Anotação em 2010: Quase meio século depois, esta produção anglo-americana de 1961, com roteiro do americano Carl Foreman e direção do inglês J. Lee Thompson, continua sendo um dos grandes filmes de guerra no estilo padrão, tradicional.
Com essa expressão, quero designar aquele tipo de filme sobre batalhas ou missões de um determinado grupo de soldados. Não estão incluídos aí os filmes abertamente pacifistas, antimilitaristas, como, por exemplo, Johnny Vai à Guerra, de Dalton Trumbo, ou Feliz Natal, de Christian Carion, ou Glória Feita de Sangue/Paths of Glory, de Stanley Kubrick, ou Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola.
Não que os filmes desse estilo tradicional sejam pró-guerra; não é isso. Mas o objetivo principal deles é mostrar as ações de guerra – mesmo que, aqui ou ali, haja questionamentos sobre a insanidade que são todas as guerras.
Não sei se estou sendo claro, se me faço entender. Mas vamos em frente.
Os Canhões de Navarone mostra o dia a dia de um grupo de seis oficiais e soldados aliados que recebe uma missão tida por todos como impossível: chegar a uma ilha grega dominada pelos nazistas, e destruir os poderosíssimos, moderníssimos, gigantescos canhões que dominam toda uma área do Mar Egeu e não permitem a passagem por ali dos navios aliados. O comando, formado por especialistas em diversas áreas, tem prazo curtíssimo para executar a tarefa: dentro de seis dias, os nazistas invadirão uma outra ilha da região onde há 2 mil soldados ingleses; para que eles possam ser retirados de lá nesse prazo, os canhões de Navarone têm que ser destruídos antes do sexto dia.
Há dezenas e dezenas de filmes de guerra em que comandos são formados para executar determinada missão praticamente impossível. Parte da ação de A Ponte do Rio Kwai, só para dar o exemplo de outro grande clássico da mesma época, envolve um comando – também formado por ingleses e americanos – encarregado de penetrar na selva da então Birmânia (hoje Mianmá) e destruir a ponte que está sendo construída por prisioneiros aliados, sob as ordens das forças japonesas.
Bons personagens, excelentes atores
São várias as características que tornam Os Canhões de Navarone um filme especial dentro do gênero. A principal delas talvez seja o desenho, a criação dos diversos personagens, que são plausíveis, são seres humanos. Embora cada um tenha sua característica, sua especialidade, são mais do que meros estereótipos.
Soma-se a esse gol do roteirista Carl Foreman – sujeito experiente, mestre em sua arte, autor do roteiro de Matar ou Morrer/High Noon, aquela maravilha – uma grande felicidade na escolha de bons atores perfeitos para cada papel. Os três principais, Gregory Peck, David Niven e Anthony Quinn, estavam no auge de suas carreiras. Anthony Quayle e Stanley Baker são extremamente competentes. Richard Harris aparece em uma única seqüência, fala 30 vezes a palavra bloody – uma espécie assim de maldito; naquela época, ainda não se falava fuck 30 vezes por minuto no cinema – e deixa sua marca. Para os dois papéis femininos, a produção teve Irene Papas, a maior estrela do cinema grego da época, e a bela italiana Gia Scalla.
Uma outra bela característica é o realismo com que o roteirista e o diretor conseguiram montar as seqüências de ação, em especial as iniciais, as que precedem o enfrentamento propriamente dito com os nazistas. A longa seqüência do pequeno barco de pesca ocupado pelos homens do comando enfrentando uma brutal tempestade é de um brilho absoluto; difícil imaginar seqüência tão poderosa nos filmes de hoje, da época das imagens geradas por computador. E também a seqüência que se segue a essa, a escalada do gigantesco penhasco, igualmente longa, igualmente brilhante, é de tirar o fôlego, 50 anos depois que foi feita.
