3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Um brilho de filme, este terceiro do garoto Jason Reitman, depois dos também ótimos Obrigado por Fumar e Juno. Me fez lembrar Billy Wilder, pela combinação talentosa de aparência de comédia com profunda amargura.
O título escolhido pelos distribuidores no Brasil, Amor Sem Escalas, aparentemente tem alguma esperteza. De fato, o protagonista do filme, Ryan Bingham – interpretado com o brilho e a elegância de sempre por George Clooney –, tem um caso sem escalas com uma mulher que aparentemente é idêntica a ele, Alex Goran (na bela pele da sempre ótima Vera Farmiga). Conhecem-se num bar de belo hotel, comparam a quantidade de cartões de crédito e de fidelidade de companhias aéreas e cadeias hoteleiras – são, os dois, executivos sempre em viagem de um ponto do país para outro –, e partem para as vias de fato sem qualquer preliminar ou papo romântico. Amor sem escalas, embora no caso seja mais sexo sem escalas – mas voltarão a se encontrar, e de novo, e de novo, e vai pintando o clima de que, epa, isso aí pode acabar em amor mesmo.
Então, Amor Sem Escalas até parece um título esperto – mas indica uma comedinha romântica. A questão é que o romance é só uma parte do filme. O título original, Up in the Air, é literalmente “no ar”, mas é também, segundo Regina Berlim, a professor de inglês mais fantástica que alguém poderia ter, “confuso”, “indefinido”, um pouco “de pernas pro ar”. O título em Portugal, Nas Nuvens, é bem mais exato. Porque Up in the Air é – além de, em parte, algo parecido com uma comédia romântica – um drama que vai fundo numa das faces mais amargas, mais cruéis do sistema capitalista: a perda do emprego.
A terceirização da tarefa de demitir
Ryan Bingham é um especialista em demitir pessoas. Seu trabalho consiste em comunicar às pessoas que elas estão demitidas. É um dos melhores funcionários de uma empresa que só faz isso – comunicar demissões –, e é contratada por empresas de todos os pontos dos Estados Unidos para fazer esse trabalho sujo, ingrato, difícil.
O que é uma ironia brutal: a terceirização do trabalho duro de demitir gente.
E é interessantíssimo que, no mesmo ano, tenham sido realizados nos Estados Unidos dois filmes sobre pessoas cujo trabalho é dar aos outros as duas piores notícias que pode haver: que você perdeu seu emprego, e que você perdeu seu filho, ou marido.
Em O Mensageiro/The Messanger, dirigido pelo israelense Oren Moverman, o capitão Tony Stone (Woody Harrelson) esconde a profunda amargura por fazer o horroroso, deprimente, assustador trabalho de comunicar a morte de soldados a seu familiar mais próximo sob uma capa dura de profissional dedicado, irrepreensível. Sofre feito um torturado, come o pão que o diabo amassou.
Em Amor Sem Escalas, Ryan Bingham também é um profissional dedicado, irrepreensível – mas não parece sentir amargura por ganhar a vida (e ganha muito bem) comunicando às pessoas que elas não têm mais emprego. Ryan tornou-se um cínico – é um perfeito e bem acabado cínico. Não tem amigos, não tem namoradas, jamais pensou em casar, menos ainda em ter filho; tem horror a qualquer tipo de compromisso com os outros. O dia-a-dia de uma viagem após outra, um hotel após outro – que para qualquer ser humano seria sinônimo de inferno – para ele é uma maravilha. Faz isso com uma imensa felicidade; duro, para ele, são os pouquíssimos dias do ano em que não tem serviço para fazer fora e é obrigado a ficar em casa, coisa que aliás ele não tem – mora num frio, gelado, impessoal flat, sem uma foto, um objeto de valor afetivo. Até porque não tem qualquer afeto. Tem prazer com o conforto da classe executiva dos aviões, com a elegância dos bons hotéis, com o privilégio de – sendo um cliente muito especial de companhias aéreas e hoteleiras – passar na frente dos outros.
Costa-Gavras usou o terror absoluto; Jason Reitman, a ironia
Com uns 20 minutos de filme, me peguei pensando que este Amor Sem Escalas é parente próximo de O Corte/Le Couperet, que o sempre político Costa-Gavras fez em 2005 – uma visão aterrorizante, apavorante sobre o mundo do capitalismo selvagem, em que as fusões de grandes empresas põem no olho da rua milhares e milhares e milhares de trabalhadores. O protagonista do filme, um engenheiro altamente qualificado, sem emprego após meses e meses de incessantes buscas, sai matando os concorrentes a uma vaga.
É parente também de outro grande filme, outra visão medonha sobre estes nossos tempos, o espanhol O Que Você Faria?/El Metodo, em que, dentro de uma sala fechada de uma grande corporação, um grupo de quatro ou cinco homens e duas mulheres disputam uma única vaga, e são transformados em animais selvagens, capazes de tudo pela sobrevivência.
Em O Corte, o grego Costa-Gavras partiu para o deboche, através do terror absoluto. Em O Que Você Faria?, o argentino Marcelo Piñeyro faz um jogo psicológico com os personagens e o espectador.
O garoto americano Jason Reitman usou a ironia. O filme está só começando quando Craig (Jason Bateman), o dono da empresa de exterminadores de emprego, apresenta a seus especialistas em demitir pessoas a jovem, competente e ambiciosa Natalie (Anna Kendrick), que apresentou a ele um sensacional projeto de corte de custos: a demissão via conversa telefônica na internet. Em vez de despesas com passagens na classe executiva e diárias em bons hotéis para os exterminadores de emprego, uma conta de internet de banda larga.
