompanhar o caso do assassino do batom, como o jornal passou a chamar o serial killer. (Após matar Judith Felton, o criminoso escreveu na parede, com o batom da vítima: “Ask mother” – pergunte à mãe.)
Fica claro que quem conseguir mais dicas da polícia, quem ao final conseguir primeiro identificar o serial killer será o diretor-executivo da corporação.
Só se faz jornalismo com trabalho de equipe, de grupo
Concorrência – o princípio fundamental do capitalismo. Disputa, guerra, uso de todos os malefícios possíveis, para determinar quem ganha o emprego mais bem pago.
Concorrência – o princípio fundamental do capitalismo. Bom, extraordinário, se fizer bem ao consumidor. Mas que também pode virar a arma mortal contra qualquer desejo de colaboração, cooperação, solidariedade, trabalho em grupo, trabalho em conjunto.
A questão é que não se faz jornalismo sem colaboração, cooperação, solidariedade, trabalho em grupo, trabalho em conjunto.
Fazer jornalismo, assim como fazer filmes, ou jogar futebol, é fundamentalmente trabalho de equipe, de grupo, de gente que trabalha junto.
E aqui me permito uma rápida digressão.
Comecei no jornalismo, em meio a um time absolutamente brilhante, com um redator-chefe que tinha exatamente a mesma crença de Walter Kyne, uma crença, aliás, antiga demais, maquiavélica: dividir para governar. O redator-chefe do então glorioso Jornal da Tarde fazia tudo possível e imaginável para incentivar a cizânia, a competição, a disputa, a guerra entre seus editores. Todo o seu reinado (o apelido dele era A Rainha) se baseava na disseminação da cizânia, da inflamação dos egos, da disputa.
Os reis, as rainhas, eles caem, e depois da Rainha o jornal teve um redator-chefe, Fernando Mitre, que preferia a solidariedade à cizânia. Mais tarde, tive a raríssima experiência de participar de uma redação – dirigida por Regina Lemos – democrática, em que até as chamadas de capa da revista eram decididas em reuniões abertas, em que ganhava a melhor idéia, fosse de quem fosse, do redator-chefe ou da foquinha mais inexperiente.
Pode parecer óbvio demais, e de fato é, mas falo por experiência própria: é muito melhor trabalhar em grupo, em equipe, em conjunto, do que num ambiente de competição alucinada.
Vale a pena sacrificar nossas crenças por um salário maior?
Fritz Lang fez um filme que tem um assassino serial, suspense e uma atmosfera noir, pesada, ofegante, opressivamente noir. Duas das personagens femininas do filme são o que mais noir pode haver. Dorothy (a personagem da belíssima Rhonda Fleming), a mulher do herdeiro Walter Kyne, é uma serpente letal, uma serpente mais venenosa do que as que Cleópatra liberaria para morrer. Pior que ela, só Mildred (interpretada por Ida Lupino, que, além de linda e ótima atriz, foi também uma das primeiras realizadoras mulheres do cinema americano), colunista do jornal, a ambição em pessoa, o horror em forma de mulher.
Mas, sobretudo, o filme expõe uma discussão importante sobre jornalismo – e uma discussão importante sobre a moral de cada um de nós, seja em que tipo de atividade estejamos: vale a pena prejudicar os outros em nome da ascensão profissional? Vale a pena sacrificar as nossas crenças por um salário maior?
Não é pouca coisa.
Como era bela Ida Lupino!
Dois detalhinhos. Ida Lupino (eu não me lembrava como era bela essa mulher) estava casada, na época, com o ator Howard Duff, que interpreta o tenente da polícia Burt Kaufman, amigo de infância do jornalista Edward Mobley. Não há sequer uma tomada em que apareçam juntos Ida Lupino e Howard Duff.
