(Disponível no YouTube em 12/2024.)
The Sleeping Tiger, no Brasil O Monstro de Londres, co-produção Reino Unido-EUA de 1954, começa com a preparação para um assalto. Enquanto rolam os créditos iniciais, dois bandidos seguem, um distante do outro, um homem que caminha à noite pelas ruas de Londres. Ao final dos créditos, logo depois do último letreiro, que diz “produced and directed by Victor Hanbury”, vemos um revólver na mão do bandido que espera numa esquina a chegada da vítima.
(O crédito é mentiroso. O diretor do filme é Joseph Losey.)
Uma nova tomada mostra o bandido atrás da vítima, encostando o cano do revólver nas suas costas. Não vemos o rosto dos dois homens – a câmara focaliza os dois do pescoço para baixo.
Aí – surpresa! A vítima começa a levantar os braços, mas, em movimentos ágeis, rápidos, certeiros, segura a mão do bandido, torce seu braço e fica com a arma.
Corta, e agora é de dia, um táxi chega a uma sólida, imensa casa. A proprietária, Glenda Esmond (o papel de Alexis Smith), está voltando antes do previsto de uma viagem a Paris. A empregada, Sally (Patricia McCarron), a recebe com um caloroso “Estou feliz que a senhora está de volta”. Glenda se aproxima de um pequeno móvel, provavelmente para deixar ali a bolsa, ou algo assim, e, em um espelho da parede, o espectador vê – antes mesmo que a mulher – que há um homem, de pé, em um dos aposentos ali do andar térreo da casa. Veremos que se chama Frank Clemmons, o papel de Dirk Bogarde, então com 33 anos de idade e já 20 títulos na filmografia, no auge da fama e da beleza jovem.
Quando vê o desconhecido, ela vai até um pouco mais perto dele: – “Está esperando para ver o dr. Esmond?” O estranho fala que sim, e Glenda diz que é a mulher do dr. Esmond, e que ele pode se sentar. Em seguida, sobe as escadas e vai para seu quarto, onde Sally já está desfazendo as malas da patroa.
– “Por que você deixa um paciente esperar na sala de estar?”
A empregada responde com um tom de voz irritadiço, algo bastante impróprio: – “Ele não é um paciente. É um hóspede.” E, evidentemente repetindo o que ouviu do patrão, acrescenta: – “E ele deve ser tratado como um membro da família.” Em seguida, afirma que o homem é um ladrão, um criminoso. Ela ouviu o doutor dizer isso à srta. Duncan – Carol Duncan, a assistente do médico.
– “Ele apontou uma arma para o doutor”, diz Sally. “Em vez de estar na prisão, que era o lugar dele, ele está hospedado na casa por seis meses, para passar por uma…”
Glenda diz a palavra que a empregada não conseguia lembrar:
– “Terapia.”
Sally continua falando. Informa que não vai ficar numa casa com um atirador – diz que vai pedir demissão.
Logo em seguida Glenda revê o marido, o dr. Clive Esmond (o papel de Alexander Knox, na foto abaixo), psiquiatra famoso, respeitado, dedicado a compreender a mente dos criminosos.
– “O rapaz é jovem, é inteligente. Se eu conseguir entender como sua mente funciona, talvez eu consiga melhorá-lo. Por outro lado, bem, seria um completo desperdício de um ser humano. Se ele for para a prisão novamente, ele estará acabado – tenho certeza disso.”
Quando chegamos aos 6 minutos de The Sleeping Tiger, o filme já disse a que veio, já colocou praticamente todas as cartas na mesa.
Qualquer espectador que some 2 e 2 sabe que o bandido que o bondoso, humanitário psiquiatra levou para sua própria casa como objeto de estudo, pesquisa, em vez de entregá-lo à polícia, vai ter um caso com a bela mulher.
