(Disponível na Netflix em abril de 2022.)
A principal característica de Anatomia de um Escândalo, minissérie co-produção Inglaterra-EUA lançada na Netflix em abril de 2022, é que é uma obra feminina. São mulheres a diretora, uma dos dois roteiristas e a autora do livro em que se baseia – ela também produtora executiva. E são mulheres as duas personagens principais.
É sobre estupro – ou um alegado estupro. Mas, mais do que isso, é uma história sobre os privilégios da classe mais alta da sociedade. Sobre o fato de que homens da classe mais alta consideram que é seu absoluto direito de mandar – em tudo. Em casa e no país em que vivem. Sobre o fato de que homens da classe mais alta são criados para isso mesmo – mandar em tudo. Com o direito a omitir, mentir, trapacear, fugir da verdade dos fatos.
É um trabalho extremamente sério – e extremamente bem realizado.
Ao fim e ao cabo de seus excepcionais seis episódios de cerca de 45 minutos de grande cinema cada um, a série comete, ela própria, dois pecados graves, na minha opinião. Naturalmente, como eles aparecem bem no fim, só pretendo falar deles ao final do texto. Com cuidado, avisando que é spoiler.
Diretora, autora e protagonistas estão na faixa dos 40
Muitas séries têm diversos diretores, às vezes um para cada episódio. Não é o caso deste Anatomy of a Scandal. Todos os seis episódios são dirigidos por S.J. Clarkson, mais de 30 títulos como diretora, todos de séries de TV, produzidas tanto no Reino Unido (a extraordinária Collateral, 2018, Life on Mars, 2006-2007) quanto nos Estados Unidos (Orange is the New Black, 2014, Os Defensores, 2017). A filmografia indica que é uma profissional talentosa, experiente – e que domina o universo dos filmes de ação, policiais, thrillers. Sabe-se pouco dela – é daquele tipo de pessoa que não divulga a data de nascimento, nem sequer que nomes estão por trás daquelas letras iniciais ali. Pelas fotos, parece ter uns 40 e alguns, 40 e muitos – que é exatamente a faixa de idade tanto das duas personagens centrais quanto da autora do livro e produtora executiva da série, Sarah Vaughn.
Pois é: Sarah Vaughn, exatamente como aquela americana, uma das melhores e mais importantes cantoras da História. Não foi coincidência ou puro acaso – a moça nasceu como Sarah Hall, em 1972. (Três anos antes da minha filha – gosto sempre de comparar a idade dos artistas jovens com a idade da minha filha.) O fato de ter escolhido ser conhecida com o nome da grande cantora de jazz sem dúvida revela coisas sobre sua personalidade.
Uma biografia super hiper sucinta da autora disponível na internet diz: “Sarah Vaughan nasceu no Reino Unido e cresceu em Exeter, tendo estudado literatura inglesa na Universidade de Oxford. Correspondente na área política do jornal The Guardian, é mãe de dois filhos e vive em Cambridge.”
Super hiper sucinta, mas bastante informativa.
Anatomy of a Scandal, o romance de 2018, assim como a minissérie de 2022, fala de políticos e política. A ação principal se passa nos dias de hoje – mas, em vários, vários flashbacks, vemos os personagens que hoje estão aí entre os 40 e os 50 anos quando eram jovem estudantes em Oxford.
O mundo político dos últimos anos, o mundo dos estudantes de Oxford uns 20, 20 e tantos anos atrás: essa moça Sarah Vaughan conheceu bem os dois! Estudou em Oxford, e foi jornalista política do Guardian.
No endereço https://www.sarahvaughanauthor.com/about-me, Sarah Vaughn começa a se apresentar assim:
“Sou uma novelista e jornalista que sempre quis escrever ficção. Meu primeiro romance, The Art of Baking Blind, foi publicado em 2014 pela Hodder e em nove outros países. The Farm at the Edge of the World veio a seguir em 2016, e em 2017 se transformou em best-seller na França. Meu best-seller internacional instantâneo, Anatomy of a Scandal, marcou uma mudança de gênero: em parte um drama de tribunal, em parte retrato de um casamento, em parte um thriller psicológico, ele se baseia na minha experiência como repórter de política e de tribunais e como estudante em Oxford para explorar poder, privilégio e consentimento.”
