Anotação em 2010: Nine é um extraordinário, sensacional banquete para os olhos. O filme tem uma beleza visual acachapante, estonteante, que é ainda mais realçada pela maravilhosa mistura de fotografia em cores esplendorosas com um não menos esplendoroso preto-e-branco.
Uma vez alguém observou que, nos filmes de Alan Parker, as ruas das cidades estão sempre molhadas, para refletir o brilho das luzes e parecerem mais belas que a realidade. O diretor Rob Marshall adotou o estilo: nas tomadas externas, nas ruas de Roma, os paralepídedos brilham.
Cada tomada parece uma cuidadosa pintura, quase como nas produções mais requintadas do mestre Kurosawa.
Mas a beleza maior, é claro, é das atrizes. Nine é candidato ao título de o filme que reúne mais mulheres estonteantemente belas de todos os tempos. Meu Deus do céu e também da terra: Marion Cotillard, Penélope Cruz, Kate Hudson, Nicole Kidman, Sophia Loren, Fergie (e ainda o talento e a beleza elegantérrima de Judi Dench). É de deixar qualquer voyeur tonto. Louras, morenas, ruiva, todas lindíssimas, vindas de diversos países – França, Espanha, Estados Unidos, Austrália, Itália, Inglaterra… Cacilda!
E, no meio desse absurdo harém, um dos maiores atores do cinema, Daniel Day-Lewis. Um luxo de elenco, um luxo de direção de arte, de figurinos, de montagem, de fotografia…
O Oito e Meio de Fellini recriado com música
E o tema é agradável, gostoso, atraente: famoso diretor de cinema italiano, incensado pela imprensa, adorado pelo público, está para realizar seu nono filme, depois de sete êxitos e dois fracassos – só que não sabe o que filmar, está em profunda crise criativa.
Todo mundo está cansado de saber que Nine se baseia num musical da Broadway, que por sua vez se baseia em Oito e Meio, o filme de Federico Fellini de 1963. Em Oito e Meio, o cineasta Guido Anselmi – o retrato escancarado do próprio autor, seu alter-ego perfeito, só que mais belo, na pele de Marcello Mastroianni – vive as situações que o musical da Broadway copiou. Tanto que o personagem central, interpretado por Daniel Day-Lewis, também se chama Guido, Guido Contini – um sobrenome que remete diretamente a Fellini.
O Guido de Fellini tinha em volta de si Claudia Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo. Timinho danado de belo.
Fellini chamou seu filme de Oito e Meio porque foi seu oitavo e meio filme – antes, havia feito sete longa-metragens e um episódio de um filme de quatro episódios, Boccaccio 70. Na adaptação para o musical no teatro e agora para a versão filmada da peça, simplificou-se para Nine, o nono filme da carreira do diretor Guidfo Contini.
Para fellinizar ainda mais seu filme, Rob Marshall põe Guido e sua diva e musa, a atriz Claudia (atenção para o nome, Claudia, como La Cardinale), interpretada por Nicole Kidman, junto da Fontana di Trevi – exatamente o local onde Fellini filmou uma das mais famosas seqüências da história do cinema, aquela em que Anita Ekberg, de vestido negro de noite, entra no espelho d’água da fonte romana.
E, para exagerar na fellinização, Rob Marshall ainda colocou em seu filme, nas seqüências finais, cenas em que aparece a própria Claudia Cardinale dos anos 60.
Por tudo isso, me chocou o fato de que, nos créditos finais de Nine, longos, longuíssimos, detalhadíssimos, como atualmente se usa, não haver sequer uma menção a Oito e Meio e a Federico Fellini. Muito doido, isso.
Fellini e Fosse juntos, no filme dirigido por Rob Marshall
Há mais ligações entre Nine e Fellini do que pode parecer. Unindo Nine e Fellini existe um artista maior, um gigante da arte, Bob Fosse.
Bailarino, cantor bissexto, coreógrafo, diretor de musicais da Broadway, autor de apenas cinco filmes, ao longo de 15 anos – cinco pérolas –, Fosse era um apaixonado por Fellini. Transformou Noites de Cabíria, a tristíssima história de uma prostituta de coração gigantesco e nenhuma sorte na vida, filmada por Fellini com sua mulher Giulietta Masina em 1957, em um musical, Charity, Meu Amor/Sweet Charity, em 1968, com Shirley MacLaine no papel central.
O estilo de filmar de Bob Fosse é profundamente influenciado pelo de Fellini. Há coisas em Cabaret – como o deslocamento na ordem cronológica da bola que o garoto joga numa escada, no lugar onde Sally Bowles vai fazer um aborto – que indicam essa influência. Mas é em All That Jazz, de 1979, que ele mais escancara sua admiração pelo mestre italiano. All That Jazz é a versão pessoal de Bob Fosse para Oito e Meio; absolutamente autobiográfico, o filme conta a história de Joe Gideon (Roy Scheider), o perfeito alter ego do autor, bailarino, coreógrafo, perfeccionista, workaholic, trabalhador incansável, ourives preciosista, que acabou de dirigir um musical de teatro, está preparando o espetáculo seguinte e ao mesmo tempo montando seu novo filme. Joe Gideon está para Bob Fosse em All That Jazz assim como Guido Anselmi está para Fellini em Oito e Meio.
