Amor e Ódio / La Rafle

Nota: ★☆☆☆

Produção cara (cerca de 20 milhões de euros), bem cuidada nos quesitos técnicos todos, este Amor e Ódio/La Rafle reconstitui um evento histórico importante, trágico, bárbaro, brutal: a prisão, em um único dia, de mais de dez mil judeus em Paris, em julho de 1942, executada pela polícia francesa a mando do governo títere de Vichy, e a posterior entrega dessa multidão aos nazistas. Quase todos eles seriam pouco depois assassinados em campo de extermínio na Polônia. Pouquíssimos sobreviveram.

É um tema bastante incômodo para a França e os franceses, uma dolorosa, gigantesca mancha na história da pátria do iluminismo, da grande Revolução, da Liberdade Igualdade Fraternidade, da nação que se proclama baluarte dos direitos humanos.

Dezenas e dezenas de filmes glorificaram os feitos da Resistência Francesa ao nazismo, da luta contra os invasores – tanto feitos na própria França quanto na Inglaterra e nos Estados Unidos. A outra face, a do colaboracionismo, do governo do Marechal Pétain em Vichy, a da rendição e da convivência de milhares de franceses com os invasores, essa seria melhor, para o orgulho da pátria, que fosse esquecida.

Me lembro da cena emblemática do emblemático Casablanca: o oficial francês colaboracionista, cínico, imoral, capitão Louis Renault, interpretado por Claude Rains, enfim se enche de brios, reage, adere à causa mundial de combate ao cancro nazista – e, ao ver a garrafa de água mineral de Vichy, a joga no lixo, antes de se unir ao ex-cínico tornado agora um batalhador Ricky Blaine-Humphrey Bogart, e sai com ele para o início de uma grande amizade e luta contra o opressor.

Causou grande polêmica na França o filme Lacombe Lucien, que Louis Malle fez em 1974, e que ousava mostrar a face que todos prefeririam manter oculta, a de que nem todos os franceses resistiram ao nazismo, e muitos simplesmente aderiram a ele – não por motivos ideológicos, mas pelo simples instinto de sobrevivência.

Um panfleto, uma peça de propaganda, o império do maniqueísmo

Nesse aspecto – reconstituir, reviver uma das maiores vergonhas francesas de toda a História, a entrega aos carrascos nazistas de milhares de famílias inocentes –, Amor e Ódio é um filme importante. Qualquer obra que faça as pessoas se lembrarem do horror nazista, do insano, absurdo Holocausto, é importante e bem-vinda, não importa que já tenham sido antes feitas dezenas, centenas, milhares de outros filmes.

A questão é que Amor e Ódio (La Rafle, o título original, significa detenção em massa) não é um bom filme. É um filme ruim, porque é um panfleto, uma peça de propaganda – apenas isso.

É uma peça de propaganda tão descarada, tão desavergonhada, que, por mais que tente forçar a barra para que o espectador se envolva emocionalmente, o que acaba conseguindo é o contrário, é um certo desconforto, estranhamento, alheamento.

Eu, pessoalmente, fiquei com um certo nojo diante de tanto primarismo, tanto maniqueísmo, tanto esquematismo.

Os judeus são bons. São amigos, são solidários; os pais são pais perfeitos, os filhos são inteligentes e obedientes e uns ajudam aos outros. A filha adolescente que contesta o pai recebe uma lição de moral – e aprende a lição de imediato. Para demonstrar que os judeus, além de bons, amigos, solidários, inteligentes, são também profundamente democráticos por natureza, executam no dia-a-dia a perfeição da aceitação da convivência com os díspares, os diferentes, temos que Schumuel Weismann (o papel de Gad Elmaleh) é comunista, enquanto sua encantadora esposa Sura (Raphaëlle Agogué, atriz de grande beleza) é profundamente religiosa, e os dois vivem na mais perfeita harmonia.

O dr. David Sheinbaum (interpretado por Jean Reno) é a dedicação, a força, a persistência em pessoa.

Já os franceses não judeus, estes se dividem em dois tipos profundamente diferentes entre si. Há os que aderem ao nazismo – como a nojenta, grotesca dona da boulangerie, um poço de preconceito, ou os cruéis soldados e policiais que trabalham para os invasores nazistas. Estes espancam os judeus sem motivo algum, são autênticos sádicos,.

Mas há também os franceses que não aderem ao invasor, e esses são profunda, profunda, profundamente bons, corajosos, audazes, almas puras, piedosas – como o chefe dos bombeiros que decide, contra tudo e contra todos, prestar uma mínima ajuda à multidão de judeus aprisionados em condições sub-humanas no velódromo de Paris.

Ou como a jovem enfermeira Annette Monod, outro poço de altruísmo, bondade, abnegação – e também de beleza, é claro, já que vem na pele de Mélanie Laurent, essa jovem estrela em ascensão meteórica, depois de Não se Preocupe, Estou Bem!/Je Vais Bien, Ne t’en Fais Pas (2006), Bastardos Inglórios (2009) e O Concerto (2009). Nascida em Paris em 1983, faltando ainda portanto dois anos para completar 30, Mélanie Laurent já coleciona nove prêmios e outras quatro indicações.