Uma dona de casa rica e uma promotora workaholic
As duas protagonistas da história, Sophie Whitehouse e Kate Woodcroft frequentaram faculdades em Oxford – exatamente como sua criadora Susan Vaughn.
Quando a série começa, nos dias de hoje, Sophie e Kate são mulheres bastante diferentes, díspares. Sophie (o papel da linda Sienna Miller, na primeira foto) é uma dona de casa, mãe de família; tem um casal de filhos bem jovens, chegando à pré-adolescência. É muito rica, naquele que é um dos países mais ricos do mundo e provavelmente aquele onde mais são claras, óbvias, marcadas e marcantes as diferenças entre as classes sociais.
O marido dela, James Whitehouse, é membro do Parlamento pelo Partido Conservador, e naquele momento ocupa um Ministério importante. É amigo pessoal, de muitos anos, do primeiro-ministro, Tom Southern.
No momento em que a narrativa começa, não pode haver alguém mais privilegiado na vida do que Sophie. Pode haver outros tão privilegiados quanto, mas não mais que ela.
Kate (o papel de Michelle Dockery, na foto acima) é profissional da área do Direito, uma competente e reconhecida promotora pública. É uma absoluta workaholic: trabalha sempre até tarde da noite, “Não faz diferença entre os dias da semana”, segundo define o chefe de sua equipe para a jovem advogada trainee que admira tremendamente a chefe, Maggie (Kudzai Sitima).
Kate tem um amante – o homem que foi seu orientador na pós da faculdade. Ele é casado, e não tem muitas ocasiões para ficar longo período com Kate. No final do episódio 3, Felicity, a mulher dele, que jamais aparece na tela, faz uma viagem, e então o casal pode ter algo raríssimo, uma noite inteira juntos. No iniciozinho do episódio 4, Kate, tensa com o trabalho, preocupada, neurótica, diz que não tem condições de ficar com ele – e manda o amante embora de sua cama e de sua casa no meio da madrugada.
Uma rica dona de casa, mulher de político importante – quase uma absoluta dondoca, uma mulher feliz de tudo. E uma promotora pública workaholic, estressada, capaz de expulsar o amante numa noite como pouquíssimas na vida deles. Duas personagens interessantes, fascinantes.
A promotora vai representar a Rainha contra James Whitehouse no julgamento a que ele será submetido pela acusação de estupro de uma jovem funcionária de seu gabinete, Olivia Lytton (Naomi Scott, na foto abaixo).
(Sim: pelo que nos mostra a série Anatomia de um Escândalo, a promotoria pública, na Inglaterra, representa a Monarquia, a atual monarca, a rainha – diferentemente dos Estados Unidos, em que a promotoria representa The People. Hum… O que a promotoria representa no Brasil? A República? O Povo? Não sei. Preciso ver mais filmes brasileiros…)
James Whitehouse é o papel de Rupert Friend nos dias de hoje, e de Ben Radcliffe quando jovem estudante em Oxford. O primeiro-ministro Tom Southern dos dias de hoje é feito por Geoffrey Streatfeild, e por Jake Simmance quando estudante. A jovem Sophie estudante em Oxford na mesma época de James, quando os dois começam a namorar, é interpretada por Hannah Dodd – e a atriz e as equipes de maquiagem e cabelo conseguiram fazer com que ela ficasse tão parecida com Sienna Miller que Mary e eu ficamos achando que era a própria bela atriz que fazia Sophie nas duas épocas distintas.
Todos os atores estão muito bem, como afinal acontece sempre em produções britânicas, o maior celeiro de bons atores do mundo. Mas as duas atrizes que fazem os papéis centrais, Sienna Miller e Michelle Dockery, são um espetáculo à parte.
Dou uma olhada nas idades das duas atrizes. Nasceram em 1981 as duas, tanto a americana Sienna, de Nova York, quanto a inglesa Mary, de Barking, no Essex, e estavam, portanto, com 41 anos quando a série foi lançada. São alguns anos mais jovens que a autora Sarah Vaughn e a diretora S.J.Clarkson. Todas, afinal, na faixa dos 40.
