Um homem pede carona; o motorista e seu acompanhante, solícitos, gente boa, param o carro dão a carona. Algum tempo depois – tcham tcham tcham tcham! – o carona se revela um assassino, um psicopata. E seguem-se longos momentos de suspense, de pavor, de horror.
Quando Ida Lupino lançou The Hitch-Hiker, em 1953, havia duas grandes novidades aí. A própria história, a própria trama do filme – e o fato de ele ser dirigido por uma mulher.
Ida Lupino, bela mulher nascida em Londres em 1918 e radicada nos Estados Unidos a partir de 1934, foi uma pioneira em Hollywood. Depois de uma década e meia como atriz em dezenas de filmes, fazendo em vários deles mulheres fortes, independentes, num mundo dominado por homens interpretados por grandes atores como Humphrey Bogart, Ronald Colman, John Garfield e Edward G. Robinson, ela se lançou na direção em 1949.
Não estava contente com os papéis que eram oferecidos a ela, e decidiu criar sua própria produtora. O primeiro filme que ela própria produziria seria Not Wanted, com roteiro dela e de Paul Jarrico – sobre uma garota simples de uma cidade pequena seduzida e abandonada grávida por um pianista. O diretor Elmer Clifton teve um ataque cardíaco pouco depois do início das filmagens, e a própria Ida assumiu a tarefa. Seu nome, no entanto, não apareceu nos créditos como diretora – a realização foi creditada a Elmer Clifton.
No começo dos anos 50, era a única diretora mulher trabalhando em Hollywood.
Ainda hoje, quase 7 décadas e uma revolução feminista depois, são proporcionalmente bem poucas as realizadoras. Só para lembrar um exemplo: a primeira mulher a receber um Oscar de melhor direção foi Kathryn Bigelow, por Guerra ao Terror/The Hurt Locker, em 2010.
Um dado impressionante: no livro 501 Movie Directors, editado e organizado por Steven Jay Schneider, há apenas 34 mulheres. Impressionante mesmo: 467 homens, 34 mulheres.
Ida Lupino mostra a violência de forma crua
Para a maior parte das platéias da época, The Hitch-Hicker deve ter sido um filme de impacto, pela crueza com que são mostradas a figura e a ação do psicopata que pega carona com dois amigos que tinham saído de suas casas para passear, talvez pescar, no Sul da Califórnia – e de repente se tornam prisioneiros de um louco armado que pode matá-los a qualquer momento.
Para os críticos, os cinéfilos, certamente foi uma surpresa, um deleite, ver uma mulher – aquela bela atriz, que foi chamada de “a Jean Harlow inglesa” – assumir a direção, e apresentar esse história dura, crua, seca, sem qualquer sentimentalismo, sem qualquer pitada de romance, sem um minuto sequer em que a tensão diminui um pouco.
Se o filme parece hoje um tanto déjà-vu, recorrente, repetitivo, sem novidade, sem inovação, a culpa não é dele, de forma alguma – mas do fato de que, depois dele, aquela situação mostrada ali foi recriada em diversos outros filmes.
“Gente boa dá carona a homem no meio da estrada e vira refém de bandido” é hoje quase um subgênero, depois de tantos filmes como A Morte Pede Carona/The Hitcher (1986) e A Morte Pede Carona/The Hitcher (2007)
The Hitch-Hicker foi o quarto filme em que Ida Lupino apareceu como diretora nos créditos, mas a rigor foi seu sexto filme como realizadora. Além daquele Not Wanted de estréia, ela havia já participado da direção de Cinzas Que Queimam/On Dangerous Ground (1951), creditado apenas a Nicholas Ray.
E já demonstrava notável domínio da narrativa, do uso da câmara, da iluminação, para criar o clima da história que contava. Embora não tenha femme fatale (na verdade, não tem mulher alguma, em cena alguma), The Hitch-Hiker é noir puro, por causa do clima extremamente sombrio, duro, pesado, cru, da presença de um assassino que vinha de uma infância pobre, sem afeto, sem educação, e devido ao cuidadoso uso dos movimentos de câmara e dos efeitos do claro x escuro na composição das tomadas.
