O Bígamo / The Bigamist

(Disponível no YouTube em 4/2023.)

O Bígamo (1953) é um filme de e com Ida Lupino, e só por isso já seria uma obra para se respeitar. E tem o respeito que merece.

O filme – diz The Encyclopedia of Film Noir, de Ray Hagen e Laura Wagner, “não é uma representação de um tema potencialmente sórdido, mas uma história muito humana de um homem enredado entre duas mulheres”.

“Este filme brilhante é uma das várias inesperadas obras-primas dirigidas por um curtíssimo período por Ida Lupino”, diz Chris Fujiwara no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, editado por Steven Jay Schneider. “Edmond O’Brien interpreta Harry Graham, um vendedor de geladeiras que graças a suas andanças desastradas pela vida, acaba com duas esposas, Eve (Joan Fontaine) e Phyllis (Lupino), sendo que uma não sabe da existência da outra. A direção subestimada de Lupino envolve os personagens em uma piedade discreta e impotente.”

Não acho que Ida Lupino seja subestimada – mas a afirmação de que a direção “envolve os personagens em uma piedade discreta e impotente” me parece acertadíssima, perfeita.

O texto do livro 1001 Filmes… prossegue:

“O tipo de drama presente em O Bígamo tem sua origem na tristeza de três pessoas: a solidão de Harry; o pesar de Eve pela morte de seu pai e sua incapacidade de conceber uma criança; e a relutância de Phyllis em exigir que Harry a assuma, por não querer tornar um fardo para ele. O filme inteiro é uma cristalização dessa tristeza coletiva representada pela ambientação (São Francisco e Los Angeles são os cenários da dupla vida de Harry), pelo comportamento dos personagens (a passividade entorpecida e aflitiva de Harry; o isolamento caprichoso de Phyllis; o esforço desesperado e patético de Eve em ser ao mesmo tempo a esposa perfeita e a parceira profissional perfeita), e, acima de tudo, pelos olhares trocados ou parcialmente evitados entre as pessoas. Na devastadora sequência final (…), a orquestração desses olhares alcança combinação de ambigüidade e intensidade que traz à mente tanto Carl Dreyer quanto Nicholas Ray.”

Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4: “Um olhar com compaixão sobre um homem solitário que se vê casado com (e apaixonado por) duas mulheres diferentes”, diz Leonard Maltin. “Atuações extremamente boas; um dos melhores filmes dirigidos por Lupino, e a única vez que ela própria se dirigiu.”

Pessoas comuns, gente como a gente

No original, Maltin usa “compassionate look” – e creio que essa é a mais perfeita definição do que é o filme.

The Bigamist tem profunda simpatia por seus personagens. Gosta deles, mesmo quando eles erram, fazem algo que não deveria ser feito.

Fala de pessoas comuns, gente “normal” (se é que alguém pode ser considerado normal, por isso as aspas). Gente como a gente. Já escrevi aqui trocentas vezes que são raros, hoje em dia estão cada vez mais raros, os filmes que falam de gente como a gente – as telas ficam cheias de super-homens, heróis, seres de terras de realidades paralelas, ou então bandidos, assassinos, serial killers.

The Bigamist vai fundo, tão fundo quanto é possível ir, nisso de ter personagens simples, comuns, iguais às pessoas que vivem no nosso prédio, nossa rua, nosso bairro.

O protagonista, Harry Graham, não é um artista especialmente dotado, nem um multimilionário, nem um médico ou advogado dedicado apenas às causas nobres. É apenas um vendedor de aparelhos elétricos, geladeiras, fornos. E vem na pele e no corpo gorducho de um bom ator, mas que não tem absolutamente nada de galã, Edmond O’Brien.