Olvia demora alguns dias para denunciar o estupro
É nos primeiros dez minutos do primeiro episódio da série que o ministro James Whitehouse fica sabendo de algo grave através de um assessor. Interrompe toda a atividade e vai para casa, para contar para Sophie o problema antes que ela ficasse sabendo pela televisão ou por amigos.
O que o assessor contou para James era que estava para ser divulgada a notícia de que ele tivera um caso com uma funcionária de seu gabinete, Olivia Lytton. E ele conta para Sophie a história. Sim, ele havia tido um caso com a moça, uma moça jovem, de menos de 30 anos, durante cinco meses – mas já havia acabado com a história. Tinha sido só sexo, sem qualquer envolvimento emocional. Não interferira em nada com o amor que sente pela mulher.
James parece estar sendo absolutamente honesto. A princípio, Sophie não reage terrivelmente mal.
Mas as coisas vão piorar muito.
No final do primeiro dos seis episódios – e estou certo de que revelar isso não chega propriamente a ser um spoiler –, James é abordado à saída do Parlamento por dois policiais da Scotland Yard, que querem conversar com ele sobre uma alegação de estupro.
Vários dias depois da revelação pela imprensa de que ela havia tido um caso com o seu chefe, Olivia havia ido à polícia denunciar que James a havia estuprado. Tinha sido – a moça alega – alguns dias depois de ele ter dito a ela que o caso dos dois deveria terminar. Ele a havia estuprado – a moça alega – em um elevador do próprio prédio do Parlamento inglês.
Descrições da cena de sexo em todos os detalhes
Treze anos antes de a autora Sarah Vaughn nascer, um filme de nome parecido com o de seu terceiro romance, que se tornaria um grande clássico, chocou profundamente o público americano com as cenas de tribunal em que se julgava um caso envolvendo um alegado estupro. Anatomia de um Crime/Anatomy of a Murder (1959), de Otto Preminger, ousou colocar pela primeira vez em um filme americano as palavras anticoncepcional, estupro, esperma, penetração, calcinha.
Agora, 62 anos depois que Anatomia de um Crime assustou o público, as pessoas já não se espantam mais com explicitudes na tela – mas mesmo assim é impressionante como é discutido nos mínimos detalhes o que aconteceu dentro de um dos elevadores da House of Parliament dos postais londrinos – primeiro no testemunho da acusadora Olivia e depois no do acusado James.
Como Mary bem notou, é uma situação absolutamente embaraçosa para a moça que acusa o homem de estupro ter que reviver todos aqueles pequenos detalhes diante de um juiz, um corpo de jurados e uma audiência – sabendo que tudo aquilo será reproduzido pela imprensa.
O ponto mais importante a ser determinado no tribunal é se houve consentimento, permissão – ou se, ao contrário, depois de uma relação que durou cinco meses, Olivia de fato deixou claro que não queria fazer sexo com o homem por quem, como ela mesmo afirma no banco das testemunhas, estivera apaixonada.
Tudo na série é muito bem realizado – e a face filme-de-tribunal de Anatomia de um Escândalo é uma maravilha. A advogada de defesa contratada por James Whitehouse, Angela Regan, é excelente – ao contrário de muitos advogados de defesa que vemos em filmes, teatrais, gestos largos, voz empostada, Angela faz suas intervenções de forma discreta, educada – mas suas colocações são incisivas, pontiagudas. Ela é interpretada por Josette Simon, uma atriz brilhante (na foto abaixo).
É muito interessante ver como a advogada Angela e a promotora Kate conversam antes e depois das sessões do julgamento, enquanto retiram as becas e as perucas até hoje exigidas nos tribunais ingleses – e também em cafés, bares. Kate está sempre tensa, dura, fechada, demonstrando que preferiria não estar falando com a adversária. Angela está sempre muito à vontade, bem humorada.
As duas versões são muito bem apresentadas
Na verdade, Kate – muitíssimo bem interpretada por essa Michelle Dockery que a gente se acostumou a ver como a Lady Mary Crawley de Downton Abbey – está sempre, sempre, sempre absolutamente tensa, dura, uma pilha de nervos. À medida em que a série vai avançando, foi ficando claro para Mary e para mim – e creio que isso acontece com todos os espectadores – que há algo estranho ali com aquela mulher que parece viver apenas e exclusivamente para o dever profissional, a ponto de expulsar da cama e da casa de madrugada o amante porque está preocupada com o julgamento em que trabalha.
