Não me pareceu muito feliz a estréia da boa atriz Sylvie Testud na direção. Com boa vontade, seria possível ver que ela tentou levantar temas importantes nesta história que tem um toque de ficção-fantasia. Mas, na minha opinião, ela só tentou – o resultado foi uma comedinha dramática sem muita graça que mais beira a bobagem que qualquer tipo seriedade.
Tentando ser rápido:
Estamos aí em meados dos anos 1990, e Marie (o papel de Juliette Binoche) é uma bela jovem de classe média, que estudou, é esforçada, tem um bom currículo. Durante as férias, numa cidade litorânea, um empresário riquíssimo, de origem russa, Dimitri Speranski (Vernon Dobtcheff), vê o currículo da moça, gosta, sugere que ela o procure em seu escritório em Paris na segunda-feira seguinte.
Na praia, Marie se encontra com Paul Speranski (Mathieu Kassovitz), filho do milionário. Marie está com uma amiga, que, num impulso, convida Paul para a festinha de aniversário de Marie, na noite daquele mesmo dia.
Ao final daquela noite, Marie e Paul estão trepando maravilhosamente.
Quando acorda – aos exatos 9 minutos de filme –, Marie se vê num apartamento milionário em área extra-nobre de Paris, de cara para a Torre Eiffel.
Haviam-se passado uns 15 anos. Marie não se lembra de nada do que aconteceu nesse período. Para ela, é como se estivesse acordando na manhã seguinte à primeira trepada homérica com Paul, ainda na praia, antes de ter ido a Paris falar com o empresário milionário.
Tudo o que ela vê a seu redor é surpresa total.
A velha, velhíssima história da viagem no tempo
Sacumé? A velha, velhíssima história da viagem no tempo – sem necessidade dos carros e da energia dos raios que transportaram o Marty McFly feito por Michael J. Fox na trilogia De Volta para o Futuro, feita entre 1985 e 1990 por Robert Zemeckis.
Assim, de repente, não mais que de repente, como viajou no tempo a Peggy Sue interpretada por uma jovem e deslumbrante Kathleen Turner em Peggy Sue, Seu Passado a Espera/Peggy Sue Got Married, que Francis Ford Coppola fez em 1986. Peggy Sue adulta desmaia numa festa de reunião do povo da high school, e quando acorda está de novo adolescente, na high school.
Mais ou menos como em Quero Ser Grande/Big, que Penny Marshall fez em 1988: de repente o garoto que queria ser mais velho acorda de manhã no corpo de um Tom Hanks aí com uns 30 anos.
Acordar é um problema. Para o Gregor Samsa de Kafka, acordar era descobrir que tinha virado uma barata.
Para a Marie interpretada por La Binoche no filme dirigido por Sylvie Testud sobre roteiro dela própria (os créditos originais falam que houve a “colaboração de Quitterie Duhurt-Gaussères e Claire Lemaréchal”), a coisa não foi tão feia assim: afinal, ela acorda para se descobrir milionária, num apartamento deslumbrante.
O personagem de La Binoche acorda atordoada, atônita, zonza com tudo que vê
Marie não reconhece nada, tudo é absoluta surpresa: o apartamento, seu rosto de mulher de 40 anos, na verdade 41, que ela está completando naquele mesmo dia, conforme fica sabendo pelo cumprimento que recebe da empregada Rita (Sylvie Herbert):
– “Feliz aniversário, madame Speranski”, diz Rita.
– “Madame Speranski?”, repete Marie, atordoada.
Atordoada, atônita, zonza, descobre que tem um filho Adam (Yvi Dachary-Le Béon), garotão de uns 10, 11 anos.
Pelas fotos nas paredes, percebe que está casada com Paul, o mesmo Paul de uns 15 anos antes.
Percebe que está sendo esperada no escritório – ela é a segunda na hierarquia da gigantesca companhia do sogro, aquele Dimitri Speranski que já havíamos conhecido. É seu braço direito.
Revê Paul, o sujeito por quem havia se apaixonado perdidamente no dia anterior, quer dizer, 15 anos atrás. Desenhista de quadrinhos, ele trabalha num estúdio bastante isolado num andar superior do apartamento duplex.
