Anotação em 2010: Este Princesas, feito pelo jovem madrilenho Fernando León de Aranoa em 2005, me pareceu desconcertante. É quase um grande filme. Tem coisas excelentes, extraordinárias – e outras fracas, mal resolvidas, quase pueris.
É uma bela história de amizade e solidariedade numa sociedade cada vez mais pautada pela concorrência, pelo egoísmo.
Mas é desconcertante. Me deu a sensação de uma obra feita por um jovem de muito talento, mas ainda verde demais, ainda em formação. O que é estranho, porque Princesas foi o 18º roteiro de León de Aranoa, e seu sexto trabalho na direção, pelo que verifico agora, depois de ver o filme – quando vi, não tinha nenhuma informação sobre ele.
De cara, percebi que conhecia a atriz principal, embora não me lembrasse exatamente de onde. É Candela Peña – e Candela Peña é uma das grandes qualidades do filme. É uma atriz soberba, impressionante. (Já tinha visto Candela Peña, verifiquei depois, no excelente Pelos Meus Olhos.) Seu desempenho é maravilhoso – ela empresta a seu personagem, Caye, uma mistura de inocência, pureza, ingenuidade e melancolia, tristeza profunda.
Uma abertura seca, direta, sem floreios
Caye, diminuitivo de Cayetana, é prostituta. Quando a ação começa, ela – vestida normalmente, sem qualquer espalhafato – está em um táxi. Ouvimos uma música cantada por Manu Chao, belíssima, de ritmo quente, forte. Caye desce diante de um hospital, pergunta por determinada pessoa, a recepcionista indaga se ela é da família, ela diz que sim, vai até o quarto que lhe indicaram. No quarto há um garoto que quebrou a perna, e diversos amigos dele, que ligaram para Caye para dá-la de presente para o acidentado, que faz aniversário naquele dia. Caye estabelece as condições, diz que ninguém pode pegar nela, fala o preço, e chupa o pau do aniversariante.
Pouco depois dessa abertura seca, direta, sem floreios, vemos Caye em um salão de beleza simples, com algumas colegas. O salão é envidraçado, dá para uma praça de bairro cheia de putas em shortinhos mínimos, várias delas negras. Percebe-se que Caye e as colegas são freqüentadoras assíduas do salão, amigas das duas proprietárias, moças jovens. Há uma longa conversa entre elas. Discutem o mercado: uma das amigas de Caye se queixa de que as estrangeiras estão atrapalhando seu trabalho, aviltando os preços: algumas estão cobrando apenas 10 euros por uma chupada. Uma das donas do salão acusa a moça de ser racista, ao que ela argumenta: se as estrangeiras abrissem um salão de beleza, ela também iria se revoltar.
O tom direto, seco, sem qualquer firula, aparentemente sem emoção do filme até aí me impressionou – e certamente impressiona qualquer espectador. Pensei: nossa, será que é um filme que vai tratar de prostituição sem qualquer tipo de julgamento moral, sem qualquer questionamento, com uma abordagem neutra, fria, como se fosse uma profissão como outra qualquer?
Um pouco mais adiante, Caye ficará conhecendo uma das estrangeiras, das competidoras que invadiram seu mercado. Caye se atrasa para um encontro marcado com um cliente, chega dez minutos depois da hora combinada – e o cliente está sentado no bar com uma outra mulher. Ríspido, o homem diz que ela se atrasou e perdeu a vez. Caye protesta: mas ele não vai ao menos pagar o táxi? Ele diz que não vai pagar coisa alguma, e sai com a outra mulher do bar.
Pouco depois, Caye percebe que a tal mulher está morando no mesmo prédio que ela. E a mulher deixa um envelope com uma nota de dez euros no apartamento de Caye – o pagamento pelo táxi.
As duas ficarão amigas. A mulher chama-se Zulema (Micaela Nevárez, na foto abaixo), é de São Domingos. É uma jovem de beleza estranha, morena, muito mais alta do que Caye, com pernas longas e belíssimas, peitos fartos. Caye está economizando para fazer uma plástica, para aumentar os seios que considera pequenos.
Zulema tem um filhinho pequeno, de cinco anos. Foi para a Espanha se prostituir para juntar algum dinheiro para melhorar de vida. Não tem documentos, está ilegal no país; um sujeito prometeu conseguir os documentos para ela, em troca de trepadas grátis; é violento, bate nela. Caye a leva para um hospital, depois de um espancamento mais grave.
Não há resposta para a pergunta básica: por quê?
E a partir daí o filme muda de tom. Deixa de lado aquela frieza, aquela aparente neutralidade com que vinha tratando a prostituição, e passa a ser o que seria mais normal – uma denúncia sobre a dureza, o horror que é viver de vender sexo, com todos os perigos envolvidos, a brutalidade que pode vir em cada encontro.
No entanto, há algo estranho na composição do personagem central. Não há resposta alguma à questão básica, a que é feita sempre com relação às prostitutas – por quê? por que a escolha? por que se sujeitar? Ou, como diz Bob Dylan, sintetizando a pergunta feita um bilhão de vezes: “what’s a sweetheart like you doing in a dump like this”?
Explicam-se os motivos de Zulema. Ela saiu de seu país pobre, sem oportunidades, sem chances, para juntar dinheiro para melhorar de vida; manda dinheiro para a mãe que está cuidando de seu filho; pretende voltar a São Domingos assim que tiver economizado um tanto.
Não se explicam os motivos de Caye. Aliás, não se explica muita coisa sobre Caye. Ela é classe média; nos fins de semana, vai almoçar na casa da mãe, onde também estão seu irmão e a mulher dele, diretora de escola. Há problemas na família – a mãe vive uma vida de ilusão, distante da realidade, o pai morreu três anos antes, aparentemente de causa violenta –, mas Caye teve, é óbvio, oportunidades na vida. Pôde estudar, embora seja uma pessoa pouco informada – não conhece nada de informática, por exemplo, nunca ouviu falar em Bill Gates. Por que a opção?