Muitos embates entre os homens do pequeno comando
Os embates entre os personagens principais também são bem construídos. Mallory, o capitão americano interpretado por Gregory Peck, especialista em alpinismo, que fala muito bem alemão e conhece bem a Grécia, tem uma forte ligação com chipriota grego Stavrov (o papel de Anthony Quinn), um guerreiro nato, desses tipos que dão a impressão de serem imbatíveis. Parecem grandes amigos. E será só durante a tal tempestade no mar que o espectador ficará sabendo que Stavrov jurou que vai matar Mallory assim que a guerra terminar.
O comandante da operação é o major inglês Franklin (o papel de Anthony Quayle), mas ele ficará ferido na escalada do penhasco, e, quando Mallory assume a posição de comando, enfrenta resistência forte do cabo Miller (o papel de David Niven), a figura central da missão, o expert em explosivos. E Mallory ainda vai questionar com dureza o sub-oficial Brown (Stanley Baker), que, tido como especialista em matar a sangue frio, bem no início da missão tem um momento de vacilação.
Tem lá algumas forçadas de barra – mas as qualidades são muitas
É preciso admitir, por mais que se goste do filme (e eu gosto bastante): há algumas situações em que se força a barra. Os membros do comando às vezes têm sorte demais, os alemães têm mira de menos. Às vezes a missão – complexa, difícil, impossível – se revela meio fácil demais.
Mas a produção é toda tão bem cuidada, os personagens são ricos, os atores são ótimos, os diálogos são bons, a fotografia é esplendorosa, e a gente acaba dando um desconto e deixando passar essas forçadas de barra.
Claro: um garoto que vir o filme hoje pela primeira vez pode estranhar um pouco o ritmo, bem mais lento que o dos filmes pós-anos 80, pós-estética de videoclip. Haverá quem possa achar o filme longo demais – são 156 minutos. Haverá quem possa achar a narrativa meio tradicional demais, “acadêmica”, essa palavra com a qual se tenta destruir as obras que não vêm com fogos de artifício fáceis e criativóis.
Mas é um belo filme de guerra daqueles do estilo padrão. Dos melhores que há.
E, para não passar batido, para não parecer que aquilo ali é uma ode à guerra, ao heroísmo de um grupo de pessoas especiais, Carl Foreman criou diversos diálogos brilhantes. Há uma discussão durísima entre o cabo inglês Miller, o homem dos explosivos, e o capitão Mallory, lá pela metade do filme:
Miller: – “Dane-se a missão. Já estive em centenas de missões e nenhuma delas alterou o curso da guerra. Não dou a mínima para a guerra. Agora, eu me preocupo é com Roy!”
Mallory: – “Mas e se os turcos entrarem na guerra do lado errado?
Miller: – “E daí? Deixe que a droga do mundo inteire acabe, é o que ele merece.”
E ainda há, quase no final, a duríssima confrontação entre os membros do comando, quando surge a dúvida sobre a existência entre eles de um traidor. É uma seqüência emocionante, impressionante.
Sete indicações ao Oscar, terceira melhor bilheteria do ano
O filme teve sete indicações ao Oscar, inclusive para os dois mais importantes, de melhor filme e melhor diretor. Perdeu os dois para West Side Story. Aí não dá nem para tentar discutir; era o ano de West Side Story, fazer o quê? O drama musical de Robert Wise e Jerome Robbins, com a música magnífica de Leonard Bernstein e letras de Stephen Sondheim, um marco do cinema mundial, levou dez Oscars. Para Os Canhões de Navarone ficou só um, o de efeitos especiais.
Vejo no livro Box Office Hits, de Susan Sackett, que o filme foi a terceira maior bilheteria de 1961 nos Estados Unidos, atrás de 101 Dálmatas, da Disney, e exatamente de West Side Story. O livro informa que o orçamento – imenso, para a época – foi de US$ 6 milhões, e a renda nas bilheterias, nos Estados Unidos, de US$ 13 milhões. O roteitista Foreman, que foi também o produtor, passou um ano percorrendo ilhas do Mar Egeu até se definir por fazer as tomadas externas em Rhodes; cerca de mil soldados gregos foram usados como extras, no papel de soldados nazistas – há agradecimentos às autoridades e ao povo grego nos créditos iniciais. O livro cita ainda trechos de críticas elogiosas da revista Time e do New York Times.
O livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer não inclui Os Canhões da Navarone. Já o 501 Must-See Movies, que faz divisão por gênero, põe o filme entre os 50 melhores de guerra. Diz o texto que o filme foi um tremendo sucesso de público e um dos melhores de seu tipo: “A ação fala mais alto que palavras, embora o roteiro de Carl Foreman tenha muito a dizer a respeito das várias lealdades e motivações dos personagens interpretados por um elenco excelente com Niven quase roubando o show como um cínico e covarde membro do comando. O filme deu origem a muitas imitações, inclusive uma seqüência inferior chamada Force Ten From Navarone (1978)”.
Os personagens dos três grandes atores
O adjetivo covarde não é o mais adequado para o personagem de David Niven, mas concordo que o ator quase rouba o show. Niven era um grande ator, e o público estava acostumado a vê-lo sempre elegante, de terno e gravata, ou de smoking, como um milionário ou bon-vivant; é um choque vê-lo no papel do professor de Química que acaba virando cabo e especialista em explosivos.
Interessante: me ocorre agora que, enquanto David Niven interpretava um personagem muito diferente do seu usual, Anthony Quinn, ao contrário, faz um coronel Andrea Stavrov que é um bastante parecido com diversos outros que o ator interpretou na sua carreira: corajoso, sem medo de nada, expansivo, de gestos muito amplos, muito largos – às vezes como um ator que exagera. A seqüência em que o comando está preso pelos nazistas e ele começa a falar e gesticular sem parar mostra o Anthony Quinn mais típico que poderia haver.
David Niven muito diferente dos personagens usuais de David Niven normal, Anthony Quinn muito parecido com os personagens usuais de Anthony Quinn. E o grande Gregory Peck… hum, este fica no meio do caminho; nem tão igual aos seus demais personagens, nem tão diferente.
Gregory Peck interpretou, na sua imensa e admirável carreira, uma dezena de homens íntegros, dignos, altivos. Se fôssemos reduzir alguns dos grandes atores da época de ouro do cinema americano nos traços definidores de seus personagens, teríamos talvez que Gary Cooper é o homem comum, simples, do povo, de caráter imaculado; Humphrey Bogart é sujeito de vida interior rica e conturbada, mas pouco expansivo, fechado; John Wayne é o cara forte, sem dúvidas na cabeça; Katharine Hepburn é a determinação, a independência, o espírito indomado; Gregory Peck é a dignidade.
Não é à toa que foi ele que fez o papel do jornalista que leva a princesa Audrey Hepburn bebinha para seu quarto e não encosta um dedo sequer nos cabelos dela, em A Princesa e o Plebeu/Roman Holiday; não é a toa que foi ele que interpretou o escritor que se faz passar por judeu para vivenciar o quanto havia de racismo não no Sul Profundo e atrasado, mas na capital do Império e seus arredores, em A Luz é para Todos/Gentlemen’s Agreement; e, em especial, não é à toa que a Academia deu a ele o Oscar por sua interpretação como Atticus Finch, possivelmente o personagem mais digno que o cinema já mostrou, em O Sol é para Todos/To Kill a Mockinbird.
Um homem digno metido até a cabeça na lama
O capitão Mallory que Peck constrói em Os Canhões de Navarone é um homem digno – mas um homem digno metido até a cabeça na lama (para não dizer outra coisa) da guerra. E não há dignidade que possa permanecer inteira quando se está metido na lama (ou coisa pior) até a cabeça. No diálogo com o major Franklin, no meio da tempestade que ameaça o frágil bote de pescadores, em que conta por que seu amigo Stavrov o jurou de morte, ele diz que até recentemente ainda tinha “algumas noções românticas a respeito de lutar numa guerra civilizada”.
