O Mundo é Culpado / Outrage

Nota: ★★★☆

(Disponível no YouTube em 9/2023.)

O estupro é um dos crimes mais hediondos que pode haver, ao lado apenas do abuso sexual de criança ou dos seguidos espancamentos da esposa pelo marido. Mas claro que não é o caso de fazer uma métrica de qual é o crime mais hediondo que a humanidade foi capaz de inventar. A verdade é esta: o estupro é um dos crimes mais hediondos que pode haver – e é, muito provavelmente, o único que faz a vítima se envergonhar de ter sido vítima.

Em 1950, longos 73 anos atrás, Ida Lupino teve a ousadia, a coragem de fazer um filme sobre um estupro que mostra as duas coisas: o crime bárbaro, horroroso, hediondo – e a imensa vergonha que infelicita, inferniza, torna insuportável a vida da mulher que foi vítima do crime.

Outrage, no Brasil O Mundo é Culpado, foi o primeiro filme americano a falar de estupro – mas a ousadia da diretora vinha em uma época em que não era permitido que se pronunciassem no cinema as expressões rape, rapist, sex maniac, sex fiend – estupro, estuprador, maníaco sexual, viciado em sexo. O Production Code office – a instituição que zelava pelo cumprimento do Código Hays, o código de autocensura imposto aos estúdios de Hollywood e aceito por eles – rejeitou em janeiro de 1950 o roteiro assinado por Collier Young, Malvin Wald e Ida Lupino, por causa dessas palavras.

Elas foram retiradas do roteiro, substituídas por ataque criminoso e assalto. No dia 8 de fevereiro – especifica o IMDb – o Production Code office aprovou a nova versão. No dia 20 as filmagens começaram.

Outrage é um marco na História do cinema. Um milestone, como perfeitamente escreveu um leitor do IMDb, essa Wikipedia dos filmes, chamado John Kyle, em 2004. Aliás, a página de comentários dos leitores do IMDb sobre o filme traz vários, vários, vários belos textos, realçando a importância do filme por seu pioneirismo, sua coragem absoluta de abordar pela primeira vez o assunto que até então era tabu.

É uma maravilha ver que o trabalho dessa mulher fenomenal que foi Ida Lupino seja bem reconhecido hoje.

Na época do lançamento, 73 longos anos atrás, o filme já havia sido saudado como corajoso, pioneiro. Tinha mesmo que ser.

Um milestone. Um marco.

(A César o que é de César: quem, depois de ver o filme, resumiu, sintetizou com maestria essa verdade de que estupro é o único crime que faz a vítima se envergonhar de ter sido vítima não fui eu – foi a Mary.)

Pioneira numa indústria de homens – e corajosa

Ida Lupino começou a carreira na sua Inglaterra natal, mas em 1933 assinou seu primeiro contrato em Hollywood, com a Paramount. Em 1947, com o então marido Collier Young, fundou a companhia produtora The Filmmakers Inc. O primeiro filme da empresa, de 1949, foi co-dirigido por ela e Elmer Clifton, e já demonstrava que a mulher, além de ser uma pioneira como roteirista, diretora e produtora em uma indústria dominada pelos homens, vinha para falar sério sobre temas controvertidos, nada convencionais: Not Wanted teve no Brasil o título de Mãe Solteira.

The Filmakers produziu 12 longa-metragens no total, até 1955, quando cessou as operações – àquela altura, Ida e Collier Young já haviam se separado, e ela já estava em seu terceiro casamento, com o ator Howard Duff. Dos 12 títulos, a própria Ida Lupino dirigiu ou co-dirigiu seis. O último deles foi O Bígamo/The Bigamist (1953), em que também atuou como atriz e escreveu o roteiro – e o título, assim como o título brasileiro Mãe Solteira, já escancara qual é o tema.

Filho ilegítimo, bigamia, estupro. Ida Lupino de fato era um vulcão, uma força da natureza, uma artista “extremamente talentosa, intensa”, como sintetizou a Baseline.

Aos oito minutos, a moça é seguida nas ruas

Outrage é um roteiro original, ou seja, os autores do roteiro são também os autores da história, criada diretamente para o filme.

A história se passa em uma cidade de novo fictício, Capitol City – a melhor maneira de dizer que aqueles fatos poderiam acontecer em qualquer cidade do país.

