(Disponível no YouTube em 2/2023.)
O diretor inglês Terence Fisher (1904-1980) especializou-se em filmes de terror, muitos deles pelo famoso estúdio britânico Hammer. Como diz, com alguma ironia, o grande Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, Fisher ressuscitou velhos monstros – Frankenstein, Drácula, o Lobisomem, o Doutor Jekyll, o Fantasma da Ópera, a Múmia.
Peço ao eventual leitor perdão pela brincadeira, mas o filme de 1954 do diretor, The Unholy Four, no Brasil O Regresso de um Estranho, é aterrorizantemente, apavorantemente ruim. Dá até medo tanta ruindade.
E não é um filme de terror. É um policial, um filme de mistério, segundo a classificação do IMDb e também do Cinemania.
The Unholy Four é também um exemplo de propaganda enganosa. Nos cartazes e nos créditos iniciais, aparece com imenso destaque o nome de Paulette Goddard – e foi por ver o nome dela como a principal atriz que, ao passear pelo YouTube entre os filmes da época de ouro de Hollywood disponíveis, resolvi ver.
Propaganda enganosa: a belíssima atriz é quase uma coadjuvante. Caso típico de ordem dos nomes nos cartazes e créditos ditada pela fama dos atores, e não pela importância de seus personagens na trama, no filme. E a figura que aparece no cartaz, toda sensual (foto pequena, no alto), é o suprassumo da propaganda enganosa: não há nada parecido com aquilo no filme.
O ator principal, que faz o protagonista da história, é um tal William Sylvester (1922-1995, na foto abaixo), um californiano fazendo papel de inglês. Não me lembrava dele. E, meu Deus do céu e da Terra, como o cara está péssimo! Um horror, um terror.
Na verdade, o diretor Terence Fisher e esse William Sylvester nos demonstram que o filme é ruim já nos primeiros minutos. Todas as caretas que o ator faz na sequência de abertura são assustadoras.
Inesperadamente, o sujeito reaparece em sua casa
O filme abre com o personagem interpretado por William Sylvester – Philip Vickers é o nome – chegando a uma imensa propriedade no campo. Desce do carro, que não é um táxi, faz um gesto como se estivesse pagando pela corrida, e abre o grande portão que dá acesso a um amplo jardim. Um cachorro tão avantajado quanto o portão de entrada e o terreno diante da casa de milionário se aproxima dele; Philip faz carinho no cãozão e diz para ele: – “Você não me esqueceu, não é, meu velho?”
Encaminham-se os dois, o dono e o cachorro que – já ficamos sabendo – não se viam havia muito tempo, para a porta principal da mansão. Philip dá uma paradinha – uma coisa bem teatral, nada natural – antes de colocar a mão na maçaneta. A porta da mansão estava apenas encostada, assim como o portão da propriedade.
Em um canto de uma sala, uma mulher está falando ao telefone, explicando que não, a senhora Vickers não está em casa naquele momento, mas ela dará o recado. Veremos que é Joan Merrill (o papel de Alvys Maben), a secretária particular de Angie Vickers, a dona da casa, mulher do sujeito que está chegando depois de uma longa ausência.
Joan demonstra absoluto espanto ao ver Philip Vickers diante dela. O diálogo é tenso. Joan pergunta por que ele não informou que chegaria naquele dia, Philip pergunta onde está Angie, a secretária informa que está na casa perto do rio. O homem ordena que ela não avise a patroa – quer fazer uma surpresa. Sobe para seu quarto, sai de lá em seguida com roupas limpinhas – chiques, como se fosse para uma festa formal – e em seguida vai, de carro, da casa principal para a casa secundária, perto do rio, onde se realiza uma festa.
O ricaço tinha tido amnésia – mas de repente ela sumiu
A história que o filme pretende impingir ao espectador é a seguinte:
Quatro anos antes desses eventos que abrem a narrativa, a chegada inesperada de Philip Vickers à sua própria mansão, ele havia viajado para Portugal com três amigos – amigos e também altos funcionários de sua empresa. (Não há qualquer menção a de tipo de raio de empresa é aquela que nosso herói possui.)
Estavam em um iate, pescando, passeando, quando… aconteceu alguma coisa que fez com Philip tivesse uma amnésia, não se lembrasse de nada que havia acontecido, não se lembrasse de quem ele era, coisa alguma.
Os três funcionários e amigos haviam voltado para a Inglaterra e tocado suas vidas. Não se fala que tipo de explicação eles deram para o fato de Philip não ter voltado com eles. O que o espectador fica sabendo é que os três haviam continuado a trabalhar na empresa – que tinha até crescido, ao longo daqueles quatro anos –, e haviam mantido a proximidade com Angie Vickers (o papel de Paulette Goddard). Tanto que todos os três estavam lá na festa que se realizava naquela noite na casa perto do rio: Bill Saul (Paul Carpenter), Job Crandall (Patrick Holt) e Harry Bryce (o personagem só é citado, e não aparece na tela).