O primeiro beijo acontece quando estamos com 37 minutos. Aos 41, Glenda e Frank estão se beijando, agarrados, no chão do campo inglês – e aí vem um fade out, o escurecimento da tela por milésimos de segundo, antes que surja a sequência seguinte. E esta é uma velha regra da gramática cinematográfica: quando um casal está se beijando e corta a cena, vem um fade out, é porque vem sexo.
Um ser político, um homem de esquerda
The Sleeping Tiger foi o primeiro filme de Joseph Losey depois que ele deixou os Estados Unidos, onde não podia mais trabalhar porque o macarthismo o havia colocado na lista negra dos comunistas ou filo-comunistas identificados como tal pelo HUAC, House Un-American Activities Committee, Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara dos Representantes.
Foi também o primeiro dos cinco que faria com Dirk Bogarde, e o primeiro dos quatro com Alexander Knox.
Joseph Walton Losey III (1909-1984) começou a carreira nos anos 30 em Nova York, dirigindo peças de conteúdo político. Em 1935, passou alguns meses na União Soviética stalinista, para estudar o teatro russo – muitos escritores, intelectuais e artistas americanos de esquerda, como Lillian Hellman e John Steinbeck, para dar apenas dois exemplos, eram fascinados pelo teatro russo e pelo comunismo, e visitaram a União Soviética. Em Moscou, Losey começou uma amizade com Bertolt Brecht e o compositor Hanns Eisler, que prosseguiu mais tarde, quando os dois se radicaram nos Estados Unidos fugindo do nazismo.
Depois de ter servido no Exército na Segunda Guerra Mundial, Losey radicou-se em Hollywood, e, depois de cinco curtas, lançou seu primeiro longa-metragem, em 1948, O Menino de Cabelos Verdes, uma alegoria política. Fez mais cinco filmes em Hollywood – entre eles O Fugitivo de Santa Marta/The Lawless (1950), uma denúncia firme do racismo, do sensacionalismo da imprensa, da intolerância, do abismo entre as classes sociais.
Esses seis filmes foram o bastante para tornar Losey um ídolo dos críticos – e, juntamente com todo seu passado, foram os responsáveis por levá-lo à lista negra do HUAC. Sem conseguir trabalho em seu país, foi para a Europa. Radicou-se na Inglaterra, onde fez o restante de seus filmes, vários deles indicados para os prêmios mais importantes, como o Bafta, a Palma de Ouro de Cannes, o César francês – Estranho Acidente (1967), O Mensageiro (1971), Cidadão Klein (1976), Don Giovanni (1980).
Como o diretor, os roteiristas estavam na lista negra
Como este The Sleeping Tiger foi rodado na Inglaterra, produzido pelo londrino Victor Hanbury, ele poderia, teoricamente, ter sido lançado com o nome de Joseph Losey nos créditos – afinal, a lista negra era coisa dos Estados Unidos, naqueles anos quem a paranóia macartista via comunistas em todos os lugares, até embaixo das camas da Casa Branca.
O que consta é que os atores Alexis Smith e Alexander Knox – ambos canadenses de nascimento, mas ativos no cinema de Hollywood –, temiam que sua participação em um filme dirigido por um proscrito, um proibido pelo HUAC, pudesse atrapalhar suas carreiras. E assim Losey conseguiu convencer o produtor Victor Hanbury a assinar a direção.
Várias cópias do filme, inclusive a lançada em DVD nos Estados Unidos, mantiveram o nome de Hanbury como diretor, informa o IMDb. A cópia disponível atualmente no YouTube, que foi a que vi, é uma dessas. Mas há outras em que os créditos iniciais foram alterados, e Losey é creditado – e foi com o nome do diretor que o filme foi exibido na TV britânica.
Também os autores do roteiro, Carl Foreman e Harold Buchman, estavam na lista negra do macarthismo – e nos créditos aparece um front, um testa de ferro, Derek Fryer. (Carl Foreman, é obrigatório registrar, foi co-autor do roteiro de Matar ou Morrer/High Noon, 1952, e Os Canhões de Navarone, 1961. E faria um único filme como diretor, que me encantou profundamente quando era ainda garoto, em Belo Horizonte, Os Vitoriosos/The Victors, 1963, sobre como a chegada dos Aliados a Berlim em 1945 já prenunciava o início de outra guerra, a fria.)
