Território Restrito / Crossing Over


Nota: ★★★½

Anotação em 2009: Um grande filme. Desses que são uma paulada na cabeça, um murro no estômago. Dá uma imensa pena de todas as pessoas que tentam imigrar ilegalmente para os Estados Unidos, o Paraíso Prometido, um inferno pior que qualquer miséria que se tenha que enfrentar no país natal.

“Dá uma raiva danada dos Estados Unidos”, disse Mary, chocada, assim que o filme terminou.

Território Restrito faz lembrar, e muito, Crash, de Paul Haggis, de 2004, que também é um filme extraordinário. Como em Crash, o roteirista e diretor Wayne Kramer faz um mosaico de diversos personagens cujas histórias terão alguma relação umas com as outras, o que mais rebuscadamente chamam de estrutura multiplot, ou multitrama. Como em Crash, a ação se passa em Los Angeles e arredores. Como em Crash, a base da trama é a violência, o choque daquele caldeirão de diversas etnias, culturas, após o trauma dos ataques terroristas de 11 de setembro. Aqui, no entanto, tudo se relaciona à imigração, aos imigrantes ilegais, às diversas formas de tentar obter o greencard, o visto de permanência.

Isso fica claro desde as primeiras tomadas – desde o título original, na verdade, Crossing Over, algo como “atravessando”. E aqui faço, eu que implico tanto com alguns títulos brasileiros de filmes estrangeiros, um elogio aos exibidores que escolheram uma boa expressão para designar o filme no Brasil. Território Restrito é um bom achado. Não é para todos, o tal do Paraíso Prometido – é para poucos.

         É como pular sem pára-quedas e querer pousar como uma pluma 

Crossing OverSe – como mostrou Elia Kazan no magnífico A Terra do Sonho Distante/America, America, de 1963, e também se viu nos mais recentes Novo Mundo/Nuovomondo, de 2006, e Noivas/Nyfes, de 2004 – a própria travessia do oceano rumo ao Paraíso Prometido já era um horror no final do século XIX, começo do XX, quando os Estados Unidos ainda precisavam de mão de obra e eram abertos à imigração, tentar entrar hoje no Império é mais ou menos como pular de um avião sem pára-quedas e contar com a possibilidade de flutuar no ar e pousar como uma pena de ave num gramado imaculado. Já vimos isso em diversos filmes. Este aqui vai nos contar diversas histórias que mostram a mesma verdade, com a crueza, a dureza de uma paulada na cabeça, um murro no estômago.

Wayne Kramer vai nos apresentando tantos personagens, tantas histórias, que chegamos a duvidar se ele vai dar conta de relatar todas elas, de mostrar gente de carne e osso, e não simples bonecos esquemáticos. Mas ele consegue. Demonstra muito talento, e consegue.  

Vou tentar apresentar os principais personagens:

* Max Brogan (Harrison Ford) é um veterano agente policial da ICE, Immigration and Customs Enforcement, a polícia de imigração e aduana, com uma característica marcante: ele simpatiza com aqueles pobres-diabos que tem que perseguir, achar, prender e deportar. Logo no início da ação, ele e seus muitos companheiros entram numa indústria têxtil onde há dezenas e dezenas de mexicanos ilegais trabalhando. Brogan encontra uma jovem mexicana, bela e desesperada, Mireya Sanchez (Alice Braga, na foto acima)), escondida atrás de uma coluna de roupas – chega a decidir deixá-la ali, mas naquele exato momento chega um colega seu, não há mais jeito, e a moça é presa; ela pede ajuda a ele, escreve um endereço, diz que o filhinho dela está lá, aos cuidados de uma mulher a quem deve dinheiro, e que ele precisa de ajuda.

* Gavin Kossef (Jim Sturgess) é um jovem judeu, músico, criado distante das tradições religiosas, que sequer fala hebreu ou ídiche, mas precisa fingir que é um conhecedor de tudo aquilo que ele desconhece para se mostrar apto a conseguir um visto de permanência.

acrossaustralia* Claire Shepard (Alice Eve, na foto ao lado), jovem, bonita, gostosa, namora Gavin; é australiana, foi para os Estados Unidos com visto de turista, quer trabalhar como atriz ou modelo (acha que poderá ser a nova Nicole Kidman ou Naomi Watts, dirá dela o personagem Cole Frankel, que conheceremos a seguir); tenta conseguir o visto de permanência pelas vias normais, mas, na dúvida, encomenda também um greencard a um falsário.    