Ele está diferente – está absolutamente frio. Gélido. Acha muito estranho que Marie esteja em casa, não esteja ainda no trabalho – e mais estranho ainda que ela suba ao estúdio para vê-la.
A grande Juliette Binoche atua como se estivesse num episódio dos Trapalhões
Se houvesse lógica na história, naquele momento do reencontro Marie teria dito a Paul a verdade dos fatos: que estava atordoada, atônita, zonza, que não se lembrava de nada dos últimos anos, que para ela era como se tivesse acordado na manhã seguinte à da primeira trepada.
Mas, se houvesse lógica na história, não haveria as piadas que Sylvie Testud nos apresenta: os choques que Marie leva a cada momento, a cada nova descoberta.
Por um longo tempo, as descobertas, os choques de Marie diante de uma realidade que ela desconhece vão sendo mostrados em tom de comédia. Infelizmente (ao menos me pareceu), num tom de comédia boba.
Juliette Binoche, uma das atrizes mais completas de sua geração, atua aqui como numa comédia escrachada, pastelão, à la Jerry Lewis, à la Os Trapalhões de Didi, Dedé e Mussum. Arregala os olhos. Daí a pouco arregala os olhos de novo. Solta gritinhos. Anda destrambelhadamente – dá passos desajeitados, esquisitos, estranhos, como se estivesse pisando torto, como se o chão estivesse pegando fogo.
No fundo, no fundo, há uma questão séria: as pessoas perdem a vida para ganhá-la
Com imensa boa vontade, pode-se imaginar que Sylvie Testud está usando artifícios cômicos para falar de verdades importantes.
Atrás das risadas, há – para quem quiser se esforçar em ver as coisas assim – uma parábola, uma fábula com boa moral: ao se dedicar totalmente à ascensão profissional na corporação do sogro, Marie não se dedicou ao que realmente importa na vida: o amor, as relações humanas.
De repente, passados 15 anos, descobre que estragou o casamento com o homem que ama. Descuidou-se dele, descuidou-se do filho. Na verdade, ela havia pedido o divórcio, não queria mais saber de Paul.
Descobre que estragou sua vida.
Ou, como diria John Lennon: “Did she understand it when they said / That a man must break his back to earn / His day of leisure? Will she still believe it when he’s dead?”. Como diria Georges Moustaki, indo na direção contrária para chegar ao mesmo ponto: “Et s’il leur arrivait parfois de travailler / Personne n’aurait perdu sa vie pour la gagner”.
Marie de repente acorda para depois descobrir que perdeu 15 anos de vida no ato de ganhar a vida.
Tá legal. Quem tiver muito boa vontade poderá ver essas verdades fundamentais na historinha que o filme conta.
Eu, de minha parte, percebi que há um esforço para dizer coisas sérias, importantes, no filme. Há um esforço, uma tentativa.
Não considero que tenha sido uma tentativa bem sucedida. Mas isso é só minha opinião, que não vale mais que uma moeda furada de três guaranis.
Os créditos omitem que o roteiro se baseou em um romance de 2007
Os créditos iniciais de La Vie d’une Autre omitem a informação, mas o roteiro escrito por Sylvie Testud with a little help from her friends Quitterie Duhurt-Gaussères e Claire Lemaréchal se baseia no romance homônimo da escritora Frédérique Deghelt, publicado em 2007.
Segundo o AlloCine, um site que tem tudo sobre o cinema francês, no romance a heroína é uma vítima, uma mulher que morre de tédio a cada dia. Ao fazer o roteiro, Sylvie Testud decidiu transportar a atitude passiva de Marie para seu marido : “Fiz uma opção diferente da do livro. Gosto da idéia de que as pessoas são responsáveis pelo que fazem de suas vidas. Me refiro ao respeito, à simpatia que inspira as pessoas, e a vontade de que elas dividam as coisas conosco. Quero crer que isso depende de cada um. Essa heroína, a quem a vida sorriu bastante num primeiro momento, queria que ela fosse responsável por ela mesma, por aquilo em que ela se transforma.”