O começo é calmo, suave, tranquilo, rotineiro – absolutamente rotineiro. Ann Walton (o papel de Mala Powers, apenas 19 anos em 1950, quando o filme foi lançado) é uma moça absolutamente comum, “normal”, gente como a gente, igual a milhões de outras. (As aspas são porque não sei se alguém pode, a rigor, a rigor, ser considerado normal…) Classe média, ensino médio concluído, não se dedicou a tentar uma faculdade, ao contrário do que desejaria o pai, um professor de Matemática. A mãe é uma simpatia, como em geral são as mães dos filmes de Hollywood dos anos 1930 a 1950. (O pai é o papel de Raymond Bond; a mãe, de Lillian Hamilton.)

Ann trabalha como contadora em uma firma grande, com uma dezena de pessoas naquela seção.

E namora um rapaz simpático, apaixonado por ela, Jim Owens (o papel de Robert Clarke). Exatamente como Ann, Jim é um rapaz absolutamente comum, “normal”, gente como a gente, igual a milhões de outros.

Ele recebe um aumento de salário no trabalho, e propõe casamento. O pai da moça acha que eles são jovens demais, a mãe acha uma maravilha.

Uma ocasião em que fica na firma até mais tarde, e sai de lá já de noite, Ann começa a ser seguida por um homem pelas ruas desertas.

Estamos com oito minutos do filme que dura 75.

Era apenas o terceiro filme que Ida Lupino dirigia, depois daquele Not Wanted de estréia e de Quem Ama Não Teme/Never Fear, um drama sobre uma jovem dançarina que contrai poliomielite – mas, se ainda não tinha muita experiência, talento não faltava. A sequência em que a jovem Ann Walton é perseguida por um homem nas ruas desertas da cidade à noite é impressionante – capaz de deixar aflito, nervoso em sua poltrona este velho cinéfilo que já viu tanta coisa na vida, inclusive dezenas de episódios de Law & Order: Special Victims Unit, sobre a unidade da polícia de Nova York especializada em crimes sexuais.

Como imaginar o que teriam sentido as audiências em 1950, quando aquilo jamais havia sido mostrado no cinema, quando as palavras estupro e estuprador eram impronunciáveis?

O filme mostra com absoluta clareza, e de forma dura, que mexe muito com os sentimentos do espectador, toda a agonia que vem depois do trauma do estupro.

A sequência em que Ann é levada pelo detetive Hendrix (Hal March) para observar alguns suspeitos e dizer se reconhece o homem que a atacou é fortíssima. Impressionante.

Uma artista de imensa importância

Eu nunca tinha visto este O Mundo é Culpado/Outrage – mas é a tal verdade absoluta, antes tarde do que nunca. Tenho procurado ver os filmes dessa mulher admirável, tanto os que ela estrela quanto os que ela dirige. Felizmente, muitos deles está à disposição no YouTube.

Minha sensação, ao ver Outrage pela primeira vez agora, foi de que não chega a ser um grande filme, uma bela obra de arte. Tem lá defeitinhos, o roteiro às vezes dá umas tropeçadinhas, algumas situações parecem simplificadas demais. Mas tem grandes qualidades – e sua importância histórica é imensa.

Não consigo me impedir de repetir aqui uma coletânea de frases sobre Ida Lupino que usei depois de ver O Bígamo. Lá vai.

Do livro 501 Movie Stars, editado por Steven Jay Schneider: “Ida Lupino não é muito conhecida pelas gerações mais novas, e isso é trágico e inexplicável. Lupino era não apenas uma das atrizes mais fortes dos anos 1940 e 1950, capaz de se igualar em dureza e força aos astros com que contracenava, Humphrey Bogart, Edward G. Robinson, Richard Widmark e Robert Ryan, como também uma diretora pioneira, criando thrillers e dramas com significância social que eram tão intensos quanto suas atuações.”

Do livro Actors & Actresses, editado por James Vinson: “Muitas vezes faltava a ele controle, e tendia ao overacting. Ao mesmo tempo, possuía um admirável desprezo pela proteção de sua ‘imagem’; estava sempre disposta a se arriscar, mesmo se fosse para flertar com a perda da simpatia da audiência.”

Do livro 501 Movie Directors, editado por Steven Jay Schneider: “Durante o início dos anos 1950, Ida Lupino era virtualmente a única diretora trabalhando no cinemão de Hollywood. Embora sua produção tenha sido pequena – sete filmes (e mais três dezenas de séries e/ou filmes para a TV) –, seu profissionalismo direto serviu como inspiração para outras mulheres.”