Exatamente da mesma maneira, Eve Graham, sua mulher, e Phyllis Martin, a que vira sua segunda mulher, são pessoas sem qualquer grande brilho especial. Pessoas comuns, “normais”. OK, tá bom, são mulheres muito belas – Joan Fontaine faz Eve, Ida Lupino faz Phyllis. Mas, tirando o fato de que são muito belas, são mulheres comuns, gente como a gente.

Há aí uma grande ironia, uma imensa coincidência, um fato absolutamente inusitado, sensacional, extraordinário, Mas não está na trama do filme, e sim nessa trama de roteirista que não assina seus scripts, a vida real: o produtor e autor do roteiro de The Bigamist, Collin Young, havia sido casado com Ida Lupino, e, com ela, fundara uma produtora, a Filmakers. Durante as filmagens, ele estava casado com Joan Fontaine.

Pode?

Uai, pode. Deus – ou o destino, para quem não acredita em Deus – deixa no chinelo gênios da criação de tramas, como Janete Clair. Gilberto Braga, Gloria Perez… Volto a esse ponto mais adiante, mas agora prossigo dando opiniões de quem entende.

O espectador simpatiza com aquele homem grande mas fraco

“Em The Bigamist, um vendedor fraco, bem-intencionado, acaba se vendo casado com duas mulheres em cidades diferentes”, diz na página sobre Ida Lupino o livro 501 Movie Directors, editado por Steven Jay Schneider. E ele acerta em cheio nesta avaliação: “Lupino, que interpreta uma das esposas, faz a audiência sentir pena dele, sem deixar de lado os danos causados por sua fraude”.

Eis aí outro bom resumo da essência do filme. É exatamente isso: a realizadora consegue fazer com que o espectador simpatize com aquele homem grande no volume físico mas um tanto fraco na personalidade. O filme não fica condenando esse pobre Harry Graham. Muito ao contrário: leva o espectador a simpatizar com ele, ao mesmo tempo em que a gente, é claro, tem pena de Eve e de Phyllis – e dele também.

Eis o que escreveu o crítico Howard Thompson, do New York Times, no dia 26 de dezembro de 1953, logo após o lançamento do filme:

“Filmakers, Inc, a organização independente dirigida por Ida Lupino e Collier Young, já demonstrou uma propensão por temas sombrios, heterodoxos, como filhos ilegítimos, estupro, crueldade materna e vadiagem patológica, com uma média de sucesso estimável. The Bigamist, com Edmond O’Brien, Joan Fontaine e Miss Lupino, que dirigiu, teve uma estréia paradoxalmente natalina no (cine) Astor, examinando o tema que é possivelmente o mais delicado, na melhor produção da Filmakers até agora.

“O filme é notável por dois fatores. Primeiramente pela percepção singular e pela solidez, desde o roteiro de Mr. Young até o menos importante ator. Ele também demonstra, se era necessária nova prova, que um orçamento baixo em mãos adultas pode suplantar a tonelagem comercial mais espetacular.”

O crítico do New York Times faz amplos elogios às atuações. Diz que Edmond O’Brien “mais uma vez apresentar um dos talentos mais autênticos e discretos de Hollywood”, “Como a esposa voltada para os negócios, Miss Fontaine transmite uma bela, suave sensibilidade. Edmund Gwenn, como o investigador, Kenneth Tobey, Jane Darwell e o resto do pequeno elenco estão igualmente críveis. Mas The Bigamist pertence a Miss Lupino, e em mais de uma maneira. Essa diretora frágil guia a ação com tamanha tensão crescente, muda compaixão e vivacidade extrema para os detalhes comportamentais que o espectador médio pode sentir que ele está escutando casualmente um excelente diálogo de pessoas reais. E como a garçonete decente, melancólica, a Outra Esposa, sua performance destaca brilhantemente o texto real de sua foto, a saber, um ponto insidioso sem volta para os solitários.”

Que beleza de crítica!

