As Duas Vidas de Mattia Pascal / Le Due Vite di Mattia Pascal

Nota: ★★½☆

Anotação em 2010: As Duas Vidas de Mattia Pascal é uma minissérie da TV italiana, com dinheiro da Itália e de vários outros países europeus, baseada num dos romances mais famosos de Luigi Pirandello, O Falecido Mattia Pascal. Produção cara, suntuosa, bem cuidada, é dirigida pelo grande Mario Monicelli e tem Marcello Mastroianni no papel título, cercado por um monte de belas atrizes.

Essa obra de Pirandello já havia sido filmada duas vezes antes, a primeira ainda na época do cinema mudo, em 1926, por Marcel L’Herbier, e a segunda em 1936, por Pierre Chenal. Duas produções francesas.

Quando finalmente foram fazer sua própria versão da história, os italianos não economizaram nem dinheiro nem talento. Há belas locações em Monte Carlo e em Veneza; a trilha sonora, suntuosa, é de um mestre, Nicola Piovani. Direção de arte, fotografia, é tudo de primeiríssima. Como de costume no cinema italiano, o roteiro é feito por várias mãos: além de Monicelli, trabalharam na adaptação do texto de Pirandello a grande Suso Cecchi d’Amico, uma das maiores roteiristas do cinema europeu, e mais Ennio De Concini e Amanzio Todini.  

A história – longa, complexa, que se passa ao longo de décadas e envolve um número enorme de personagens – exige um filme extenso, e por isso foi feito em formato de minissérie, com três partes, cada uma com cerca de uma hora de duração: são 178 minutos, no total. Houve uma versão cortadíssima, compactada, de apenas 125 minutos, lançada em vídeo e, parece, também nos cinemas; essa versão cortada foi lançada no Brasil em VHS.

O DVD traz a versão original da minissérie, de quase três horas

A versão disponível hoje no Brasil é a original, com suas quase três horas – um precioso lançamento da Versátil, uma empresa respeitável, que tem colocado nas locadoras brasileiras belas obras européias.

Não li o livro de Pirandello, e portanto não sou capaz de dizer o quanto o filme é fiel ou não à obra do respeitadíssimo autor. Mas o próprio filme anuncia, nos créditos iniciais, que a história é “livremente adaptada” do romance.

É uma comédia de costumes, com alguns toques de sátira e alguns momentos pesados, amargos, lúgubres, um grande comentário sobre a sociedade, as relações humanas, as mazelas do ser humano, a excessiva valorização do dinheiro, a dependência das pessoas aos bens materiais.

Há uma longa galeria de tipos desprezíveis, pequenos, sem valor, e, como é um filme italiano, e de Monicelli, uma duríssima crítica à burguesia, aos ricos.

O protagonista, Mattia Pascal (uma interpretação soberba de Mastroianni, cheia de pequenas nuances), é o segundo filho de um homem muito rico de um pequeno lugarejo do Norte da Itália, não muito distante de San Remo, debruçado sobre o Mar da Ligúria. A família tem diversas propriedades no campo e uma villa, a mais bela e ampla casa do lugarejo – Miragno, se diz; creio que é um nome fictício.

Mattia, apesar de já estar aí com uns 50 anos, é um filhinho de papai, um playboyzinho da província, nunca trabalhou, não sabe fazer coisa alguma na vida. É bastante sonso, inativo, desligado da realidade, e, quando o pai morre, deixa que o administrador dos bens da família, Malagna (Néstor Garay), vá se apropriando pouco a pouco de tudo, até deixá-lo e à sua velha mãe praticamente sem um tostão.

 Mattia se refere a Malagna diversas vezes como “meridional” – e o adjetivo contém uma carga pesada de preconceito do homem rico do Norte rico contra um sujeito que veio pobre do Sul pobre. Algo muito próximo do que, infelizmente, existe no Brasil, gente de São Paulo que diz “baiano” ou “nordestino” com desdém, repulsa. Coisa repulsiva, asquerosa.

A ação começa com um Mastroianni bastante envelhecido pela maquiagem (quando fez o filme, estava com 61, mas aparentava menos), caminhando pelas ruelas estreitas do vilarejo açoitado por um vento bravo e gelado – venta muito, naquele vilarejo, o tempo todo; o vento é mostrado com grande realce ao longo de todo o filme. Está carregando, protegido por seu sobretudo, um grande gato, que leva para seu local de trabalho, a biblioteca do lugar, velhíssima, infestada por ratos. Na grande biblioteca, há dois funcionários, os dois já bem idosos, aí com uns 80 ou mais: o colega de Mattia, na verdade seu chefe, Pellegrinotto (Carlo Bagno), e ele mesmo.

