4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Algumas das primeiras impressões ao rever pela primeira vez, depois de quatro décadas, Vagas Estrelas da Ursa, o filme de Visconti de 1965: que beleza de filme; que beleza de imagens; como o filme não envelheceu absolutamente nada; como o conde marxista homossexual de talento extraordinário adorava rostos bonitos, de homens e mulheres; e, meu Deus do céu e também da térrea, que grande interpretação de Claudia Cardinale, e como ela era acachapantemente bela.
Talvez este seja o filme em que ela, aos 25 aninhos de idade, está mais esplendorosamente bela – mais que em A Moça da Valise, de Valerio Zurilini, de 1961, mais ainda que em Oito e Meio, Fellini, de 1963, mais ainda, se é que isso é possível, que em O Leopardo, o filme imediatamente anterior de Visconti, de 1963.
E talvez esta seja a melhor interpretação de toda a sua carreira.
Vagas Estrelas é um drama familiar, um estudo psicológico, barra pesadíssima, denso, tenso, duro.
Adaptações de obras literárias e criações próprias
Visconti adaptou diversas obras literárias, em sua filmografia riquíssima, a obra de um dos cineastas mais importantes da História: nomes nobérrimos como Fiódor Dostoiéviski (Um Rosto na Noite/Le Notti Bianche, de 1957), Albert Camus (O Estrangeiro, 1967), Thomas Mann (Morte em Veneza, 1971), Giuseppe de Lampedusa (o já citado O Leopardo), Gabriele D’Annunzio (O Inocente, de 1976), e até mesmo o americano autor de romances policiais James M. Cain, embora sem dar-lhe o devido crédito (Obsessão, 1943).
No entanto, foi também o autor de várias outras das histórias que filmou, em geral ao lado de Suso Cecchi d’Amico – que muita gente considera uma das melhores roteiristas da História – e outros colaboradores. É o caso de Vagas Estrelas: argumento e roteiro são assinados por Visconti, Suso Cecchi d’Amico e Enrico Medioli.
O trio de autores conta a história de Sandra (a personagem de Claudia Cardinale) de uma maneira austera, tradicional, quase acadêmica. Vai revelando muito aos poucos o que existe no passado de Sandra. O espectador rapidamente percebe que há muita coisa escondida lá, mas as revelações vão aparecendo bem a conta gotas. Não se pretende fazer uma estrutura de thriller, de suspense, de forma alguma – é um mergulho lento, mas irreversível, num passado de névoas, de dor, em terrenos pantanosos, difíceis.
O ponto de genialidade, de maestria, é que a narrativa avança mais pelo não expresso, pelo não explícito. Há muito mais ambigüidade, dúvida, névoa, bruma, tonalidades de cinza, do que explicitudes, clarezas, preto no branco. É um tom mais de Dom Casmurro do que das narrativas em que tudo é dito. Me parece que a intenção é exatamente deixar a dúvida na cabeça do espectador, ao fim de tudo: houve ou não houve, de fato, o que muitos dizem que houve e Sandra nega?
E, para isso, para que o filme funcione, muito depende da interpretação de Claudia Cardinale. E é aí que ela brilha.
Do ambiente cosmopolita para um vilarejo parado no tempo
Nos primeiros dez, 15 minutos de filme, mestre Visconti nos mostra dois mundos absolutamente distantes, à parte. A ação começa, direto, sem qualquer tipo de crédito inicial, numa festa num apartamento de gente rica em Genebra. É o mundo mais moderno, cosmopolita, que se pode conceber – ou que se podia conceber quando o filme foi feito, 1965. É uma pequena babel – fala-se francês, inglês, alemão, italiano, há pessoas das mais diversas nacionalidades, pessoas ricas, cultas, em bons empregos. Não, não há dissipação, trepação adoidada, drogas – é uma festa de pessoas que poderiam ser chamadas de caretas. Um pianista idoso toca Cesar Franck – e Sandra, a dona da casa, que estava atendendo às visitas, cuidando para que todos estivessem servidos, pára para ouvir a música, e o marido, o americano Andrew Dawson (Michael Craig), percebe que a mulher ficou subitamente alheia a tudo. Aproxima-se dela, pergunta se ela está bem, ela fala da música, ele a leva para perto do piano.