* Denise Frankel (Ashley Judd) é uma advogada que trabalha para imigrantes. Dá especial atenção a uma garotinha nigeriana que está numa prisão temporária para crianças e adolescentes estrangeiros ilegais; procura pais adotivos para ela, mas não encontra. (Mary comentou, com razão, que os únicos americanos de bom caráter mostrados no filme são o policial Max Brogan e a advogada Denise Frankel. Os demais são todos filhos da mãe.) 

* Cole Frankel (Ray Liotta) trabalha na Imigração; tem o poder de indicar quem deve receber visto de permanência, e a cobiça o assalta quando a bela australiana Claire bate no seu carro. Oferece o acordo: quebra o galho dela, desde que ela quebre o galho do pau dele.

acrosshamid* Hamid Baraheri (Cliff Curtis, na foto ao lado) é o parceiro do policial Max Brogan, fazem as rondas juntos. Já conseguiu a naturalização, e agora espera a cerimônia de naturalização do pai, um iraniano rico que deixou seu país depois que a revolução islâmica dos aiatolás derrubou o regime do Xá Rezā Pahlavi, em 1979. Hamid tem uma irmã jovem, bonita, sensual, Zahra (Melody Khazae), que é a ovelha negra da família, por usar roupas decotadas, saias curtas, e transar com um homem casado, Javier (Rey Valentin), o falsário que vende greencard falso para a aspirante australiana a atriz.

* Taslima Jahangir (Summer Bishil) é uma adolescente muçulmana (acho que o filme não identifica seu país de origem; ela pode ser paquistanesa, indiana ou mesmo afegã), que ousa apresentar, na escola, uma redação em que diz que é possível tentar compreender as motivações dos terroristas que praticaram os ataques de 11 de setembro; por isso, por acreditar na promessa de que no Império existe a garantia da liberdade de expressão, será presa pelo FBI (por ironia, por uma agente chamada Phadkar, ela mesma imigrante ou filha de imigrantes, interpretada por Jacqueline Obradors), e sua família será duramente perseguida.

* E ainda há a família de coreanos, cujo pai é dono de uma lavanderia – onde o policial Brogan levará para lavar um paletó do parceiro Hamid –, e cujo filho adolescente está sucumbindo aos encantos de uma gangue de bandidinhos coreanos.

         Coerente, com bons personagens, apesar dos cortes

É muito personagem? É, sem dúvida alguma. Mosaico, estrutura multiplot é isso aí. Mas Wayne Kramer passa pelos difíceis testes: constrói personagens com vida, e não figuras esquemáticas; e consegue nos apresentar com coerência todas as suas histórias que se intercruzam diversas vezes. É uma beleza de trabalho de roteiro, assim como o de direção. Com a suavidade possível num filme-porrada, ele faz as passagens de uma subtrama para a outra mostrando belíssimas tomadas da selva louca que é Los Angeles, os arranha-céus do Centro, os cebolões de trânsito que fazem os complexos viários de São Paulo parecerem brincadeirinha de criança.  

O cinema já teve muitos filmes de 180 minutos ou mais, mas hoje em dia isso está meio fora de moda; o manual de sobrevivência dos estúdios não recomenda filmes com mais de 120 minutos. Pois então vejo no iMDB a seguinte informação importante: a versão original do diretor tinha 140 minutos. Embora, por contrato, o diretor tivesse o direito de definir o final cut, a montagem final, a versão final, Wayne Kramer concordou em participar no processo de cortar o filme para menos de duas horas de duração quando – é o que se diz – os produtores, os irmãos Weinstein, ameaçaram lançar o filme direto em DVD, sem passar antes pelas salas de cinema. 

acrossjuddMais uma prova de que o cara tem talento. Mesmo tendo que cortar fora 37 minutos de ação de um filme com tantas histórias interligadas, ele conseguiu entregar uma versão que não apenas é coerente, lógica, como é de grande qualidade.

Espero que um dia seja lançada – mesmo que seja só em DVD – a versão original de 140 minutos. (Na foto ao lado, Ashley Judd como a advogada bom caráter casada com um funcionário da Imigração filho da mãe.)

Wayne Kramer – aprendo agora, depois de fazer a anotação acima – é sul-africano; nasceu em 1965. Já nos Estados Unidos, fez, em 1996, um curta-metragem de 35 minutos com o mesmo título deste filme aqui, Cross Over. Parece que era um ensaio do que viria a fazer mais de dez anos mais tarde, neste filme aqui. Depois, em 2003, dirigiu The Cooler! – Quebrando a Banca. Eu não havia identificado o nome, mas vi, sim, The Cooler, e gostei, um filme pesado, violento, quase noir, passado na loucura de Las Vegas, com William H. Macy e Maria Bello. Em 2006, fez Running Scared, que não vi, mas parece ser também muito pesado e violento. O rapaz parece não ter uma visão muito rósea do Paraíso Prometido. 