Uma abertura de grande impacto
O início do filme é impressionantemente bem feito, e tem impacto até hoje.
Abre com um letreiro sobre a imagem – imóvel – de um trecho de asfalto e as pernas de um homem ao lado dele. Obviamente, as pernas de um homem à beira de uma estrada, um hitchhiker, um carona.
O letreiro diz o seguinte: “Esta é a história real de um homem e uma arma e um carro. A arma pertencia ao homem. O carro poderia ter sido o seu – ou o daquele jovem casal ali na poltrona do outro lado do corredor. O que você verá nos próximos 70 minutos poderia ter acontecido com você. Porque os fatos são reais.”
Enquanto começam a rolar os créditos iniciais, com os nomes dos três atores principais – Edmond O’Brien, Frank Lovejoy e William Talman –, vemos aquela imagem inicial, agora se movendo. Em uns 90% da tela, asfalto. No canto direito, um homem visto de costas – mas não de corpo inteiro. Vemos um homem de costas dos ombros para baixo. Um plano americano, só que a partir dos pés, e não da cabeça.
O homem faz o sinal universal de pedido de carona; um carro pára a seu lado – um conversível, a capota arriada. A câmara se aproxima da parte de trás do carro, focaliza a placa, que é para o espectador gravar que o carro é do Estado de Illinois. O carro arranca, a câmara fica parada por um instante enquanto ele se distancia.
Os créditos continuam rolando – agora é noite, e a música (de Leith Stevens, nome hoje nada conhecido, mas que teve indicação a três Oscars de trilha sonora) indica que vem aí tragédia.
A câmara está parada, colocada num lugar baixo, perto do chão – o carro chega, entra no quadro de visão da câmara, freia. O pneu dianteiro direito ocupa praticamente toda a tela. A câmara se move suavemente para a esquerda, mostra que a porta do carona está sendo aberta. Os dois pés do carona passam a ser visíveis. Ouvimos um grito de mulher, e dois tiros.
Uma bolsa de mulher cai de dentro do carro no chão, e se abre. Um maço de cigarros e uma carteira saltam de dentro da bolsa. A mão do assassino se abaixa, mexe na bolsa, pega a carteira.
O homem começa a se afastar do carro, a câmara segue os seus pés: só vemos o chão e os pés do homem que se distancia do carro. A câmara dá uma parada, os pés desaparecem do quadro, vemos apenas o chão – e os dois últimos letreiros dos créditos iniciais: “Produced by Collier Young, Directed by Ida Lupino”.
Há um corte, mas a tomada seguinte começa exatamente no mesmo lugar em que terminou a anterior – o chão próximo ao carro. A luz de uma lanterna ilumina o chão. A câmara agora se movimenta, seguindo o facho de luz da lanterna, até a placa do carro, aquela placa que já havia sido mostrada antes. Depois a câmara anda novamente seguindo o facho de luz, que vai até a porta direita aberta do carro. Vemos a perna direita da mulher que estava sentada no banco dianteiro direito – a perna numa posição estranha, pavorosa. A câmara se vira um pouco para o alto, e vemos rapidamente os corpos da mulher e do marido.
Corta, e vemos um homem com a estrela de xerife, lanterna na mão, examinando aquela cena do crime.
A história se inspirou de fato em caso real
Todos esses primeiros momentos do filme são uma beleza, uma coisa para ser vista e revista, uma série de sequências para entrar em antologia, para ser mostrada nas faculdades de cinema. Mas, além da qualidade óbvia, do impacto da série de imagens, do precioso uso dos movimentos de câmara, há um aspecto aí de grande pioneirismo. É preciso ter isso em mente, é precio contextualizar. Dos anos 70 em diante, passou a ser a coisa mais natural do mundo haver ação enquanto vão rolando os créditos iniciais. Hoje em dia, já sequer é comum filme que tenha créditos iniciais. Mas, em 1953, isso simplesmente não acontecia. São raros, bem raros os filmes até os anos 50 em que há alguma ação ocorrendo durante os créditos iniciais.