É Pellegrinotto quem, no primeiro diálogo a que assistimos, sugere a Mattia que escreva um livro sobre sua história de vida fascinante: – “Por que não escreve? Se eu tivesse uma história como a sua para contar, seguramente a escreveria.”

Mattia protesta – um tanto debilmente, é verdade –, diz que não é escritor, e pergunta a quem poderia interessar sua história.

Pellegrinotto insiste – e já dá um resumo do que virá a seguir:

– “Sua história parece um conto de Boccaccio, de Bandello. Com tantas intrigas de mulheres, filhos, contra-filhos, dinheiro perdido, dinheiro achado, dinheiro novamente perdido…”

E o próprio Mattia completa: – “… supostos mortos, cadáveres ressuscitados…”

Põem-se, então, os dois, a rememorar a história curiosa, cheia de intrigas, mulheres, de Mattia Pascal. Pellegrinotto mune-se de uma velha máquina de escrever e vai anotando. É a deixa para que voltemos no tempo e acompanhemos a história, a partir do enterro do pai do Mattia. 

Mesquinharias, baixarias, traições, ausência de caráter

É, de fato, uma história riquíssima, cheia de aventuras e desventuras, situações hilariantes e situações de grande angústia e tristeza. Mas, mais do que a história em si, o que parece interessar a Pirandello, e aos quatro roteiristas, é a observação do comportamento humano. As mesquinharias, as baixarias, as traições, a ausência de caráter, de princípios, de valores morais.

No grande elenco, há belas atrizes – Senta Berger, como Clara, uma prostituta de Roma; Clelia Rondinella, como Oliva, uma camponesa radiante, uma das paixões de Mattia; Laura del Sol, como Romilda, uma interesseira que só pensa em grana; Caroline Berg, como Véronique, uma misteriosa, fascinante funcionária de um grande cassino de Monte Carlo.

Mas a atriz mais impressionante, na minha opinião, é Laura Morante, num papel também fascinante, o de Adriana, uma jovem ingênua que Mattia conhecerá na sua segunda vida, em Roma. Laura Morante, 82 filmes e/ou episódios de TV no currículo, quatro prêmios e outras oito indicações, nascida na Toscana em 1956, tinha 29 anos, mas parecia ter 18. Ela já havia me impressionado, mais madura, em outros filmes – No Limite das Emoções/Ricordati di Me, de Gabrielle Muccino, Um Lugar na Platéia/Fauteils d’Orchestre, de Danièle Thompson, Medos Privados em Lugares Públicos/Coeurs, de Alain Resnais, As Aventuras de Molière/Molière, de Laurent Tirard. Tem uma bela interpretação.

Um filme muito interessante – como seria de se esperar de um reencontro da dupla Monicelli-Mastroianni, que fez o inesquecível Os Companheiros/I Compagni, de 1963. Aliás, a Lume – outra empresa que tem lançado grandes filmes em DVD, como a Versátil – está anunciando para breve o lançamento de Os Companheiros.

As Duas Vidas de Mattia Pascal/Le Due Vite di Mattia Pascal

De Mario Monicelli, Itália-França-Alemanha Ocidental-Espanha-Inglaterra, 1985

Com Marcello Mastroianni (Mattia Pascal), Senta Berger (Clara),  Flavio Bucci (Terenzio Papiano), Laura Morante (Adriana Paleari),  Laura del Sol (Romilda Pescatore), Caroline Berg (Véronique), Andréa Ferréol (Silvia Caporale), Bernard Blier (Anselmo Paleari)

Roteiro Suso Cecchi d’Amico, Ennio De Concini, Mario Monicelli e Amanzio Todini 

Baseado no romance Il fu Mattia Pascal, de Luigi Pirandello 

Música Nicola Piovani   

Fotografia Camillo Bazzoni   

Montagem Ruggero Mastroianni

Produção RAI, Antenne-2, Channel Four Film. DVD Versátil

Cor, 178 min. Há uma versão de 125 min

**1/2

Título na França: La Double Vie de Mathias Pascal

9 Comentários para “As Duas Vidas de Mattia Pascal / Le Due Vite di Mattia Pascal”

  1. um dos raros casos em que o filme é tão bom quanto o livro. aliás, acho que não assisti até hoje um filme do Monicelli de que eu não tenha gostado!

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