Há todo um trabalho dos realizadores e do elenco para que o espectador não tenha muita simpatia pela promotora Kate – enquanto a advogadas de defesa Angela parece sempre uma pessoa agradável, simpática. Achei esse ponto bastante interessante.
A rigor, toda a forma com que esta série realizada por mulheres se posiciona especificamente quanto à acusação de estupro feita pela jovem Olivia Ltton não é uma coisa assim parti-pris, posição já tomada, defesa cerrada da mulher que é sempre vítima contra o homem que é sempre agressor violento.
Não, de forma alguma. Passa a mil anos-luz de uma coisa histérica, furibunda, irracional. Os dois lados são colocados – a acusação e a defesa. De um lado, a argumentação de que Olivia pediu para James parar e ele continuou, forçou – embora não tenha dito a palavra “no”, e sim um “not now”, agora não, o que poderia ser entendido como “daqui a pouco em outro lugar”. Do outro lado, a argumentação de que sequer “not now” ela falou, e toda a linguagem corporal dizia “sim”.
Não estou dizendo, de forma alguma, que a série é branda com o estupro e os estupradores. De forma alguma. Há todo um claro, forte, vigoroso ataque ao estupro e aos estupradores, é claro. Em uma conversa com sua adversária Angela, por exemplo, a promotora Kate lembra que, na Inglaterra, apenas em 1991 – ou seja, ali, logo ali, pouquíssimo tempo atrás – passou a vigorar nova legislação garantindo ser crime um marido estuprar a própria esposa dentro de casa.
Não, a série não é branda com o estupro e os estupradores. Mas, no caso específico daquela acusação feita pela jovem Olivia contra o homem por quem ela admitia estar apaixonada, a série não tem uma atitude à la Movimento Me Too (aliás citado mais de uma vez) de que toda mulher é necessária e obrigatoriamente vítima, e todo homem é necessária e obrigatoriamente um agressor, um estuprador.
Mas, no caso específico da acusação de Olivia a James, a série – insisto, repito – dá as duas versões. O espectador, assim como os jurados, que decida qual é a verdadeira.
Uma coisa parece certa: James Whitehouse demonstra estar absolutamente convencido de que não estuprou Olivia. Já Olivia não parece tão absolutamente segura assim do que diz. Tanto que levou vários dias antes de alegar à polícia que havia sido vítima de estupro – e só o fez depois de ter sido convencida por uma amiga e colega, como fica claro durante o julgamento.
A preocupação maior das realizadoras da série, me pareceu, não foi tanto com aquele episódio em si ocorrido no elevador – que, afinal, é o centro do julgamento que ocupa boa parte da série.
A preocupação é com algo bem mais profundo do que aquela alegação de estupro em si. É com o poder, o privilégio, de maneira ampla, geral, irrestrita.
O mais importante é a questão do poder, do privilégio
Ao longo dos episódios, ao longo dos dias antes do julgamento, e durante o próprio julgamento, a vida de Sophie Whitehouse vai se transformando num inferno.
Antes era um mar de rosas. Uma casa esplêndida, dois filhos lindos, uma empregada apenas para cuidar deles – uma imigrante de país do Leste da Europa, Krystyna (Violet Verigo) –, festas elegantes, muitas amigas, um marido bem sucedido, ministro de Estado, um casamento que parecia perfeito. De repente, um terremoto, um tsunami, o chão se abre sob seus pés.
Era extremamente importante para a defesa de James que Sophie comparecesse a todas as sessões do julgamento. Uma demonstração de que estava ao lado do marido, confiava plenamente na inocência dele – o marido a havia traído, sim, mas tinha se arrependido, encerrado o caso, pedido perdão. Mas não era estuprador. Essa era a imagem que precisava ser passada.
E Sophie vai às sessões. Ouve os testemunhos – ouve todo o testemunho da jovem que descreve em detalhes como foi estuprada no elevador. E vai ficando arrasada, mortificada.