Os convidados se despedem, Sandra e Andrew os cumprimentam; assim que o último deles sai do belo apartamento, os dois ficam à vontade, confessam-se exausto, tomam uma última dose, pedem aos garçons que se apressem – no dia seguinte bem cedo vão viajar.
Em seguida virão seqüências da viagem de carro de Genebra até a Itália – diversas seqüências de estrada, enquanto surgem os créditos iniciais. Da Genebra cidade grande, cosmopolita, onde se reúnem pessoas de diferentes nacionalidades, o casal Andrew-Sandra vai parar em Volterra, uma pequena cidade milenar, parada no tempo, onde ainda há construções etruscas, pré-Império Romano, e onde vive uma sociedade interiorana, provinciana, acanhada, tosca.
A diferença, a disparidade entre os dois mundos é fortíssima, chocante. Andrew, o marido americano de Sandra, é o homem do mundo de hoje, cosmopolita. Sandra tem um pé no mundo de hoje e outro na provinciana, acanhada Volterra parada no tempo.
Andrew e Sandra vão se hospedar no palácio da família dela, a casa imensa, gigantesca, onde ela nasceu e cresceu. A família – é óbvio – já foi muito rica, das mais ricas do lugar. A única pessoa que está no palácio de cem cômodos é Fosca (Amalia Troiani), a velha empregada da família. Quando Fosca diz que Gianni, o irmão de Sandra que vive em Londres, tem vindo visitar Volterra de vez em quando, Sandra nega, garante que a empregada está enganada.
A menção a Gianni deixa Sandra assustada, quase em pânico – e ao mesmo tempo fascinada, excitada.
E, pouco depois, nesse mesmo dia em que o casal chegou a Volterra, Gianni (Jean Sorel) aparece.
As expressões de susto e fascinação são claras, são evidentes, nos grandes olhos de Claudia Cardinale, na sua testa franzida, nos movimentos às vezes bruscos, nervosos. É uma interpretação brilhante.
Dúvidas persistentes sobre fatos do passado
O duríssimo mergulho no passado daquela famíla vai incluir uma visita de Sandra à mãe enlouquecida (o papel de Marie Bell); a inauguração de um monumento em memória do pai, denunciado como judeu durante a Segunda Guerra e morto pelos nazistas em Auschwitz; uma dúvida persistente sobre se a denúncia não teria partido da própria mãe de Sandra e de seu novo marido, Gilardini (Renzo Ricci); mas, sobretudo, uma dúvida ainda mais cruel a respeito da profundidade do amor entre os irmãos Sandra e Gianni.
Para justificar a frase que escrevi lá no alto, sobre o amor de Visconti por belos rostos masculinos, é preciso lembrar que Jean Sorel, o ator que faz Gianni, tem um rosto de grande beleza – assim como Alain Delon, assim como Helmut Berger, outros astros que Visconti filma com uma câmara apaixonada, extasiada. Em Rocco, por exemplo, Visconti bota sua câmara apaixonada para mostrar, longamente, languidamente, as axilas de Alain Delon. Coisa de veado, sem dúvida – coisa de mestre. Grande Visconti – ele se permitia ser abertamente gay, na escolha de como filmaria Alain Delon, numa época em que assumir a homossexualidade era heresia.
“Um filme que não é considerado um dos maiores de Visconti”
Há bem menos referências a Vagas Estrelas da Ursa, nos livros que tenho (e tenho muitos livros), do que seria de se esperar. Pauline Kael e Leonard Maltin não fizeram críticas ao filme. No seu Dicionário de Filmes, Georges Sadoul, normalmente bem mais prolixo, é extremamente sucinto: “Conflito em Volterra, entre a filha (Claudia Cardinale) de um cientista judeu deportado, seu marido americano (Michael Craig), seu jovem irmão (Jean Sorel), a mãe idosa (Marie Bell) e o antigo amante desta. Um tema ao qual Visconti era muito ligado.”
