É esta aqui, e não tem para nenhuma outra. Esta é a comédia mais maluca, mais doida, mais insana, mais lelé da cuca, mais demente, mais alienada, mais sem juízo que já foi feita em qualquer época, em qualquer lugar.
Se algum dia uma civilização extraterrestre vier explorar este planeta, e se interessar em saber o que raios exatamente vinha a ser a tal da screwball comedy, basta que assistam a Levada da Breca/Bringing Up Baby, que Howard Hawks perpetrou em 1938, com a cumplicidade de Cary Grant e Katharine Hepburn.
Levada da Breca! Eis aí um título que ficou velho. Quem é que tem menos de 40 anos hoje e conhece essa expressão? Levada da breca é mais démodé do que homessa, supimpa, vosmecê.
Uns dias atrás revi O Inventor da Mocidade/Monkey Business, outra comédia amalucada de Hawks, também com Cary Grant, esse ator que fez um monte de comédias amalucadas, como, só para citar duas outras, Este Mundo é um Hospício/Arsenic and Old Lace, de Frank Capra, e A Noiva Era Ele/I Was a Male Bride, outra vez de Howard Hawks.
Foi ao rever O Inventor da Mocidade que me deu vontade de ver de novo Levada da Breca. Pensei: diabo, preciso rever essas comédias da era de ouro de Hollywood, aqueles filmes que dão prazer de ver. Por isso fui atrás, por exemplo, de Contrastes Humanos/Sullivan’s Travels.
Sobre O Inventor da Mocidade, anotei: Já foi feita muita, muita bobagem, em cento e tantos anos de cinema, mas poucos filmes são tão bobos quanto O Inventor da Mocidade/Monkey Business. É, seguramente, uma das comédias mais bobas que o cinema já produziu – e também uma das maiores delícias.
A frase vale perfeitamente também para Levada da Breca – com a diferença de que Levada da Breca merece o superlativo máximo. Não é um dos filmes mais bobos da História. É o filme mais bobo que já foi feito.
Não adianta Mel Brooks se esforçar ao máximo para fazer uma comédia mais maluca. Nem Mel Brooks, nem Richard Lester, nem o povo das sátiras com Leslie Nielsen – Jim Abrahams, David e Jerry Zucker. O troféu máximo vai para Howard Hawks com Levada da Breca. Não tem concorrente que chegue perto.
Tirando um fiapo de base de trama, tudo é doido no filme
Levada da Breca passa a zilhões de anos-luz de qualquer coisa parecida com lógica, sentido, verossimilhança. Não é que em alguns momentos a trama fique doidona. Toda a trama, toda a história, do princípio ao fim, é sem pé nem cabeça.
Basta comparar com o próprio O Inventor da Mocidade, loucura lançada em 1952 – 14 anos e uma Guerra Mundial depois. O Inventor da Mocidade tem uma trama amalucada, mas parte de alguns pontos que têm alguma lógica: um cientista está tentando inventar uma droga que faça as pessoas rejuvenescerem. Isso tem algum sentido. Depois as coisas fiquem muito doidonas, e os personagens de Cary Grant e Ginger Rogers viram crianças e saem por aí fazendo travessuras de crianças.
Bem, Levada da Breca até que parte de uma base que também tem um pouquinho de sentido. Um cientista (exatamente como seria o personagem do mesmo Cary Grant 14 anos depois), um paleontólogo, que há vários anos se dedica a montar o esqueleto de um brontossauro em um instituto de pesquisas, está atrás de uma senhora milionária que tem US$ 1 milhão para doar. Precisa, então, encontrar-se com o advogado da milionária, Elizabeth Random (May Robson), o sr. Peabody (George Irving), para mostrar a importância do trabalho de seu instituto de pesquisas.
Isso aí, esse fiapo de base da trama, é tudo o que o filme de lógica, de verossimilhança. Mais nada. O resto é só loucura.
No momento em que está começando a conversar com o sr. Peabody, durante um jogo de golfe, o doutor David Huxley, o nosso Professor Pardal, conhece uma mulher absolutamente levada da breca, uma tal Susan Vance (o papel da grande, imensa, sensacional Kate Hepburn).
E aí é o seguinte: nunca jamais em tempo algum houve ou haverá uma mulher mais levada da breca do que a Susan criada por Kate Hepburn. Para começo de conversa, ela tem um leopardo em seu apartamento de Nova York – presente de seu primo Mark, que caçou o leopardo nas selvas de um país distante e misterioso chamado Brasil.