Ida Lupino não era apenas impressionante por ser uma das primeiras mulheres a dirigir filmes. Seu talento era imenso.
O roteiro é dela com Collier Young, que foi também o produtor do filme. Os créditos dizem que Robert L. Joseph fez a adaptação, mas, estranhamente, não dizem o que ele adaptou.
Foi uma história criada por Geoffrey Homes; esse Geoffrey Homes, por sua vez, escreveu a história com base em um crime real acontecido no início daqueles anos 50, ali mesmo, na Califórnia – e isso explica aquele toque de “baseado em fatos reais” do prólogo do filme. Um sujeito chamado Billy Cook – conta o IMDb – matou uma família de cinco pessoas, pai, mãe, três filhos, e em seguida um caixeiro-viajante. Depois, sequestrou dois homens que estavam caçando, e os obrigou a atravessar a fronteira e viajar pelas estradas mexicanas.
No filme, o carona que matou aquele casal do início também comete um outro assassinato. Depois pega uma carona no carro de dois amigos que estavam passeando no fim de semana, levando material de pesca – e os obriga a entrar no México, e a rodar por centenas de quilômetros em estradas perdidas no território mexicano.
O assassino é interpretado por William Talman. Os dois amigos que passam a ser suas presas, sempre diante de seu revólver, temendo morrer a qualquer momento, são interpretados por Edmond O’Brien e Frank Lovejoy.
Nunca tinha visto o filme antes. Vi pela primeira vez agora, 65 anos depois que ele foi feito e lançado – e depois de tantos, tantos outros filmes sobre o mesmo tema. Achei que há pontos falhos, ilógicos, no roteiro. Nada muito grave, nada que de fato diminua a qualidade do filme. Apenas registro isso, por dever de ofício.
É um bom filme, interessante, rico. Dá vontade de ir atrás de mais obras dessa mulher fantasticamente pioneira.
Este é tido como o melhor filme da diretora
O livro 501 Movie Directors diz que Ida Lupino serviu de inspiração para que outras mulheres passassem a ser diretoras. Em vários dos filmes que dirigiu para o cinema (mais tarde ela passaria para a TV), abordou histórias de mulheres encurraladas pelos costumes sociais – como a mãe solteira de Not Wanted. “Como na maioria de seus filmes, a textura de documentário de orçamento pequeno é suavizada pela compaixão por seus personagens. A heroína do primeiro filme em que ela foi creditada como diretora, Never Fear (1949, no Brasil Quem Ama Não Teme), é uma dançarina que se torna aleijada por causa da pólio, enquanto Outrage (1950, no Brasil O Mundo é Culpado) trata com franqueza de estupro.”
Segundo o 501 Movie Directors, este The Hitch-Hiker é seu melhor filme.
Exatamente a mesma coisa é dita no Dicionário de Filmes – Os Diretores, de Jean Tulard. O verbete sobre ela é pequeno; transcrevo inteiro:
“Filha de atores de renome, notada por Alan Dwan, em 1933 ela vai tentar a sorte em Hollywood e torna-se uma das estrelas da Warner. Ambiciosa, escreveu e produziu em 1950 um filme notável, Not Wanted, interessando-se depois pela direção. Tinha uma predileção pelos melodramas de personagens femininos (estupro em O Mundo é o Culpado; exploração de uma jovem jogadora de tênis em Laços de Sangue, bigamia em O Bígamo). Seu melhor filme, O Mundo Odeia-me, apresentava um gângster aterrorizando dois automobilistas.”
Diacho: deve haver algum problema nessa tradução para o português, feita na edição brasileira do Dicionário de Jean Tulard, da L&PM. O assassino do filme não é um gângster – gângster pertence a uma gangue, um grupo; é um bandido do crime organizado. O personagem do filme é um bandido que age sozinho, não um gângster.
E, diacho de novo, automobilista é antes de mais nada, como diz meu Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, um “indivíduo que se dedica ao esporte do automobilismo”. Esses Roy Collins e Gilbert Bowen, os personagens de Edmond O’Brien e Frank Lovejoy, não eram automobilistas – eram apenas motoristas.