Num dia lá, avisa que não vai à sessão. Vai pegar os filhos e levá-los para passear no campo, na belíssima propriedade dos pais de James – Finn e Emily adoram brincar lá. Enquanto os dois brincam lá fora, no belo gramado, com o avô, Sophie conversa com a sogra, Tuppence Whitehouse (Phoebe Nicholls, uma atriz que tem o perfeito tipo para interpretar uma milionária inglesa).
Acontece no episódio quatro. Para mim, é um dos momentos mais importantes da série. É um momento que explicita perfeitamente o que a autora definiu como “explorar poder, privilégio e consentimento”. O livro, disse ela, e repito aqui “se baseia na minha experiência como repórter de política e de tribunais e como estudante em Oxford para explorar poder, privilégio e consentimento”.
A mãe de James, a sogra, enquanto prepara um chá para as duas: – “Fico com raiva quando penso nas mentiras daquela moça. Ela quer se aproveitar da boa índole dele. Ele sempre foi tão feliz, lindo, bem sucedido em tudo o que fazia. Tão inteligente! Toda essa autoconfiança deve ser algo masculino. Minhas filhas não têm isso. Nem eu. Ele sempre foi assim, desde menino.
Sophie: – “Assim como?”
A sogra: – “Confiante demais, eu suponho. Sempre mentia em jogos de detetive e trapaceava no Monopoly. Insistia em mudar as regras. Você é boa para ele. O pai dele e eu sempre deixamos claro que ele tem sorte em ter você.
Sophie: – “Por que você faria isso?”
A sogra:- “Isso o quê, Sophie?”
Sophie:- “Criar seu filho achando que ele podia trapacear. Trapacear no jogo.”
A sogra:- “É só um jogo.”
Sophie:- Com o qual ele aperfeiçoou as mentiras.”
A sogra:- “Talvez eu devesse ter dito dissimular.”
Sophie:- “Mentir.”
A sogra:- “Não preciso lembrá-la de que a política precisa de uma certa agilidade nisso.”
Sophie:- “Ele não precisaria mentir para mim.”
A sogra:- Pode parecer impossível neste momento, mas você vai superar isso.”
Para aquela senhora riquíssima, filha, neta e bisneta de gente riquíssima, trapacear, dissimular, mentir faz parte da vida. São instrumentos para quem nasceu privilegiado e vai ser sempre privilegiado.
Fogos de artifício muito bem realizados
A série usa e abusa de um truquezinho, um tipo de fogo de artifício esperto, inteligente – e que é muitíssimo bem executado: em diversos momentos, misturam-se sequências que imaginamos que sejam a realidade com outras bem parecidas que são o que se passa na cabeça de um dos personagens centrais.
Por exemplo: enquanto James está na tribuna das testemunhas, respondendo às perguntas da advogada Angela e descrevendo o que aconteceu no momento da trepada no elevador, vemos rápidas tomadas do que ele está descrevendo e também imagens do que ele está imaginando, pensando, lembrando, naquele momento, no momento exato em que depõe. A figura da promotora Kate mistura-se com a cena dele com Olivia no elevador.
Esse tipo de truquezinho, de fogo de artifício, é bastante usado – e com um absoluto brilhantismo. A fotografia da série – de Balazs Bolygo – e a montagem – assinada por Liana Del Giudice e Mary Finlay – são fascinantemente, espantosamente brilhantes. A montagem rápida, ágil demais, das tomadas em que há essa mistura de, digamos, uma visão objetiva dos eventos com a visão subjetiva, de um personagem, funciona muitíssimo bem.
Em termos formais, é o que mais impressiona na série.
Há até alguns momentos ainda mais inesperados. No final do primeiro episódio, por exemplo, quando os dois policiais da Scotland Yard dizem que precisam ouvir James sobre uma alegação de estupro, há uma rápida tomada em que ele cai de costas – como se tivesse tomado um soco no estômago. A materialização do que ele sentiu naquele momento.
Não sou muito chegado a fogos de artifício, a esses criativóis formais. Mas não tem como reconhecer quando os fogos de artifício são muitíssimo bem realizados.
Atenção: a partir daqui há spoilers
Gostaria de falar agora dos dois pecados graves que aparecem nos últimos momentos do sexto e último episódio. Isso, portanto, é absoluto spoiler. Quem não viu a série deve parar de ler agora. O que vai abaixo é um comentário que só faz sentido para o eventual leitor que já tiver visto a obra.