A intenção é muito boa, positiva, correta. Mas…
Foreman e Buchman se basearam no romance The Sleeping Tiger, lançado no mesmo ano do filme, 1954, de autoria de Maurice Moiseiwitsch (1914-1972), nascido em Odessa, então Império Russo, e radicado na Inglaterra.
Dá para compreender por que o livro atraiu o esquerdista Joseph Losey. São muito caros à visão humanista da esquerda os conceitos de que em geral os criminosos são um produto do seu meio, da sociedade em que vivem, dos problemas psicológicos advindos da criação em famílias pobres ou disfuncionais – e de que eles podem e devem ser preparados para voltar a viver dentro da lei, podem e devem ser ressocializados. Da mesma forma com que, para a direita, em especial a extrema direita, o que vale é a Lei do Talião, o olho por olho dente por dente – em suma, bandido bom é bandido morto. São mesmo visões de mundo opostas, antagônicas.
Dias depois de ver o filme, e com esta anotação aqui embatucada, empacada, difícil de sair, me lembrei de um outro filme britânico, bem mais recente, Longford (2006), de Tom Hooper, uma biografia de Lord Longford, político, reformista social, religioso, escritor, nascido em 1905, que dedicou a vida a lutar incansavelmente pela reforma das leis penais e das prisões britânicas. Ele visitou prisioneiros semanalmente desde os anos 1930 até sua morte, em 2001, aos 95 anos; defendeu programas de reabilitação de criminosos condenados e ajudou a criar o sistema moderno de liberdade condicional.
Não é improvável que a luta sem tréguas de Lord Longford tenha influenciado o escritor Maurice Moiseiwitsch a criar seu The Sleeping Tiger e o personagem do dr. Clive Esmond, um batalhador pela dignidade das pessoas, um believer, um fervoroso adepto da crença de que todos os seres humanos merecem uma segunda chance.
É aquela tal coisa: de boas intenções o inferno está cheio.
A questão, me parece, é que a trama que ele escreveu, ou a forma com que os roteiristas Carl Foreman e Harold Buchman a apresentaram, é uma absoluta, arrematada bobagem, uma porcaria, um lixo.
É tudo absolutamente implausível, absurdo, falso, forçado. Não tem absolutamente nada a ver com a vida real. É tudo artificial, pior que flor de plástico.
Ninguém, em sã consciência – por mais bondoso, humanitário, believer, caridoso, altruísta que seja – levaria para sua própria casa o sujeito que encostou o cano de um revólver em suas costas. E o manteria na sua casa por seis meses – sabendo que sua mulher iria passar muito tempo com o sujeito, que acontecia de ter uma faccia bela, e ser jovem.
Há detalhes especialmente irritantes: como é possível que o psiquiatra e sua mulher tenham comprado para o bandido aquela imensa quantidade de boas roupas? Meu, o Frank Clemmons de Dirk Bogarde não repete roupa uma única vez, ao longo dos intermináveis, insuportáveis 89 minutos do filme!
Esqueça a trama, recomenda o crítico que venera o diretor
Tudo isso aí dos últimos parágrafos é opinião minha, obviamente. Nenhum crítico de cinema falaria mal de um filme de Joseph Losey. Eu posso falar porque não sou crítico de cinema – e porque estou velho demais para reverenciar filme ruim só porque o autor é endeusado.
Leonard Maltin, por exemplo, deu 3 estrelas em 4 para o abacaxi azedo: “Drama bem feito, com Knox como um psiquiatra que leva o criminoso low-life para dentro de sua casa, para grande consternação de sua esposa (Smith, em um de seus melhores papéis); o resultado são fogos de artifício sexuais e emocionais. Primeiro filme de Losey fora dos EUA, onde ele entrou na lista negra; isso explica seu pseudônimo.”