Agora, num ponto aí o texto em Português do Dicionário de Jean Tulard não errou: The Hitch-Hiker teve, no Brasil, o ridículo título de O Mundo Odeia-me. Para escolher essa pérola do mau gosto, os exibidores brasileiros se basearam num monólogo do assassino, Emmett Myers, em que ele se descreve como um pobre coitado desde sempre, um sujeito que sequer o amor dos pais teve.
É preciso lembrar que os exibidores brasileiros dos anos 40 e 50 tinham uma fascinação por títulos bregas, cafonas, babacas, melodramááááticos – e que muitas vezes não tinham nada a ver com o original. Esquina do Pecado. Os Brutos Também Amam. Quando Fala o Coração. Torrentes de Paixão. A Mulher Que Soube Amar. Almas Desesperadas. Os Desgraçados Não Choram.
Mas é preciso registrar também que não foram apenas os exibidores brasileiros que piraram feio com The Hitch-Hiker. Na França, piraram para o bem, e chamaram o filme de Le Voyage de la Peur, a viagem do medo – belo e apropriado. Já os portugueses enlouqueceram de vez, e lá o filme teve o título de Arrojada Aventura. Cáspite! Homessa! Chamar de aventura o fato de os dois pobres sujeitos terem sido sido sequestrados e mantidos diante da mira do revólver de um psicopata é uma arrojada imbecilidade.
“Um assassino de que não esquecemos jamais”
O Guide des Films de Jean Tulard diz o seguinte sobre Le Voyage de la Peur: “Um assassino psicopata, Myers, é apanhado por Bowen e Collins. Ele os ameaça e obriga a conduzi-lo à fronteira com o México. Sua particularidade: ele mantém, mesmo dormindo, um olho aberto. (…) Um suspense muito impressionante com um assassino louco de que não esquecemos jamais. Provavelmente o melhor filme de Ida Lupino.”
Leonard Maltin resumiu parte do que eu tentei dizer no início desta anotação. O autor do guia de filmes mais vendido nos tempos em que se vendiam guias de filme deu 2.5 estrelas em 4 para o filme e o definiu assim:
“Suspense bem feito sobre dois homens que viajam para caça cujo carro é tomado por um fugitivo assassino. Boas atuações, especialmente por Talman no papel-título, mas o impacto do filme, que já foi poderoso, diminuiu por décadas de filmes mais explícitos e imaginativos.”
Anotação em novembro de 2018
O Mundo Odeia-me/The Hitch-Hiker
De Ida Lupino, EUA, 1953
Com Edmond O’Brien (Roy Collins), Frank Lovejoy (Gilbert Bowen), William Talman (Emmett Myers)
e José Torvay (capitão Alvarado), Sam Hayes (o locutor de rádio), Jean Del Val (o inspetor geral), Clark Howat (o agente do governo)
Roteiro Collier Young e Ida Lupino
Adaptação Robert L. Joseph
Baseado em história de Geoffrey Homes
Fotografia Nicholas Musuraca
Música Leith Stevens
Montagem Douglas Stewart
Produção RKO Radio Pictures, The Filmakers. DVD Versátil.
P&B, 71 min (1h11)
***
Título na França: Le Voyage de la Peur. Em Portugal: Arrojada Aventura.
Aeeeeeee, gostei. “Not Wanted” é muito bom, Ida Lupino era realmente espetacular. Mas eu gostei MESMO foi de ver aqui um dos meus favoritos, o subestimado O’ Brien.
Isquindô!
PS: Acredito que seria “filmes”, no trecho “Como na maioria de seus filhos”, não?
Bem, Senhorita, como os filmes de um diretor, uma diretora, são também seus filhos… Muito obrigado por sugerir a correção, coisa que você fez como faz tudo: de maneira gentil, suave, educada, bacana.
Um abraço!
Sérgio
Adorei o filme. Intenso no quesito suspense, rico em roteiro e fotografia, sem previsibilidade, importante numa fita desse gênero.