Dana Andrews e Vincent Price haviam trabalhado juntos 12 anos antes, em Laura, o maravilhoso clássico de Otto Preminger. Dana Andrews fazia o principal papel masculino do filme, e Vincent Price, um papel secundário, exatamente como neste filme de 1956. O interessante é que a cara de Dana Andrews é a mesma nos dois filmes, apesar da distância de 12 anos. Já Vincent Price parecia um garoto em Laura, e aqui demonstra bem que havia se passado mais de uma década.
“Uma crítica mordaz do arrivismo na vida profissional americana”
No Silêncio de uma Cidade foi o penúltimo filme feito por Fritz Lang nos Estados Unidos. Naquele mesmo ano de 1956 faria ainda Suplício de uma Alma/Beyond a Reasonable Doubt, também com Dana Andrews no papel principal, e em seguida voltaria para a Europa. Em 1959, lançaria seu díptico indiano, O Tigre de Bengala e O Sepulcro Indiano.
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 para o filme: “Elenco veterano e tramas entrelaçadas mantêm o interesse na história de repórteres e policiais perseguindo um assassino furioso.”
O Guide des Films de Jean Tulard, que não dá cotação para todos os filmes que comenta, e que é extremamente avaro com suas estrelas, dá três ao filme de Lang, que na França se chamou La Cinquième Victime.
“Uma virulenta sátira aos meios de comunicação, ao ponto de o assassino acabar parecendo mais simpático que os arrivistas lançados à sua captura. Brilhante interpretação e maestria na direção: todo o início que nos apresenta o assassino, um entregador que bloqueia as portas de suas vítimas para depois voltar à casa quando elas se sentem seguras e deixa a inscrição ‘Pergunte à mãe’, é fascinante, jogando com nosso conhecimento do sádico antes mesmo que a procura dos jornalistas comece.”
Acho que aí houve um certo exagero: o assassino não fica parecendo simpático coisa alguma. Mas que as interpretações são brilhantes e há maestria na direção, lá isso é verdade.
No seu livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir, o estudioso carioca A.C. Gomes de Mattos escreve: “A parte policial da intriga serve apenas de contraponto para o verdadeiro tema do filme, a luta impiedosa entre os candidatos a um cargo de alta projeção em uma empresa jornalística. Lang não se interessa pelo drama psicológico ou ações criminosas do doente mental, mas sim pelos métodos inescrupulosos utilizados pelos concorrentes, fazendo uma crítica mordaz do arrivismo na vida profissional americana. Retrata seus personagens com muito realismo. Eles não são pessoas imaculadas e sim criaturas pouco conscienciosas, a partir do herdeiro do jornal, que estimula a rivalidade entre os empregados.”
E depois: “O estilo do diretor é seco, sem nenhuma preocupação com o efeito plástico. Somente na cena do primeiro assassinato e quando o criminoso assiste ao discurso de Mobley na televisão, percebemos o emprego do claro-escuro expressionista.”
É isso aí. Um belo filme do mestre Fritz Lang.
Anotação em dezembro de 2012
No Silêncio de uma Cidade/While the City Sleeps
De Fritz Lang, EUA, 1956.
Com Dana Andrews (Edward Mobley), George Sanders (Mark Loving), Thomas Mitchell (John Day Griffith), James Craig (Harry Kritzer), Rhonda Fleming (Dorothy Kyne), Vincent Price (Walter Kyne), Sally Forrest (Nancy Liggett), Ida Lupino (Mildred Donner), Howard Duff (tenente Burt Kaufman), John Barrymore Jr. (Robert Manners), Robert Warwick (Amos Kyne), Ralph Peters (Gerald Meade), Sandy White (Judith Felton)
Roteiro Casey Robinson
Baseado na novela The Bloody Spur, de Charles Einstein
Fotografia Ernest Laszlo
Música Herschel Burke Gilbert
Montagem Gene Fowler Jr.
Produção RKO Radio Pictures. DVD Versátil.
P&B, 100 min
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Título em Portugal: Cidade nas Trevas. Na França: La Cinquième Victime.
Opa, taí um ótimo texto sobre um ótimo filme. E o Vincent Price, ah, o Vincent Price…