E que maravilhoso trabalho é o dos domadores do leopardo usado nas filmagens de Bringing Up Baby. Baby, o leopardo, dá um show de interpretação. É quase tão hilário quanto Cary Grant e Kate Hepburn. Ou Barry Fitzgerald.
Barry Fitzgerald (1888-1961) não precisaria ter feito nada na vida além do bêbado casamenteiro Michaeleen Flynn de Depois do Vendaval/The Quiet Man, a obra-prima de John Ford de 1952, para ser uma das figuras mais simpáticas e agradáveis da história do cinema. Mas felizmente fez 48 filmes – e, em Levada da Breca, faz um ensaio do que viria a ser Michaeleen Flynn. Interpreta um empregado da casa da milionária tia Elizabeth, um sujeito cuja alegria na vida vem dentro de um copo.
Uma atriz maravilhosa, uma mulher forte, de opinião, de raça
Levada da Breca já está rumando para o final – e a essa altura qualquer espectador de nariz empinado, chegado a um “cinema de arte”, que porventura estivesse vendo aquilo já teria desistido para ver o último Lars von Trier – quando baixa em Kate Hepburn o espírito de uma dame, broad, uma mulher vulgar, daquele tipo de amante de gângster, ou puta.
Não me lembrava dessa parte do filme, dessa baixada do santo da puta sobre a moça levada da breca. É hilariante, uma absoluta delícia.
De alguma maneira, faz lembrar um pouco a mulher vulgar que aparece no tribunal para depor na segunda metade de Testemunha de Acusação – para a total surpresa do advogado de defesa, interpretado por Charles Laughton.
E a Kate Hepburn que, no finalzinho, traz sob rédea curta o leopardo bravo é uma deliciosa, agradabilíssima, inteligentíssima piada a respeito da própria atriz, de quem já havia se dito que era uma bomba na bilheteria, uma destruidora de possíveis sucessos. Mulher porreta, forte, de opinião, de raça, de tutano, Kate Hepburn devia de fato assustar muito homem. Era preciso ser Spencer Tracy para enfrentá-la de igual para igual.
Eta mulher levada da breca.
Piadas ditas com a velocidade de metralhadora
Algumas frases que os personagens disparam, com a velocidade de metralhadora, ao longo dos 102 minutos do filme:
* Susan: – “O nome dele (do leopardo) é Baby. Tem três anos, é gentil como um gatinho e gosta de cachorros. Não sei se quando Mark me disse isso ele queria dizer que Baby come cachorros ou se se dá bem com eles.”
* David: – “Não é que eu não goste de você, Susan, porque, afinal de contas, em momentos tranquilos, sou estranhamente atraído por você. Mas – bom, não houve nenhum momento tranquilo com você.”
* David: – “Como é possível que todas essas coisas aconteçam com uma única pessoa?”
* O dr. Fritz Lehman, psiquiatra: – “O impulso amoroso no homem frequentemente se revela em termos de conflito.”
Uma das primeiras vezes em que aparece um homem vestido de mulher em um filme
Um detalhe. Há, no meio do filme, uma sequência em que Cary Grant veste um roupão feminino, cheio de babados. Surge a tia de Susan, a sra. Elizabeth Random, a milionária. Dá-se o seguinte diálogo:
Ele: – “Não sei. Não me sinto muito eu mesmo hoje.”
Ela: – “Bom, você parece um perfeito idiota nessa roupa.”
Ele: – “Essa roupa não é minha.”
Ela: – “Onde está a sua roupa?”
Ele: – “Eu perdi!”
Ela: – “Mas por que você está usando essa roupa?”
Ele: – “Porque de repente eu virei gay.”
Hum… Não posso afirmar, mas esta deve ter sido seguramente uma das primeiras vezes que um filme de Hollywood falou que alguém era gay. Talvez até a primeira. Não se usava falar desse tipo de coisa, naquela época de autocensura rígida, em que os estúdios obedeciam cegamente ao Código Hays.
E esta seguramente deve ter sido também uma das primeiras vezes em que um homem apareceu em roupa de mulher no cinema americano.