Hummm… Há problemas aí. Low-life é literalmente vida baixa, claro, portanto pobre, inferior. Não é verdade. Logo no primeiro diálogo entre o psiquiatra e sua mulher ele diz que o bandido não vem de família pobre – o pai dele era um militar de carreira. Não é verdade, também, que Glenda Esmond tenha tido grande consternação por abrigar o bandido em casa. Nesse mesmo diálogo inicial, ela diz saber que, para o marido, aquela experiência – ter um criminoso à sua disposição para um tratamento psiquiátrico/psicológico – tem muita importância. E diz que por ela tudo bem ter um bandido dentro de casa – ela sabe se cuidar.
No verbete sobre o filme do Film Guide da revista britânica Time Out, encontro uma pérola que demonstra como os críticos fazem malabarismos para defender um filme ruim assinado por um nome venerável, augusto, vetusto.
“Esqueça a trama, que se desvia pelo lado selvagem, com um psicanalista (Knox) que experimentalmente instala um formoso jovem pistoleiro (Bogarde) em sua casa, apenas para descobrir para surpresa de ninguém a não ser dele mesmo que o tigre adormecido do id de sua mulher é mais poderoso do que o de seu paciente. Aproveite a tensão na corda bamba da direção de Losey, a paranóia que carrega suas imagens com eletricidade. O primeiro longa-metragem britânico de Losey, feito sob pseudônimo à sombra da lista negra, abandona as modulações clássicas de The Prowler (no Brasil, Cúmplice das Sombras). Em vez disso, você vê as dores do parto do que veio a ser conhecido como o Losey barroco, irrompendo grandiosamente na sequência final, com o carro dos amantes colidindo com um painel para naufragar sob as patas desenfreadas do tigre da Esso.”
Sensacional!
Esqueça a trama, que é uma idiotice danada mesmo, e curta o estiloso estilo do genial Losey!
Bah!
Anotação em dezembro de 2024
O Monstro de Londres/The Sleeping Tiger
De Joseph Losey (como Victor Hanbury), Reino Unido-EUA, 1954
Com Dirk Bogarde (Frank Clemmons),
Alexis Smith (Glenda Esmond),
Alexander Knox (dr. Clive Esmond)
e Hugh Griffith (inspetor Simmons), Patricia McCarron (Sally, a empregada dos Esmond), Maxine Audley (Carol Duncan, a assistente do dr. Clive Esmond), Glyn Houston (Bailey, o noivo de Sally), Harry Towb (Harry), Russell Waters (gerente), Billie Whitelaw (recepcionista), Fred Griffiths (motorista de táxi)
Roteiro Carl Foreman e Harold Buchman (como Derek Fryer)
Baseado no romance de Maurice Moiseiwitsch
Fotografia Harry Waxman
Música Malcolm Arnold
Direção musical Muir Mathieson
Roteiro Reginald Mills
Direção de arte John Stoll
Produção Victor Hanbury, Insignia, Dorast Pictures
P&B, 89 min (1h29)
*
“Ninguém, em sã consciência – por mais bondoso, humanitário, believer, caridoso, altruísta que seja – levaria para sua própria casa o sujeito que encostou o cano de um revólver em suas costas.”
Olha, rapaz, o sujeito era o Dirk Bogarde… Eu levaria pra casa, sim… rsrsrsrsrs
Fiquei toda alegre, filme com Dirk Bogarde nota 3,5, quebrei a cara kkkkkkkkkkkkkkkk
Não existe filme ruim com esse homem, se ele está na tela, sempre vale a pena. Sim, eu também faço malabarismo, kkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Vixe, Senhorita, foi um baita erro meu, um deslize: a cotação que dou para o filme é 1 estrela em 4. Postei erradamente 3,5… Levei um tempinho para perceber, mas aí mudei…
Veja o filme, Senhorita… Tá no YouTube, na boa… E aí depois você me diz… =
Um grande abraço!
Sérgio
Ah, mas eu já vi… Não daria nota 1, mas minha opinião sobre qualquer filme com esse homem não é de confiança, rs