O AlloCine dá informações interessantes sobre a participação de Binoche. Diz que Sylvie Testud escreveu o roteiro já pensando na atriz no papel de Marie. Em outra nota, o site fala que, a princípio, Juliette Binoche não estava inteiramente convencida pela história, e recusou o papel – “uma recusa que deixou um gosto amargo para a cineasta”. “Se ela tivesse recusado”, disse Sylvie, segundo o site, “eu teria abandonado o projeto”. No entanto, alguns meses mais tarde, a atriz reviu sua decisão e aceitou o papel.
Segundo Le Monde, o filme tem um equilíbrio instável
Como não gosto de expor apenas minha opinião, em especial num caso como este aqui, de um filme que é a estréia na direção de uma boa atriz, dou aí os dois parágrafos finais da crítica do jornal Le Monde, assinada por Jacques Mandelbaum :
“O choque é duro para o personagem, e o argumento ficcional a priori excelente para o filme propicia uma viagem espaço-temporal em que a fantasia, o romanesco e o humor se dão as mãos. Porque a Marie que acorda de um sono tão longo não está disposta a aceitar a situação absolutamente sinistra que a outra Marie, aquela que viveu sua vida, deixa para ela.
“Um programa duplo espera pela bela adormecida que desperta: um blefe a cada instante, destinado a entrar na pele da personagem em que ela se transformou, e uma luta surda para desfazer, para reconquistar uma felicidade e um marido perdidos. A graça do primeiro registro e o romantismo do segundo dão a este filme um equilíbrio instável, já que a alegoria que contém (como retomar o tempo perdido?) é um verdadeiro desafio para esta arte essencialmente realista que é o cinema.”
Tudo bem: Sylvie Testud é jovem – nasceu em 1971, está chegando agora aos enta anos. Seu segundo longa-metragem, Les Morues, está em fase de pré-produção. Que seja melhor que o primeiro.
Anotação em abril de 2013
A Vida de Outra Mulher/La Vie d’une Autre
De Sylvie Testud, França-Bélgica-Luxemburgo, 2012
Com Juliette Binoche (Marie Speranski), Mathieu Kassovitz (Paul Speranski),
e Aure Atika (Jeanne), Danièle Lebrun (Denise Bontant), Vernon Dobtcheff (Dimitri Speranski), Yvi Dachary-Le Béon (Adam Speranski, o filho), François Berléand (Volin, o advogado), Didier Raymond (Jean Vincard), Sylvie Herbert (Rita)
Roteiro Sylvie Testud, “com a colaboração de Quitterie Duhurt-Gaussères e Claire Lemaréchal”
Baseado no livro de Frederique Deghelt (não creditado)
Fotografia Thierry Arbogast
Música André Dziezuk
Montagem Yan Malcor
Cor, 97 min
Produção Dialogues Films, ARP Sélection, Numéro 4 Production, Paul Thiltges Distributions, Saga Film, Radio Télévision Belge Francophone. DVD Imovision.
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Boa Tarde Sergio,
Gostaria imensamente de saber a trilha sonora deste filme.Me encantou muito, mas não consigo nenhuma informação.
Grande abraço
Alexandra
a trilha sonora toda nao sei, mas o nome da musica mto legal q tocou e q ela dançava qdo o casal estavam no barco-boate é MARIA, da cantora BLONDIE. musicão mto 10 para ouvir alto, faz arrepiar!!!
queria saber o nome da musica,que se passa na hora que ela desmaia e o marido o leva para cama….alguem pode me ajudar por favor..att
Gostaria de saber o nome da música que eles dançam no filme que eles estão no barco
Eu também gostaria de saber o nome do cantor e da música que passa na hora que ela desmaia e o marido leva ela para a cama.
A música que toca quando ela desmaia nos braços dele é da cat power, The greatest.
Olá a todos!
O nome da musica é The Greatest e quam canta é Cat Power.
Grande abraço!
Obrigada Alexandra Klen, estava procurando essa musica e não encontrava.
gostaria de saber o nome da musica logo que inicia o filme.
grato
Roberto, a música no início do filme é Give Me Just a Little Smile do Bob Marley 🙂
Boa, Júlia! Muito obrigado.
Um abraço.
Sérgio
Independente de sua crítica, um tanto ácida, eu assisti ao filme e gostei muito do tom ‘noir’ do filme. Excelente comédia romântica,mas gostaria que a história tivesse um desfecho diferente, mais completo, eu acho, ficou muito aberto.