Fica claro para o espectador que a promotora Kate Woodcroft comete, se não um propriamente um crime, ao menos um delito, uma contravenção, uma ilegalidade. Ela não poderia trabalhar como promotora naquele julgamento. Tinha um fortíssimo impedimento moral, ético, até mesmo legal para fazê-lo – e, no entanto, passa por cima da moral, do compromisso ético.
Achei errado a série a mostrar, ao fim e ao cabo, como uma alegre vencedora. Não apenas ficou incólume, não apenas teve seu sério delito escondido, mantido em segredo, jogado para debaixo do tapete, como é mostrada como gloriosamente alegre e vencedora nas sequências finais.
Em segundo lugar, não me pareceu correto – em termos éticos, morais, porque é sobre isso que estou falando – o que, no finalzinho, Sophie faz.
– “O governo de Sua Majestade vai implodir”, ela se jacta.
Ora, ela tomar uma atitude contra o marido seria aceitável, explicável, compreensível. Mas usar um fato acontecido 20 anos antes em relação ao amigo do marido (e um fato que a rigor, a rigor, não chega a ser exatamente um crime sério) para implodir o governo de Sua Majestade não me parece justo, ou eticamente defensável. Como comentou de bate-pronto a Mary: – “Fica parecendo que a mortal da história é nunca conte segredos para a sua mulher!”.
A autora Sarah Vaughn tem dois filhos, como Sophie Whitehouse. Diferentemente da sua criatura, no entanto, a escritora continua vivendo com os dois filhos e o marido. Ela termina assim o texto em que se apresenta: “Atualmente vivo perto de Cambridge com meu marido, dois filhos e cachorro. Quando não estou escrevendo, adoro caminhar, correr, ler.”
Anotação em abril de 2022
Anatomia de um Escândalo/Anatomy of a Scandal
De S.J. Clarkson, Inglaterra-EUA, 2022
Com Sienna Miller (Sophie Whitehouse),
Michelle Dockery (Kate Woodcroft),
Rupert Friend (James Whitehouse)
e Naomi Scott (Olivia Lytton), Ben Radcliffe (James jovem), Hannah Dodd (Sophie jovem), Josette Simon (Angela Regan, a advogada de James), Nancy Farino (Holly, a colega de Sophie em Oxford), Joshua McGuire (Chris Clarke, o assessor do primeiro-ministro), Geoffrey Streatfeild (Tom Southern, o primeiro-ministro), Jake Simmance (Tom jovem), Sebastian Selwood (Finn Whitehouse, o filho de James e Sophie), Amelie Bea Smith (Emily Whitehouse, a filha de James e Sophie), Violet Verigo (Krystyna, a babá de Finn e Emily), Kudzai Sitima (Maggie, a assistente de Kate), Jonathan Coy (juiz Aled Luckhurst), Tom Turner (John Vestey), Jonathan Firth (Richard), Richard McCabe (Brian Taylor), Luka Sheppard (Alec, o Libertino que cai), Anna Madeley (Ellie Frisk), Rosalie Craig (Lucy), Natasha Magigi (Mrs. Addington), Annie Haworth (Alison), Edmund Kingsley (Mark Frisk), Phoebe Nicholls (Tuppence Whitehouse, a mãe de James)
Roteiro Melissa James Gibson e David E. Kelley
Baseado no livro homônimo de Sarah Vaughan
Fotografia Balazs Bolygo
Música Johan Söderqvist
Montagem Liana Del Giudice, Mary Finlay
Casting Lucy Bevan, Emily Brockmann
Desenho de produção Melanie Allen
Produção Mark Kinsella, 3dot productionsm David E. Kelley Productions, Made Up Stories
Cor, cerca de 270 min (4h30)
****
Excelente essa série, toca de perto os favorecimentos que existem na sociedade, em especial para os ricos e abastados. Pode se conjecturar muita coisa, inclusive se apoiando na teoria marxista para explicar tal fato, mas é assim: existe aparelhamento do Estado e para determinada classe, de colarinho branco, parece que não existe crime que seja grave demais. Tudo pode ser alterado para evitar-se maiores desgastes para os filhos bem quistos da sociedade, bastando o decurso do tempo, o esquecimento, a quantidade de dinheiro e vontade empregada. Vivemos no Brasil né meus caros e quem quer que tenha feito uma análise mais profunda da política e do direito, deve ter se deparado com um quadro bastante desolador, de manipulação e “entortamento” das coisas, no intuito de fugir dos objetivos de justiça, para