Não se explica. Uma única vez ela diz para Zulema que se prostitui temporariamente, que vai sair daquilo – mas não faz nada para isso, não tenta nada rumo a uma possível saída.
Parece uma personagem não muito bem construída. E, no entanto – e isso de fato me pareceu muito desconcertante –, a atriz Candela Peña compõe uma personagem que parece de carne e osso, real, como alguém que a gente conhece. A Caye que ela cria é, repito, uma mulher que tem uma mistura de inocência, pureza, ingenuidade, com melancolia, tristeza profunda. É solitária – mas generosa, não é nada egoísta, se importa com os outros. É sonhadora – mas parece plenamente consciente de que seus sonhos não vão se realizar.
É desconcertante essa mistura de grandes qualidades com elementos que parecem mal resolvidos.
Parece mal resolvido o personagem de Manuel (Luis Callejo), o homem por quem Caye se apaixona. Não dá para imaginar tamanha ingenuidade, tamanho distanciamento da realidade.
Assim como não dá para imaginar como toda a família ignora completamente o que Caye faz. Tudo bem – a mãe vive longe da realidade. Mas o irmão e a cunhada, não – e parecem nunca se questionarem sobre a vida dela.
“Dá para sentir saudade de algo que não aconteceu?”
Há alguns diálogos belíssimos, alguns monólogos de Caye de imensa beleza – mas, ao mesmo tempo, são tão literários que soam esquisitos, falsos.
Ainda na primeira metade do filme, Caye e Zulema conversam na mesa de um bar. Falam do dia-a-dia da profissão, o que fazem e o que se recusam a fazer, os artifícios para dar tesão nos clientes. De repente Caye pergunta se Zulema não tem saudades de seu país. E aí Caye diz (a seqüência é belíssima, as duas atrizes estão muito bem, Candela Penã dá um show):
– “É estranho, não?, a saudade. A saudade em si não é ruim. Significa que houve coisas boas e sentimos falta delas. Eu, por exemplo, não tenho saudade de nada. Nunca me aconteceu nada tão bom para sentir falta. Isso é uma merda. Dá para sentir saudade de algo que não aconteceu? Comigo às vezes acontece isso. Imagino como serão as coisas. Com os homens, por exemplo, ou com a vida em geral. Fico triste quando lembro de coisas que poderiam acontecer, porque seriam maravilhosas. Realmente maravilhosas. Quando penso nisso, fico com saudade. Porque iam ser tão bonitas… Quando vejo que nunca irão acontecer, fico muito triste. Muito triste. Mas é uma tristeza por conta. Como um depósito, quando se aluga uma casa, mas com tristeza. A gente deposita porque sabe que vai acabar usando.”
Sem nem de longe raspar por nada que seja pornográfico
Bem. Claro que tudo isso é minha opinião pessoal, e posso perfeitamente estar errado. Mas, para mim, pareceu um filme de fato desconcertante. É quase um grande filme, quase uma obra brilhante. Estranho.
De qualquer maneira, é um filme que deve ser visto.
É interessante notar que Princesas trata da amizade de duas mulheres que são prostitutas, focaliza o ambiente de prostituição, sem, em momento algum, ser apelativo, sem nem de longe raspar por nada que seja pornográfico. Exatamente o contrário de um outro filme espanhol da mesma época que também trata de prostituição, Diário Proibido/Diario de una Ninfómana, que até tenta disfarçar, mas não consegue esconder que é puro pornô, pura apelação. Nesse ponto, Princesas parece muito mais com Confissões de uma Garota de Programa, de Steven Soderbergh, que, apesar de ser estrelado por uma musa do cinema pornô, é recatado como uma freira.
Prêmios para as belas interpretações e as belas canções
Princesas ganhou dez prêmios e teve outras 17 indicações. Teve nada menos que nove indicações para o Goya, o Oscar espanhol, e venceu três – atriz para a extraordinária Candela Peña, atriz revelação para Micaela Nevárez, e canção original para “Me llaman calle”, de Manu Chao.
“Me llaman calle” aparece no final do filme, nos créditos finais. Uma beleza de canção, como diversas outras de Manu Chao – uma estranha mistura de um som alegre, de ritmo quente, festivo, com uma letra barra pesada. O próprio título da canção é um achado: o som da palavra calle – rua, é claro – faz lembrar Caye, o nome da triste protagonista.
A canção que abre o filme, quando Caye está no táxi a caminho de um trabalho no hospital, “Cinco razones”, é tão forte, tão bela, que o diretor León de Aranoa a repete mais duas vezes ao longo do filme.
Pelo que vejo na internet, o filme que tornou León de Aranoa conhecido e respeitado foi Segunda-Feira ao Sol/Los Lunes ao Sol, de 2002, com Javier Bardem. Vou atrás dele.
Princesas
De Fernando León de Aranoa, Espanha, 2005
Com Candela Peña (Caye), Micaela Nevárez (Zulema), Mariana Cordero (Pilar), Llum Barrera (Gloria), Violeta Pérez (Caren), Mònica Van Campen (Ángela), Flora Álvarez (Rosa), María Ballesteros (Miss Metadona), Alejandra Llorente (Mamen), Luis Callejo (Manuel)
Argumento e roteiro Fernando León de Aranoa
Fotografia Ramiro Civita
Música Alfonso Vilallonga
Com canções de Mano Chao
Produção Reposado Producciones, Mediapro, Antena 3 Televisión . DVD Dreamland Filmes.
Cor, 113 min
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