No seu gigantesco Guide de Films, Tulard também não se estende muito. Sobre Sandra, o título que o filme recebeu na França (como os franceses puderam ser tão imbecis e perder a beleza, a poesia de um título como Vagas Estrelas da Ursa?), ele dá um erro de informação – diz que Sandra fica sabendo através do irmão Gianni que foi a mãe que denunciou o pai como judeu, o que absolutamente não é verdade. Diz ainda que Visconti tinha muita ligação com o tema da história que aborda de maneira “muito refinada”; informa que o filme foi o vencedor do Festival de Veneza de 1965 e conclui dizendo que, no entanto, nunca foi considerado entre as obras maiores do cineasta.
O bom verbete sobre Claudia Cardinale no livro Actors & Actresses não fala sobre sua interpretação como Sandra. No entanto, a densa e erudita biografia de Visconti, O Fogo da Paixão, de Laurence Schifano, diz que a própria gênese do filme tem a ver com a atriz, que, repito, Visconti já havia dirigido em Rocco e Seus Irmãos, de 1960, e O Leopardo, de 1963. A biógrafa ressalta, com toda razão, que Vagas Estrelas é o contrário do filme anterior do cineasta, O Leopardo – enquanto O Leopardo é um gigantesco afresco da sociedade italiana, em cores deslumbrantes, Vagas Estrelas é intimista, fala de questões de uma família, em preto-e-branco.
Um papel para Claudia, a mulher de beleza quase animal
Foi Visconti, segundo a biógrafa Laurence Schifano, que procurou o produtor Franco Cristaldi, com quem havia feito Le Notti Bianche, em 1957; Cristaldi estava então casado com a estrela dos filmes que produzia: “Quando é que vamos fazer outro filme juntos?”, perguntou o diretor. No jogo de Visconti, diz o livro, havia “um trunfo maior, uma rainha de copas: a mulher de Cristaldi, em toda a plenitude de seus 25 anos, cabeleira negra, riso carnívoro, fronte obstinada, com um franzir de sobrancelhas que ele lhe pediu para conservar sempre, no Leopardo: Claudia Cardinale. É preciso encontrar um papel para ela, essencialmente para ela, para o ‘seu tipo de beleza um tanto pesada, quase animal’. É essa sensualidade feroz que se exprime em todos os seus gestos, esse poder vital que faz dela uma fera.”
Visconti conversou com seus parceiros Suso Cecchi d’Amico e Enrico Medioli: “Que papel lhe confiar – um papel que esteja realmente à altura dessa força, dessa majestade?”
E a biógrafa de Visconti relata o que lhe disse a roteirista Suso Cecchi:
“Durante dias e dias, falamos de um personagem para a Cardinale. Até que fosse citado o nome de Electra, no qual nos detivemos. Não conseguíamos mais ver a Cardinale senão como símbolo da consciência familiar, da ordem e da fidelidade, exigindo um crime tão atroz quanto aquele que ofendeu a lei. (…) Pareceu-nos muito natural – continua Suso Cecchi – que essa Electra fosse judia e que Agamenon tenha sido condenado a morrer num campo de concentração.”
Ainda o texto de Laurence Schifano:
“No início, tudo está claro: depois de anos de ausência, Sandra retorna a Volterra, à casa que, anos antes, assistira à separação de seus pais e à morte do pai judeu, mandado para um campo de concentração depois de uma delaçãop da qual sua mãe, nova Clitemnestra, tornou-se provavelmente culpada com seu amante e cúmplice, o advogado Gilardini, novo Egisto. Mas – esclarece Visconti – “não se diz, em Vagas Estrelas, quem são os verdadeiros culpados e as verdadeiras vítimas.”
Eu não sabia disso, que Visconti e seus parceiros escreveram a história de Vagas Estrelas como uma adaptação da tragédia clássica grega especialmente para dar a Claudia Cardinale um grande papel.
Mas é então é isso: vivendo e aprendendo.