se chegar a outros, mais convenientes. Os crimes mais graves, mais terríveis, terminam como comédias pastelão, com penas altíssimas no papel, mas pouca repercussão prática. No momento da condenação, letras garrafais nos jornais. Quando da concessão dos benefícios de liberdade provisória, ou mesmo, de liberação total, por alegados defeitos processuais, há somente notas de rodapé dando conta disso. Algumas figuras públicas, mais descuradas de suas imagens, saem das páginas policiais, das penitenciárias direto para… as suas cerimônias de diplomação na posse de cargos no legislativo, no executivo. Enfim é o relatório. Mas falemos do filme. Gostei da forma como se conta a história, bem construída, fluída, com pitadas desses “inserts” modernos, com a personagem pensado, tendo flashes do passado enquanto está fazendo outra coisa no correr da ação. Sienna Miller “despencando” do teto do fórum, em uma plasticização daquilo que lhe vai pela cabeça. Esse recurso foi bem empregado para dar dramaticidade, enaltecendo as cores das emoções. A narrativa mais elaborada, mais presa às regras da nossa realidade é um alento em tempos de repetidos remakes de franquias de super-heróis. Pra quem gosta de histórias de detetive, crimes, ambiente forense, a série é garantia de bons momentos curtindo o desenrolar de uma história mais racional, cabeça.
As atuações são muito boas. Tomamos contato com vários temas interessantes, como a atuação do tribunal, o ambiente do parlamento inglês, é interessante, instigante.
Mas existem algumas coisas de que não gostei. A primeira, tal qual inscrito no comentário do Sérgio, é o fato de que a promotora, srta. Kate, possuiu envolvimento pessoal (bastante desagradável) com o acusado, James Whitehouse. Isso por si só, seria motivo para que, em um julgamento sério, fosse declarada a suspeição da promotora, dado ao fato que amigos, ou inimigos declarados não podem ocupar esses polos em um processo criminal, sob pena de prejuízo para a condução do feito. Claro. Um amigo tenderia a suavizar a contenda por todos os meios, ao passo que o detrator, faria o possível para piorar a situação do desafeto. E em termos de justiça, o equilíbrio é o que se busca. A sra. Kate, tão legalista, certinha, almofadinha mesmo, deveria ter, supostamente, a moral desenvolvida a ponto de declarar por si mesma, o impedimento para acusar James W. Está certo, ela mudou de nome e de visual, como ao fim ela diz para Sophie Whitehouse, mas isso não muda o fato de ela ser quem é. É um escorregão, um subterfúgio que passa despercebido de todo mundo. Algo importante, muito importante aliás, mas de que se faz pouco caso.
A segunda coisa que não achei muito adequada para “fechar” a história, para municiar Kate a acusar James, logo no fim, depois da conversa com Sophie, quando esta dá um “prêmio de consolação” para Woodcroft, foi a historieta da morte do companheiro de faculdade de James. Está certo que James e Tom trouxeram drogas e disseram algumas bobagens para o colega que, já drogado, vai se precipitar do telhado do prédio. Mas daí a concluir que os responsáveis foram Tom e James, são outros quinhentos meu caro! Quando alguém banca uma festa, por exemplo, supre os congeladores com bebidas: cerveja, cachaça etc. Se na festa acontece algum “arranca rabo” entre os convidados, já embriagados, nem por isso se pode jogar a culpa no organizador. Não vos parece correto esse raciocício ? Pois bem, pensando de forma semelhante no caso do suicídio do rapaz que pulou do telhado, penso que Tom e James não deveriam sair correndo feito celerados pela rua. Deveriam esperar o resgate chegar e prestar suas declarações do que aconteceu. Seriam censurados ? muito provavelmente. Perderiam suas vagas, ou seriam suspensos/punidos ? Talvez. Mas tudo isso seria melhor do que fazerem um pacto de silêncio, criando uma colcha de mentiras para encobrir sua presença no local do acontecido.
Mas é uma ótima série, recomendo.