Não são seres humanos: são esquemas, estereótipos, preto-no-branco

Amor e Ódio reúne, assim, dois dos atores mais populares do cinema francês de hoje, Jean Reno e Gad Elmaleh, e uma de suas jovens estrelas em maior ascensão.

O elenco é de uma maneira geral bastante correto. Jean Reno está monofásico no papel do médico perfeito, e Mélanie Laurent está muito bem, mas quem me pareceu ter o melhor desempenho foi exatamente Gad Elmaleh, um ator mais acostumado à comédia – está presente em diversas comédias de sucesso, como Amar… Não Tem Preço/Hors de Prix, em que come a gracinha da Audrey Tautou, e Contratado para Amar/La Doublure, em que Virginie Ledoyen é apaixonada por ele e ainda se envolve com outra beldade, Alice Taglioni.

Gad Elmaleh conseguiu dar um tanto de autenticidade a seu personagem, um trabalhador esforçado, bom marido, bom pai de família que não acreditava, até a última hora, em que a França pudesse ser capaz da ignomínia total de prender e entregar cidadãos honestos e inocentes às garras do terror nazista. O Schumuel Weismann que o ator compõe é talvez o único personagem tridimensional do filme. Todos os demais são esquemas, estereótipos, preto-no-branco – não são bem seres humanos, somas de qualidades e defeitos, necessariamente imperfeitos e falhos.

Uma das características mais atrozes desta imensa peça de publicidade sionista, me pareceu, são as frases brilhantes, perfeitas, ditas pelos garotinhos. São capazes, aqueles garotinhos, de frases lapidares, inteligentíssimas, de uma maturidade que boa parte das pessoas não chega a alcançar mesmo após viver várias décadas.

“Não devemos ter medo dos mortos”, diz o garotinho Jo Weismann (Hugo Leverdez), ao amigo, num momento em que se escondem em um cemitério, “e sim da maldade dos vivos”.

Os garotinhos criados pela diretora e roteirista Rose Bosch são capazes de frases mais inteligentes e/ou sábias do que muitos grandes escritores.

Uma outra característica apavorante é a trilha sonora, que tenta forçar a barra nos momentos de maior tensão para que o espectador caia no choro. É de um ridículo atroz.

Assim como é de um ridículo atroz a forma como o filme apresenta tanto o Marechal Pétain quanto o próprio Adolf Hitler – uma coisa caricatural demais para que o espectador tenho nojo daquelas figuras nojentas.

Uma peça de propaganda reducionista, que agride a inteligência do espectador

Para não ficar mal com a França e os franceses, ao final da narrativa o filme informa, em letreiros, que cerca de 10 mil judeus escaparam da rafle, da detenção em massa, graças à ajuda de milhares de franceses que os esconderam em suas casas. Franceses, havia bons e maus. Os judeus, não – os judeus eram todos bons.

Além de abusar do primarismo, do maniqueísmo, do esquematismo, o filme ainda cai no reducionismo. Pelo que a diretor Rose Bosch mostra, o nazismo existiu única e exclusivamente para assassinar milhões de judeus. As únicas vítimas da insanidade nazista – é o que o filme parece querer dizer – foram os judeus.

Voltando ao começo: quanto mais filmes denunciando os horrores do nazismo forem feitos, melhor. Os crimes do nazismo – os cometidos contra os judeus, assim como os cometidos contra ciganos, homossexuais, deficientes físicos ou mentais – não podem jamais ser esquecidos, para que a humanidade não corra o risco de enfrentar outro horror parecido.

Pena que este aqui não seja um filme – seja um panfleto, ou, mais que um panfleto, uma peça de propaganda.

Nada contra os bons panfletos que vêm dentro de bons filmes. Mas propaganda pura, em obra reducionista, que agride a inteligência, a sensibilidade do espectador, aí não dá pé.

Uma nota: o filme seria exibido na TV paga, em maio de 2012, com o título de A Coleta.

Anotação em outubro de 2011

Amor e Ódio/La Rafle

De Rose Bosch, França-Alemanha-Hungria, 2010

Com Jean Reno (Dr. David Sheinbaum), Mélanie Laurent (Annette Monod), Gad Elmaleh (Schmuel Weismann), Raphaëlle Agogué (Sura Weismann), Hugo Leverdez (Jo Weismann), Joseph Weismann (Joseph Weismann velho), Mathieu Di Concerto (Nono Zygler), Romain Di Concerto (Nono Zygler), Oliver Cywie (Simon Zygler), Sylvie Testud (Bella Zygler), Anne Brochet (Dina Traube)

Roteiro Rose Bosch

Fotografia David Ungaro

Música Christian Henson

Produção Légende Films, Gaumont, Légende des Siècles, TF1 Films Production, France 3 Cinéma

Cor e P&B, 115 min

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