Rob Marshall é um discípulo direto de Bob Fosse. Seu Chicago, de 2002, seis Oscars, incluindo o de melhor filme, mais 24 outros prêmios e 54 indicações, foi a transposição para a tela de um musical da Broadway escrito por Fosse – e exatamente no estilo de Fosse.
As seqüências iniciais de Nine fazem lembrar tanto Oito e Meio quanto All That Jazz – o filme abre com Guido Contini dando uma entrevista coletiva, e em seguida vamos para um estúdio na Cinecittà, um set de filmagens, onde Guido, misturando realidade e fantasia, se vê rodeado pelas mulheres importantes de sua vida: a mãe (Sophia Loren, gloriosa aos 75 anos), a mulher (Marion Cotillard), a amante (uma Penépole Cruz gostosérrima, em uma dança sensual), a estrela e musa (Nicole Kidman), a figurinista e velha amiga Lilli (Judi Dench), e dezenas de outras.
Ali estão Fellini e Fosse, através da direção de Rob Marshall.
Na minha opinião, faltam grandes músicas
Sim, mas então este é um grande filme?
Pois é. É belíssimo, é suntuosamente bem feito, é muito bom – mas, para mim, não chega a ser um grande filme. Fiquei pensando, assim que o filme terminou, que o elemento mais fraco em um filme de produção tão requintada acaba sendo a música. Nine é um musical de maravilhosa coreografia – mas sem grandes músicas. Não há uma canção marcante, que impressione, que deixe o espectador com vontade de ouvi-la de novo.
Será que é simplesmente porque eu não conhecia nenhuma das músicas? Bem, a rigor, pode até ser isso. Mas não acho. Acho que a trilha é boa, é correta – mas de fato faltam belas canções. Um musical sem belas músicas, vamos e venhamos, é um tanto manco. Mesmo com um visual tão maravilhoso quanto este filme.
Nine teve quatro indicações ao Oscar (mas não venceu em nenhuma categoria): atriz coadjuvante para Penélope Cruz, canção (“Take it all”), figurinos e direção de arte. Venceu cinco outros prêmios e teve outras 32 indicações.
O roteiro foi um dos últimos trabalhos do inglês Anthony Minghella (1954-2008), o diretor de O Paciente Inglês e Cold Mountain. Nos créditos finais, o filme é dedicado à sua memória.
Nine
De Rob Marshall, EUA-Itália, 2009
Com Daniel Day-Lewis (Guido Contini), Marion Cotillard (Luisa Contini), Penélope Cruz (Carla), Kate Hudson (Stephanie), Nicole Kidman (Claudia), Judi Dench (Lilli), Sophia Loren (Mamma), Fergie (Saraghina), Ricky Tognazzi (Dante)
Roteiro Anthony Minghella e Michael Tolkin
Baseado na peça de Arthur Kopit, Mayry Yeston e Mario Fratti, por sua vez baseada no filme Oito e Meio, de Federico Fellini
Fotografia John DeLuca e Dion Beebe
Música Andrea Guerra e Maury Yeston
Direção musical e regência Paul Bogaev
Coreografia Rob Marshall
Produção The Weinstein Company
Cor e P&B, 118 min
***
Oi Sérgio,
É a primeira vez que escrevo um comentário. Adoro seus textos pois temos impressões muito semelhantes sobre cinema.
Mas, até o final do texto, achei que tinha assistido a outro filme.
Achei o filme uma farsa.
Grande, enorme, na técnica do cinema: casting, fotografia, direção de arte, marketing.
Mas também pretencioso, o tipo de filme que quer ser clássico e não tem cacife nem para ser revisto.
Salva-se a sempre competente Marion Cotillard. Um primor que valeu o ingresso!
Já Nicole Kidman e seu botox que destruiu uma grande atriz é de dar pena.
Penélope Cruz, Daniel Day-Lewis e Judi Dench fazem o que podem em um musical que, concordo com você, não tem uma grande música.
Fergie e Katie Hudson são lindas e só. Pedir que cantem, dancem e atuem (ao mesmo tempo) é missão fadada ao fracasso.
Adoro Chicago e esperava muito mais de Nine. Fui assistir empolgada mesmo: amo musicais.
Desejo mais sorte, – ou seria competência? – ao próximo projeto de Rob Marshall.
Vanessa, obrigado por ter se animado a mandar o comentário. Muito legal que haja uma opinião oposta à minha – o site só tem a ganhar com isso.
Bem, discordamos quanto ao Nine. Mas concordamos então sobre outros filmes. Inclusive sobre Chicago, que revi outro dia e, mais uma vez, adorei. Minha anotação sobre ele vai entrar aqui em breve.
Um abraço.
Sérgio
Jamais entenderei como esse filme não fez sucesso comercial!
Revi Nine agorinha mesmo e sabe o que mais gostei? Nos créditos finais, numa espécie de making-off, Daniel dança com Sophia e, olha, foi uma das poucas vezes na vida que quis ser atriz só pra ter aquele brilho no olho que ele tem – de quem está meio deslumbrado com a sorte de estar fazendo o que gosta com alguém que admira. No mais, Nine pra mim é uma festa num dia que eu estava cansada, tem muita coisa boa pra aproveitar mas nem sempre consigo acompanhar tudo. Falta sintonia, talvez. Ou a música que fica, depois que o filme acaba.