Lembrei agora do verso de Vandré – grande Vandré: “É a volta do cipó de arueira no lombo de quem mandou dar”.
Vera Farmiga brilha como a mulher ambiciosa, fria, machista
Estão muito bem, estão soberbos os três atores principais do filme, George Clooney como o cínico, frio, impessoal especialista em demissões (sobre o couro de quem o cipó de arueira vai se abater algumas vezes), Vera Farmiga como sua trepada sem escalas e a jovem Anna Kendrick (na foto) como a garotinha Natalie, outra que vai levar boas lambadas do cipó de arueira. Merecidissimamente, todos os três tiveram indicações para o Oscar.
Vera Farmiga está um brilho especial no papel da mulher machista, ambiciosa, fria, que parece determinada a ser mais chauvinista que qualquer porco espinho jamais conseguiria ser. “Sou igualzinha a você, só que com vagina”, ela diz a um espantado e fascinado Ryan-George Clooney. E, pela telinha do telefone, o provoca: “Está aí sozinho? Por que não bate uma punheta?” Quando ele diz algo do tipo “primeiro você”, ela chispa: “Já bati”. E a gente ainda não viu nada. É um personagem fascinante, essa Alex. Complexo, apavorante, fascinante.
Não dá para saber quanto dessa Alex é criação dos roteiristas – o próprio diretor Jason Reitman e mais Sheldon Turner – ou se ela já existia assim no livro de Walter Kirn, no qual o filme se baseia. Mas não poderia haver escolha mais acertada para interpretá-la. Venho admirando cada vez mais essa moça Vera Farmiga.
Além das três indicações dos atores, o filme teve indicações aos Oscars de roteiro adaptado, diretor e filme.
Jovem, mas com memória, e nenhum medo de enfrentar polêmica
Danadinho esse garoto Jason Reitman. Três filmes, três gols.
Filho do diretor Ivan Reitman, de, entre muitos outros, Os Caça-Fantasmas/Ghostbusters, Jason, nascido em Quebec, no Canadá, em 1977 (estava com 32 anos quando fez este filme), tem cuidados e conhecimentos de veterano, que se mesclam a uma audácia típica da juventude. Não tem medo de temas fortes, polêmicos: abordou o lobby dos fabricantes de cigarros, bebidas e armas em Obrigado por Fumar, de 2005, a gravidez na adolescência em Juno, de 2007, e agora fala de crise econômica e desemprego.
Ao contrário de muitos jovens, aprecia coisas feitas antes que nascesse. Amor Sem Escalas abre ao som de “This Land is Your Land”, o hino ao povo americano (não ao país) composto nos anos 40 pelo gigante Woody Guthrie, e fecha com “Be Yourself”, que Graham Nash gravou no seu primeiro disco solo, de 1971, depois da fase com o grupo inglês The Hollies e numa pausa das gravações com o supergrupo Crosby, Stills & Nash e depois + Young.
Como se fez muito nos anos 50 e 60, os filmes de Jason Reitman tratam com carinho muito especial os créditos iniciais. Seus três filmes têm créditos iniciais feitos por uma estúdio de gente muito jovem, todos eles caprichadíssimos, um filme à parte dentro dos filmes. A abertura de Amor Sem Escalas – uma loucamente rápida sucessão de fotos aéreas das mais diferentes partes dos Estados Unidos, intrincando-se com a letra de Guthrie que cita Estados, cidades, montanhas, lagos – é de babar.
Amor Sem Escalas/Up in the Air
De Jason Reitman, EUA, 2009
Com George Clooney (Ryan Bingham), Vera Farmiga (Alex Goran), Anna Kendrick (Natalie Keener), Jason Bateman (Craig Gregory), Danny R. McBride (Jim Miller), Melanie Lynskey (Julie Bingham), Amy Morton (Kara Bingham), Sam Elliott (Maynard Finch), J.K. Simmons (Bob)
Roteiro Jason Reitman e Sheldon Turner
Baseado no livro de Walter Kirn
Fotografia Eric Steelberg
Música Rolfe Kent
Produção Paramount, Montecito.
Cor, 109 min
***1/2
Título em Portugal: Nas Nuvens
Que bom ver seu comentário ! Gosto demais de George Cloney e uma noite em Floripa começamos assistir esse filme, Não sei porque, creio que chegaram visitas, não tivemos jeito de terminar. Procurarei alugá-lo esta semana.
Lucia
gostei bastante desse filme também.
pra mim, é um irmão de Clube da Luta.
Gostei de “Amor sem…” Me amarro em filmes que aprofundam o sentimento humano. Você sente a alma dele (G.Clooney), a movimentação do sentimento empedernido de solteirão ao entusiasmo quase infantil do amor que arrebenta, sufoca, precisa externar-se. Surpreende-se com a frieza dela, satisfeita em controlar sua vidinha, alterando o casamento sólido, tudo bem familia, com o encontro fortuito e prazeroso. A outra menina, acaba se encontrando. Ser a “maior” em causar infelicidade aos outros não pode ser um caminho para sentir-se feliz… Gostei muito do filme.
Que maravilha de comentário, Maria. É por isso que fico sempre feliz quando recebo alguma mensagem sua. Um abraço.
Sérgio