Onze anos mais tarde, em 1949, Howard Hawks voltaria a botar Cary Grant em roupa de mulher, mais uma peruca, na já citada comédia I Was a Male War Bride, eu fui uma noiva de guerra homem, no Brasil A Noiva Era Ele.
Mas o fato é que Cary Grant andou pela sala da casa vestido com roupa de mulher em 1938, duas décadas antes de Jack Lemmon e Tony Curtis se travestirem em Quanto Mais Quente Melhor, o clássico de Billy Wilder de 1959.
Elogios e mais elogios em todos os livros que há
Todos os alfarrábios do mundo se derretem diante de Levada da Breca.
“O ápice das comédias escrachadas”, define o livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer.
“Para muitos, Bringing Up Baby é a screwball comedy definitiva”, diz o livro 501 Must-See Movies. Ele acrescenta, porém, que, embora muito reverenciado hoje em dia, o filme foi um fracasso na época de seu lançamento, tanto entre os críticos quanto na bilheteria. Logo depois, tanto Hawks quanto Kate Hepburn deixariam o estúdio, o RKO, “para fazer coisas ainda maiores”.
O livro Hollywood Picks the Classics coloca Bringing Up Baby entre as dez grandes comédias da época de ouro do cinema americano. Lembra que esta foi a primeira comédia amalucada em que Katharine Hepburn trabalhou, após uma série de dramas pesados, alguns sublimes, como Alice Adams, outros ridículos, como Spitfire. A carreira da atriz, diz o livro, deslancharia muito a partir de seu rompimento com a RKO, logo após a produção deste filme aqui.
Cada cabeça, uma sentença. O livro citado no parágrafo acima diz que Alice Adams (no Brasil, A Mulher Que Soube Amar) é um drama pesado sublime. O filme é em geral considerado uma comédia – e, na minha opinião, é uma imensa porcaria. Mas vamos em frente.
“Bringing Up Baby, a melhor screwball comedy jamais feita, foi tida como um total desastre na época em que foi produzida”, diz o livro The RKO Story. “O produtor-diretor Howard Hawks estourou o orçamento e a RKO perdeu com ele US$ 365 mil. Já atacada por alguns exibidores devido a seus insucessos nas bilheterias, Katharine Hepburn provou que poderia ser uma comediante de primeira – mas não adiantou. O fracasso do filme levou ao fim de sua carreira na RKO. Talvez Bringing UP Baby estivesse à frente de seu tempo, pois é recebido com prazer pelas audiências atuais. Sua história de um palenteólogo cuja vida vira uma loucura por causa de uma herdeira tonta desafia as sinopses.”
Que delícia de frase. É isso mesmo. A trama é um desafio para quem pretenda fazer uma sinopse.
Segundo The RKO Story, o filme de Peter Bogdanovich What’s Up, Doc? é ao mesmo tempo uma homenagem ao filme de Hawks – e um plágio dele. Não me lembro direito de What’s Up, Doc?, no Brasil Essa Pequena é uma Parada, que nunca mais revi; o filme, com Ryan O’Neal e Barbra Streisand, é de 1972, e veio logo após o sucesso de A Última Sessão de Cinema. Tá aí um filme a ser revisto.
O livro termina o verbete sobre Bringing Up Baby dizendo que a principal tarefa do produtor associado Cliff Reid era apressar o imperturbável Hawks: “Não obteve muito sucesso”.
“Uma bobagem leviana” que Hawks mantém em “equilíbrio articulado”
Leonard Maltin – que dá a cotação máxima de 4 estrelas para o filme – também diz que What’s Up, Doc?, de Bogdanovich, é uma espécie de refilmagem da história. “Não fez sucesso quando lançado, mas agora é considerada a definitiva screwball comedy e um dos filmes mais rápidos, mais engraçados que já foram feitos.”
O CineBooks’ Motion Picture Guide também dá a cotação máxima, de 5 estrelas. O texto deles é ótimo: “Katharine Hepburn e Cary Grant estão soberbos nessa deliciosa screwball comedy com uma trama que poderia ter sido arquitetada numa instituição para doentes mentais. O diretor Howard Hawks se recusou a ter um personagem são no filme, e o dirigiu de jeito largado, permitindo que seu toque absurdo tomasse conta. (…) O diálogo fervilha, a direção de Hawks é veloz e furiosa, e todos os atores contribuem com atuações inspiradas. Sobretudo, Bringing Up Baby é engraçado desde o começo até o fim”.