O agente de adoção investiga os pretendentes

Eu ainda não havia falado de Edmund Gwenn, que o crítico do New York Times cita como sendo o investigador. Edmund Gwenn já era então um veterano; aos 76 anos, tinha já uns 70 títulos na filmografia, inclusive o espetacular sucesso Miracle on 34th Street, no Brasil De Ilusão Também se Vive, em que ele faz umas das caracterizações mais famosas de Papai Noel da História do cinema.

Seu nome aparece nos créditos iniciais entre os de Joan Fontaine e Ida Lupino; os três e, claro, Edmond O’Brien, o do papel-titulo, são os quatro atores cujos nomes aparecem antes do título nos créditos.  O personagem que ele interpreta, Mr. Jordan – assim, sempre tratado como senhor, e prenome jamais pronunciado –, é importantíssimo na trama, quase tão importante quanto o bígamo e suas duas mulheres.

Na primeira sequência do filme, o casal Harry e Eve Graham está no escritório de Mr. Jordan, pleiteando a adoção de uma criança, menino ou menina, entre 4 e 5 anos de idade. Tinham feito exames e constatado que Eve era infértil; ela queria demais ter um filho, e então haviam decidido adotar. Mr. Jordan é um agente de adoção – pelo que se depreende, no Estado da Califórnia são nomeados diversos agentes de adoção, cujo trabalho é receber os pedidos de casais e fazer uma investigação sobre eles, para ver se preenchem os requisitos necessários para obter a guarda de uma criança órfã ou abandonada.

Mr. Jordan é um agente de adoção extremamente cuidadoso, meticuloso, como o espectador verá logo em seguida – mas já naquela primeira sequência o roteiro escrito pelo ex-marido de Ida Lupino e então marido de Joan Fontaine mostra claramente para o espectador do que vai tratar a história. Mr. Jordan pede que cada um do casal assine mais um papel, e ele explica: é uma autorização para que seja feita uma investigação a respeito de sua vida.

Ao ouvir isso, Harry Graham leva um susto. A câmara mostra o rosto dele, a indecisão, a mão direita com a caneta que pára no ar e se recusa a se aproximar do papel. E mostra o rosto de Mr. Jordan, que notou, que claramente percebeu que o homem demonstrava ter algo a esconder.

O casal Graham vive em San Francisco. Harry está sempre viajando para Los Angeles – a grande metrópole é a área de atuação dele.

Mr. Jordan é tão cuidadoso, meticuloso, que vai a Los Angeles, numa semana em que se sabe que Harry está lá. E rapidamente descobre que em Los Angeles ele tem uma segunda família – mulher, Phyllis, e um filhinho de oito meses.

O agente de adoção fica absolutamente chocado – e o candidato a pai adotivo então conta para ele sua história, tenta se explicar, se justificar. O espectador verá, assim, em longos flashbacks, como foi que Phyllis entrou na vida dele.

Frente a frente, a ex e a então esposa do roteirista

Os dois se conheceram em um ônibus turístico, que passeia pelas ruas de Beverly Hills enquanto o motorista vai apontando para as casas em que vivem as personalidades do mundo do cinema. Phyllis e Harry estão sentados lado a lado, na primeira fila de passageiros, cada um de um lado do corredor. Phyllis pega um cigarro do maço – meu Deus, como o mundo mudou! -, e Harry corre para oferecer seu isqueiro a ela.

O tour pela região em que moram os astros e estrelas de Hollywood é uma forma, creio, de dar um tom leve em algum momento da narrativa que, afinal, é pesada, densa, triste. O filme tem uns dois ou três momentos assim, em que o roteiro tenta fazer uma pausa no drama para o espectador respirar um pouco.

A sequência do ônibus tem inside jokes, piadas internas: o motorista apresenta a casa em que mora o ator Edmund Gwenn – exatamente o ator que faz Mr. Jordan!