Não se explica o que Philip ficou fazendo, desmemoriado, abandonado pelos amigos em Portugal, ao longo daqueles quatro anos. O que se diz é que, em um momento qualquer, a amnésia passou, acabou, foi embora. E Philip se lembrou que, um tempão atrás, estava em um iate com os três amigos quando levou uma pancada violenta no canto da testa.
E agora estava de volta para se vingar de quem havia tentado matá-lo. E para ver como estava sua mulher quase viúva. Quando o filme está com uns 4 minutos e pouco, Philip dá a entender para o espectador que supõe que Harry estivesse a fim de Angie.
Quando o filme está com 13 minutos, Angie-Paulette Goddard surge tela pela primeira vez – e pela primeira vez em quatro anos se vê diante do marido desaparecido.
Aproxima-se dele e… desmaia.
Quando estamos com 16 minutos de filme, informa-se que Harry havia sido encontrado morto naquela noite, perto da casa onde se realizava a festa.
George Sanders não escreveu, mas assina o livro
O roteiro dessa patacoada é assinado por Michael Carreras, que é também o produtor do filme. E o que os créditos originais informam é que o roteiro se baseia em um romance de George Sanders.
Como assim? Então George Sanders, o ator nascido em São Petersburgo, a capital do Império Russo, em 1906, radicado em Hollywood a partir de 1936, mais de 130 títulos no currículo, inclusive A Malvada/All About Eve (1950) e Rebecca, a Mulher Inesquecível (1940), que teve entre suas cinco esposas as irmãs Magda Gabor e Zsa Zsa Gabor, também escrevia? Eu nunca soube disso.
Parece que não escrevia, não. O que se informa é que o romance policial Stranger at Home, lançado como sendo de autoria dele, na verdade foi escrito por Leigh Brackett. O livro tem a seguinte dedicatória: “Para
Leigh Brackett, que eu nunca conheci”.
Por que é que George Sanders resolveu assinar um livro que não escreveu, e por que Leigh Brackett resolveu escrever o livro que seria assinado pelo ator, isso parece ser um mistério tão misterioso quanto o que Philip Vickers ficou fazendo quatro anos em Portugal antes de voltar para casa.
Leigh Douglass Brackett (1915–1978) foi escritora e também roteirista. Escreveu várias dezenas de contos e romances de ficção científica, que lhe deram o epíteto de “the Queen of Space Opera”. Assinou os roteiros de filmes importantes, como À Beira do Abismo/The Big Sleep (1946), Onde Começa o Inferno/Rio Bravo (1959) e O Perigoso Adeus/The Long Goodbye (1973).
Vejo que este filme lamentável foi um dos últimos da carreira da maravilhosa Paulette Goddard. Depois dele ela faria participações em episódios de oito séries de TV, e um último filme, Os Indiferentes, em 1964. Nascida em 1910, estava portanto com apenas 44 anos quando emprestou seu nome para que esta porcaria aqui atraísse gente nas bilheterias dos cinemas. Afastou-se das câmaras em meados dos anos 60 e, assim como um de seus ex-maridos, Charles Chaplin, radicou-se na Suíça, onde morreria em 1990, aos 80 anos de idade. Entre seus outros ex-maridos estão o grande ator Burgess Meredith e o escritor alemão Erich Maria Remarque, o autor, entre outros, do romance Im Westen nichts Neues, em inglês All Quiet on the Western Front, no Brasil Nada de Novo no Front,
Um último registro. Leonard Maltin deu ao filme The Unholy Four
1.5 estrelas em 4 e dedicou a ele duas frases: “Confuso drama de Sylvester com amnésia envolvido em uma trama de assassinato. Título original britânico: A Stranger Came Home.”
Muddled – este é o adjetivo que Maltin usa. “Muddled drama of amnesiac Sylvester caught up in a murder plot”. Uma estrela e meia em quatro. Estava bonzinho demais o Maltin.
Anotação em 2/2023
O Regresso de um Estranho/The Unholy Four
De Terence Fisher, Inglaterra-Estados Unidos, 1954
Com William Sylvester (Philip Vickers)
e Paulette Goddard (Angie), Patrick Holt (Job Crandall), Paul Carpenter (Bill Saul), Alvys Maben (Joan Merrill), Russell Napier (inspetor Treherne), Kay Callard (Jennie), David King-Wood (Sessions), Jeremy Hawk (sargento Johnson), Patricia Owens (loura), Jack Taylor (Brownie). Kim Mills (Roddy), Owen Evans (ruivo), Philip Lennard (médico legista)
Roteiro Michael Carreras
Baseado em livro assinado por George Sanders (na verdade, escrito por Leigh Brackett)
Fotografia Walter James Harvey
Música Leonard Salzedo
Montagem Bill Lenny
Direção de arte J. Elder Wills
Produção Michael Carreras, Hammer Films, Lippert Films.
P&B, 80 min (1h20)
1/2
Muito boa crítica. Estava pra assistir o filme mas achei ler algo a respeito. Ainda bem. Não assisti.