Bem mais tarde, o capitão Mallory dirá:
– “O único jeito de ganhar uma guerra é ser tão nojento quanto o inimigo. Uma coisa que me preocupa é que talvez a gente acorde uma manhã e perceba que ficamos mais nojentos do que ele.”
O cabo Miller vai acusá-lo de gostar da guerra, pelo fato de ser um oficial. O enfrentamento é duríssimo – e aí brilha o talento do roteirista Carl Foreman:
Miller: – “Eu não quero matar ninguém. Não nasci soldado. Caí na armadilha. (…) Não, prefiro deixar os assassinatos para alguém como você, um oficial e um cavalheiro, um líder de homens.”
Mallory: – “Se você achar que eu quis isso, você está louco. Caí na armadilha como você, exatamente como qualquer um que veste um uniforme.”
Miller: – “É claro que você quis – você é um oficial, não é? Nunca deixei que eles me transformassem em um oficial. Não quero a responsabilidade”
Mallory: – “Então você está em vôo livre o tempo todo! Alguém tem que assumir a responsabilidade se quiser que o serviço seja feito. Você acha que é fácil?”
É isso. O capitão Mallory de Gregory Peck é um homem digno, mas que caiu na armadilha indigna. Deram a ele, embora não tivesse pedido, a responsabilidade por enfiar a mão no gigantesco pote de merda.
Sim, é isso. Neste filme, o personagem de Gregory Peck, o ator que sempre personificou a dignidade, é um homem digno que tem a obrigação de meter a mão na merda.
O Guia de Tulard diz que o filme é “muito acadêmico”
Leonard Maltin dá 3.5 estrelas em 4 para o filme. Dame Kael e Roger Ebert não se pronunciaram – ao menos a tempo de entrar no Cinemania. Gostaria de ver a opinião de um europeu. Ahá: Jean Tulard não gostou; deu 1 estrela em 4, e sentenciou: “Depois do sucesso da Pont de la Rivière Kwai, Foreman retoma as velhas receitas em um filme solidamente construído mas muito acadêmico. No entanto, fez sucesso na época”.
Depois de ver o mestre francês usar a palavra acadêmico como sinônimo de ruim (como os petistas fazem com o termo ‘neoliberal’, pouco se importando para o que ele significa, ou para a verdade dos fatos), passo a gostar ainda mais de Os Canhões de Navarone. É um dos grandes filmes de guerra da história, na minha opinião.
Os Canhões de Navarone/The Guns of Navarone
De J. Lee Thompson, Inglaterra-EUA, 1961
Com Gregory Peck (capitão Keith Mallory), David Niven (cabo Miller),
Anthony Quinn (coronel Andrea Stavrov), Stanley Baker (Butcher Brown), Anthony Quayle (major Roy Franklin), Richard Harris (Barnsby), James Darren (Spiro Pappadimos), Irene Papas (Maria Pappadimos), Gia Scala (Anna)
Roteiro Carl Foreman
Baseado no livro de Alistair MacLean
Fotografia Oswald Morris
Música Dimitri Tiomkin
Produção Columbia Pictures
Cor, 156 min
R, ***1/2
Estou na minha fase Gregory Peck. Preciso rever esse. Ah, o 1001 Filmes… é um guia razoável, mas também não tem Sociedade dos Poetas Mortos. Ou seja: imperfeito, como todos os guias, aliás…
Excelente artigo
Revi depois de décadas e adorei de novo,mais pelo elenco.De Gregory Peck nem se pode falar… sempre magnífico. E de David Niven lembro com prazer dos seus dois livros, que não existem mais.Notáveis&adoráveis! O comentário, como sempre,está excelente….!
Alguém sabe me dizer se Stavirov cumpriu a promessa, ou perdoou Malory?
Caro Sérgio, se me permite, sua crítica,para variar, excelente. Assinaria em baixo, se pudesse. O último parágrafo é exemplar!