Depois de tanta louvação, fico curioso para ver o que diz Pauline Kael, a língua mais ferina da crítica americana.
Vamos lá.
“As comédias lunáticas da década de 30 geralmente começavam com uma herdeira. Esta aqui começa com uma (Katharine Hepburn), que tem um cachorro, George, e um leopardo, Baby.”
Ahan. O cachorro não é da herdeira, e sim da tia dela, a tia Elizabeth, a milionária.
“Cary Grant é o paleontologista que acabou de adquirir o osso necessário para completar o esqueleto de seu dinossauro. George rouba o osso, Grant e Baby perseguem-se um ao outro, o dinossauro…”
Aqui, Dame Kael conta a última piada do filme. Censuro Dame Kael e passo para a frase seguinte.
“O diretor, Howard Hawks, mantém toda essa bobagem leviana num equilíbrio tão articulado que nunca interfere com o mundo real; talvez seja o equivalente mais próximo no cinema americano das comédias-restauração do século XVIII.”
Na edição brasileira do livro de Pauline Kael, 1001 Noites no Cinema, há um errinho do grande Sérgio Augusto, que editou o traduziu o texto. Está dito, no final do verbete: “Este filme é o ponto de partida da comédia de Peter Bogdanovich Que é Que Há, Gatinha?” Que é Que Há, Gatinha? foi o título brasileiro de What’s New Pussycat, a comédia lunática feita em 1965 por Clive Donner e Richard Talmadge, em cima de roteiro original do então jovem Woody Allen. O filme de Bogdanovich, já citado lá em cima, What’s Up, Doc?, no Brasil teve o título de Essa Pequena é uma Parada.
***
É isso aí. Diversos filmes lançados no mesmo ano de Levada da Breca e que foram grande sucesso de público na época sumiram na poeira da história. O filme de Hawks, um dos grandes fracassos do ano, como o qualifica outro livro, That Was Hollywood – The 1930s, está aí, firme, forte, louco de pedra, e irresistivelmente engraçado.
Anotação em agosto de 2012
Levada da Breca/Bringing up Baby
De Howard Hawks, EUA, 1938.
Com Katharine Hepburn (Susan Vance0, Cary Grant (David Huxley)
e Charlie Ruggles (Major Horace Applegate), May Robson (Tia Elizabeth), Barry Fitzgerald (Mr. Gogarty), Walter Catlett (policial Slocum), Fritz Feld (Dr. Fritz Lehman)
Roteiro Dudley Nichols e Hagar Wilde
Baseado em história de Hagar Wilde
Fotografia Russell Metty
Música Roy Webb
Montagem George Hively
Produção RKO. DVD Versátil.
P&B, 102 min
R, ***1/2
Título em Portugal: Duas Feras. Na França: L’Impossible Monsieur Bébé.
Taí uma graça de filme. E o Cary Grant, muito gracioso também.
Ainda não assisti a esse filme, mas logo que comecei a ler o texto, lembrei-me do filme What’s Up, Doc, citado na resenha. Deste último, eu gostei muito; achei engraçadíssimo e meio nonsense.
Um dos filmes que mais gosto! É tão alegre e deliciosamente idiota. Que par magnifico, Cary e Katherine é provavelmente o meu par romântico favorito do cinema. Ele está mt engraçado, com o seu ar respeitoso e intelectual e a transformar-se num mundo de loucura saudável. Ela é a diversão em pessoa, louca e divertida. Dois grandes talentos num filme que aparentemente não necessita de grandes talentos. Afinal, não são papéis dramáticos, pesados e com nuanças. Mas, para mim, não é qualquer ator que faz de levado da breca de forma convincente. É tão divertido, os diálogos são frescos e inteligentes. A câmara não faz um trabalho genial mas está bem. A música não me lembro. não deve ser nada de especial, mas o ritmo do filme é apreciável. Rápido, sem tempos parados. A tia de Susan é mt engraçada: uma mulher rica e conservadora que vê como a sua louca sobrinha está a manifestar “as mesmas tendências” de loucura que a personagem de Cary. Cavell definiu a comédia como comédia de recasamento. Tive uma cadeira na universidade em que aprendemos a teoria de Cavell sobre Bringing up baby. na altura não tinha visto o filme nem ouvido falar dele. Quando o vi, adorei
nuances