Sim, tem talento, o cara. Este filme é muito, muito bom.

Um último e rápído registro. O papel de Alice Braga é pequeno – importante, mas pequeno. Mas isso não interesa: é mais uma produção americana de importância de que a moça participa. Que outra atriz brasileira que não fez sequer 27 anos já contracenou com Harrison Ford, Will Smith, Chilwetel Ejiofor, Diego Luna, Brendan Fraser?  

Território Restrito/Crossing Over

De Wayne Kramer, EUA, 2009

Com Harrison Ford (Max Brogan), Ashley Judd (Denise Frankel), Ray Liotta (Cole Frankel), Cliff Curtis (Hamid Baraheri), Jim Sturgess (Gavin Kossef), Alice Braga (Mireya Sanchez), Alice Eve (Claire Shepard), Justin Chon (Yong Kim), Summer Bishil (Taslima Jahangir),   

Melody Khazae  (Zahra Baraheri), Jacqueline Obradors (Phadkar)

Argumento e roteiro Wayne Kramer

Música Mark Isham

Produção The Weinstein Company, The Kennedy/Marshall Company. Estreou em São Paulo 10/4/2009.

Cor, 113 min

***1/2

Título em Portugal: Para Lá da Fronteira

15 Comentários para “Território Restrito / Crossing Over”

  1. Discordo que o filme seja bom, muitas cenas deixam a desejar, principalmente a da prisão durante a cerimônia. Outra observaçâo é que “Crossing Over” não assume sentido de atravessar como citou e sim o sentido biológico, permutação, referindo-se ao fato de diferentes etnias comporem um país, promovendo a miscigenação de culturas. Parabéns pelo blog que leio sempre que posso.

  2. Caro Bernardo, muito obrigado pela mensagem.
    Quanto à expressão “cross over”, confesso que não conhecia essa acepção a que você se refere, de “sentido biológico, permutação, referindo-se ao fato de diferentes etnias comporem um país, promovendo a miscigenação de culturas”. Nesse caso, a expressão teria pelo menos esses dois significados, o citado por você, e o que eu citei, de atravessar. Me fio no Dictionary of Phrasal Verbs da Collins Cobuild: “When you cross over, you go across to the other side of something such as a road, room, or border” – e acrescenta o exemplo: “We crossed over into Tennessee”.
    Espero que você mande comentários sempre que quiser e puder.
    Um abraço.
    Sérgio

  3. Ai, ai, ai, lá vou eu discordar. Eu achei o filme fraco, sinceramente. Os personagens estereotipados, as atuações ruins, na maioria dos casos. A moça que faz a australiana sempre virava o rosto quando era contrariada ou quando não queria falar. De um primarismo sem fim. O eterno Indiana Jones tb estava caricatural, super estranho. E por aí vai. E meu Deus do céu e tb da terra, como diz vc, rsrs, o que aconteceu com o Ray Liotta? O rosto do homem tá desfigurado de tanto botox, tá parecendo um boneco de cera. E claro que isso prejudicou a atuação dele, afinal, a expressão do rosto conta muito pra um ator. Juro que era difícil pra mim ter que olhar pro rosto do cara, me dava nervoso; sem falar que o personagem dele era um crápula e me causava repulsa.
    Mas voltando ao filme, acho que a intenção do roteiro foi boa, mostrar a dureza que é ser imigrante ilegal, a impiedade dos EUA, a perseguição gratuita de algumas pessoas com poder, etc. No geral, achei chato. Como vc já falou que concorda comigo em 95% das vezes, esse é um dos 5% discordantes, rs.

    Não cheguei a olhar no dicionário, mas acho que o significado nesse caso para “cross over” é o que vc deu mesmo, o de “atravessar”. Até pela foto do pôster que ilustra o texto, dá pra intuir que seja isso.

  4. Venho acompanhando este presente mercado de trabalho globalizado. O filme consegue nos trazer suas principais cores: o modo diverso com que cada etnia sobrevive dentro deste novo mundo; a penalização do trabalhador indocumentado e a responsabilidade zero para aqueles que empregam os “escravos párias”; o charme das griffes de roupas intocado diante do drama e da perversidade com que elas são produzidas; alguns traços de humanidade na burocracia americana que combate tais ilegalidades. Grande roteiro, estórias bem estruturadas e delicadeza no trato das diversidades dos personagens de nacionalidades múltiplas. Grande filme. Adorei!

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