Do Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho: “Como atriz, Ida é injustamente esquecida mas era do calibre de uma Bette Davis, tão forte e sensível quanto uma Barbara Stanwyck. Mas, além de ter sido praticamente a única estrela da Era de Ouro que soube passar para a direção (…), Ida quebrou tabus e ainda por cima virou também produtora independente, procurou fazer filmes com temas anti-convencionais.”

Mulher porreta.

E, como se ainda fosse preciso, lindérrima.

“Merece um A por enfrentar um tema à época sensível”

Outrage foi uma tentativa intrépida, parcialmente bem sucedida, de tratar dos efeitos psicológicos do estupro”, diz o verbete sobre o filme no livro The RKO Story. (Os filmes da companhia produtora The Filmakers eram distribuídos pela RKO Radio Pictures.) “Mala Powers era a vítima, uma jovem perfeitamente feliz que fica tão destruída pelo ataque sem sentido que foge de casa e de seu noivo. Sob outro nome e com a ajuda de um religioso dedicado, ela se esforça para traçar uma nova vida. Mas o medo continua a assombrá-la, até que há um momento em que ela acredita que será vitimizada novamente. Dados esses fatos crus, é impossível não simpatizar com Miss Powers, mas os roteiristas Collier Young, Malvin Wald e Ida Lupino empilharam tantos floreiros turbulentos que parte do impacto de sua denúncia deste terrível fenômeno social sai pelo ralo. Miss Lupino dirigiu, Young produziu e Wald foi o produtor associado para a companhia deles, The Filmakers, que co-patrocinou o filme com a RKO.”

Leonard Maltin deu a Outrage 2.5 estrelas em 4: “A jovem inocente (Mala) Powers é sexualmente molestada, e depois ainda vitimizada pelos vizinhos fofoqueiros, de mentes limitadas. O otimismo adocicado do roteiro – especificamente o relacionado às ações de um simpático religioso – é conveniente demais, mas Lupino (que também é co-roteirista) merece um A pelo esforço de enfrentar um tema à época sensível.”

Acho que Maltin exagerou ao dizer que os vizinhos são “gossipy” e “narrow-minded”. Na minha opinião, mostra-se, sim, que os vizinhos comentam, que os colegas de trabalho de Ann comentam – mas o que o filme mais realça é que Ann se sente culpada, sente que todos estão falando sobre ela o tempo todo. Na sua dor, na sua angústia, ela exagera as reações das pessoas ao redor dela, e tudo fica absolutamente insuportável.

Acho também que ele pegou pesado demais ao classificar o roteiro como tendo um “sugary optimism”. Sim, o personagem do religioso Bruce Ferguson (o papel de Tod Andrews) é um tanto perfeito demais, bondoso demais – mas eu não diria que o roteiro padece de um “otimismo adocicado” de forma alguma…

Outrage é um marco. Um milestone.

Anotação em setembro de 2023        

O Mundo é Culpado/Outrage

De Ida Lupino, EUA, 1950

Com Mala Powers (Ann Walton),

e Tod Andrews (Reverendo Bruce Ferguson). Robert Clarke (Jim Owens, o namorado de Ann), Raymond Bond (Eric Walton, o pai de Ann), Lillian Hamilton (Mrs. Walton, a mãe de Ann), Rita Lupino (Stella Carter), Hal March (sargento detetive Hendrix), Kenneth Patterson (Tom Harrison, o dono da fazenda), Angela Clarke (Madge Harrison, a mulher de Tom), Jerry Paris (Frank Marini, empregado de Tom), Roy Engel (xserife Charlie Hanlon), Lovyss Bradley (Mrs. Miller), Hamilton Camp (garoto engraxate), William Challee (Lee Wilkins), Tristram Coffin (juiz McKenzie), Jerry Hausner (Mr. Denker), Bernie Marcus (Dr. Hoffman), Joyce McCluskey (colega de Ann), Albert Mellen (o estrupador), John Morgan |(promotor Porter), Vic Perrin (Andy)

Argumento e roteiro Collier Young e Malvin Wald e Ida Lupino

Fotografia Archie Stout

Música Paul Sawtell

Montagem Harvey Manger

Direção de arte Harry Horner

Produção Collier Young, Malvin Wald, The Filmakers. Distribuição RKO Radio Pictures

P&B, 75 min (1h15)

***

Título em Portugal: ”Ultraje”. Na França: “Outrage”.

 

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