Vagas Estrelas é a versão da tragédia grega feita por um aristocrata marxista para a estrela italiana nascida na Tunísia, que se passa numa cidade italiana milenar que havia sido habitada pelos etruscos.
Beleza de filme. Meu Deus do céu e também da terra – se isto aqui não é dos melhores filmes de Visconti, então o que é um filme maior?
Vagas Estrelas da Ursa/Vaghe Stelle dell’Orsa…
De Luchino Visconti, Itália, 1965
Com Claudia Cardinale (Sandra), Jean Sorel (Gianni), Michael Craig (Andrew), Marie Bell (a mãe), Amalia Troiani (Fosca), Fred Williams (Pietro Fornari), Renzo Ricci (Gilardini)
Argumento e roteiro Luchino Visconti, Suso Cecchi D’Amico e Enrico Medioli
Fotografia Armando Nannuzzi
Música Pino Calvi, com peças de César Franck
Produção Franco Cristaldi, Vides Cinematografica
P&B, 100 min
R, ****
Título na Inglaterra: Of a Thousand Delights. Títulos nos EUA: Of These Thousand Pleasures e Sandra. Título na França: Sandra
Excelente artigo de Sérgio Vaz, situando com fundamentadas referências o filme de Visconti Vagas Estrelas da Ursa num novo patamar dentro da obra do diretor italiano.Texto escrito com leveza e senso de humor: achei ótima à troca de título pelos franceses. Outra boa característica do artigo é ter incorporado informações da biógrafa Lorence Schifano.
Luiz Fernando Medeiros de Carvalho
Adorei o comentario de vagas estrelas. Faltou dizer que o titulo vem de um poema de Leopardi, poeta italiano (citado no filme). Claudia Cardinali e uma gata mesmo e só poderia ter nascido na Tunisia. Ve-se que é morena e quente (no papel que faz é claro). O tema porem me parece datado frente as concessoes morais da atualidade. Ninguem fala de incesto entre irmãos hoje em dia, embora entre pai e filha seja assunto corrente e frequente. Isto não desmerece o filme, muito bem feito e de narrativa densa. Vale a pena de ser visto.
Gostei muito da crítica, está certíssimo quanto ao peso desse filme. Na minha opinião, foi o melhor de Visconti, eu já vi alguns, gostei também do “Os Deuses Malditos”, mas creio que “Vagas Estrelas da Ursa” é sem comparação sua melhor obra. Acredito que por ser um tema pesado, a maioria dos críticos e cinéfilos o ignoram propositalmente. É também interessante observar que a música “Io Che Non Vivo” fica quase inaudível num dvd comum, só consegui ouvi-la quando coloquei no aparelho blu-ray.
Isto é uma coisa que aborrece muito.Fiz meu comentário enviei e quando fui ver,não estava
postado.Sergio,não vou conseguir repetir as mesmas coisas.Digo que assisti na madrugada de hoje,online.
Gostei muito.A Claudia está soberba.Linda demais,lindíssima!!Digo que 80% do filme é por conta dela.Sandra,misteriosa,enigmática.
Decadência,degradação,”coisas” de Visconti.
Ao contrário da Glória,mesmo tendo visto online não tive problemas em ouvir o clássico
“io che non vivo”(Pino Donággio).
ISTO É UM SPOILER
De fato,bonita aquela cena em que Gianni morrendo,tem seu corpo coberto pelo Fornari enquanto que no mesmo momento,lá fora,na cerimônia,Sandra descobre o busto do pai.
Na quarta feira(12)assisti outro filme do Visconti (” o estrangeiro”)gostei muito tbm.
Ainda não consta no 50 anos de filmes”.
Os outros filmes de Visconti que citaste no teu texto,anotei e quando encontrar no canal online vou assistir.Nas locadoras por aqui não encontro mesmo.
Um abraço,Sergio!!
Sensacional a crítica ao filme. Sérgio Vaz colheu as mesmas impressões que eu captei, embora eu não tenha a mesma bagagem cinematográfica. É o meu filme preferido da bela Cardinale.