– Atrás daquela grande cerca ali, mora um homenzinho que foi o Papai Noel para o mundo inteiro – Edmund Gwenn”, diz o motorista. Em outros momentos Gwenn serve de pretexto para outras piadinhas: após visitarem o escritório do agente de adoção, por exemplo, Eve comenta com o marido que Mr. Jordan se parece com Papai Noel…

Entre as casas apontadas pelo motorista do ônibus estão as da colunista Louella Parsons, de James Stewart – com menção ao coelho Harvey, do filme Meu Amigo Harvey, de 1950, e de Jack Benin.

Mas, sem dúvida alguma, o momento em que há a mais fantástica interação entre a trama fictícia e a vida é a única sequência em que as duas mulheres de Harry, Eve e Phyllis, ficam frente a frente. Joan Fontaine e Ida Lupino, frente a frente – duas atrizes lindas, no auge da fama, a ex e a então esposa do mesmo homem.

Collier Young foi o segundo dos três marido de Ida Lupino; foram casados no papel entre agosto de 1948 e outubro de 1951. Apenas um dia depois que saiu o divórcio, ela se casou pela terceira vez, com o diretor e produtor Howard Duff. Foi com esse último que a atriz, roteirista e diretora teve sua única filha, Bridget Duff.

Para Joan Fontaine, Collier Young foi o terceiro dos quatro maridos. Estiveram casados no papel entre novembro de 1952 e janeiro de 1961.

Se fosse uma amante, estaria tudo bem…

É interessante como são extremamente relativas algumas questões – a bigamia, por exemplo. Para boa parte do mundo ocidental, é um crime, passível de prisão – enquanto, no Oriente Médio, entre os muçulmanos, por exemplo, a poligamia é prática corriqueira, normal, usual.

E, nas próprias sociedades que consideram a bigamia um crime, um homem – ou uma mulher – ter amante é tido como coisa normal, aceitável. Parte do jogo.

Depois de ouvir a história do bígamo, Mr. Jordan diz uma frase sensacional:

– “Não consigo compreender o que sinto em relação a você. Eu desprezo você, mas tenho dó de você. Não tenho vontade sequer de apertar sua mão – e no entanto quase te desejo boa sorte.”

Há uma fala ainda mais fascinante do que essa. Trata especificamente disso, de como as coisas são relativas:

– “Há nesse caso uma ironia peculiar. Se Harry Graham tivesse tornado Pbyllis Martin sua amante, muitas pessoas teriam dado uma piscadela e virado a cabeça. Mas, porque ele deu a ela e ao filho que ela teve o seu nome e um lugar honrado na comunidade, ele deve ser destruído.”

Ida Lupino é uma atriz e uma diretora admirável.

Anotação em abril de 2023

O Bígamo/The Bigamist

De Ida Lupino, EUA, 1953

Com Edmond O’Brien (Harry Graham),

Joan Fontaine (Eve Graham).

Ida Lupino (Phyllis Martin),

e Edmund Gwenn (Mr. Jordan, o oficial da adoção de crianças), Jane Darwell (Mrs. Connelly), Kenneth Tobey (Tom Morgan), John Maxwell (o juiz), Peggy Maley (a telefonista), Mack Williams (o promotor), James Todd (Mr. Forbes, o cliente), James Young (executivo), Lilian Fontaine (Miss Higgins), John Brown (Dr. Wallace), Matt Dennis (ele mesmo), Jerry Housner (Roy), Kem Dibbs (motorista), Ken Drake (funcionário do tribunal)

Roteiro Collier Young

Baseado em história de Larry Marcus e Lou Schor

Fotografia George E. Diskant

Música Leith Stevens

Canção original “It Wasn’t the Stars That Thrilled Me”, de Matt Dennis-Dave Gillam, cantada por Matt Dennis

Montagem Stanford Tischler

Direção de arte James W. Sullivan

Produção Collier Young, The Filmakers.

P&B, 80 min (1h20)

***

Título na França: “Bigamie”. Em Portugal: “O Bígamo”.

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