Sniper Americano / American Sniper

Nota: ★★★☆

American Sniper, o 34º filme dirigido por Clint Eastwood, começa com uma demonstração de talento para encenar sequências de ação e uma belíssima, maravilhosa sacada, um brilhante efeito dessa peça fundamental da linguagem cinematográfica que é a montagem.

Os filmes de Clint não têm créditos iniciais – é uma das marcas registradas dele. Vemos apenas o logotipo da Warner, o estúdio que distribui seus filmes desde sempre, e os nomes das companhias produtoras, inclusive, é claro, a Malpaso, a produtora dele. E já estamos diante de uma sequência de ação.

Um tanque avança num bairro desolado, bombardeado de uma cidade. Soldados armados com a maior quantidade de armas que podem ser carregadas caminham perto do tanque, examinando as casas, evidentemente à procura dos inimigos.

Não há letreiro indicando o onde e o quando, mas dá perfeitamente para imaginar que é Iraque, a invasão do Iraque ordenada por George W. Bush em 2003. Não que isso importe, mas mais tarde o nome da cidade será mencionado – Falujah.

O atirador de elite está a postos, o fuzil com mira telescópica nas mãos

Plano geral, câmara bem no alto, provavelmente numa grua – vemos a rua onde os soldados caminham e, em primeiro plano, no topo de um prédio aí de uns dois ou três andares, deitado no chão diante de um fuzil de alta precisão voltado para a rua, o sniper do título – sniper, atirador de elite, franco-atirador, exímio atirador. Ao lado dele há um companheiro, outro soldado. Os dois têm fones para falar com os demais participantes da ação e o comando.

É o protagonista da história. Chris Kyle – o papel de Bradley Cooper, num grande desempenho. Chris Kyle é o nome de uma pessoa da vida real – American Sniper, como tantos outros filmes dirigidos por Clint Eastwood, conta uma história real.

Chris Kyle está vendo o que acontece na rua à sua frente, embaixo dele, tanto com a vista privilegiada que tem quanto com o auxílio da poderosa lente de seu fuzil. E o espectador vê, em tomadas alternadas, o quadro geral – o atirador pronto para a ação, deitado de bruços segurando o fuzil e os acontecimentos lá embaixo na rua – e exatamente o que Chris está vendo.

De uma casa, saem uma mulher e um garoto. A mulher usa véu, burca. Os dois caminham em direção ao comboio dos soldados.

Chris nota que a mulher parece carregar alguma coisa, porque não mexe o braço.

A mulher tira alguma coisa de debaixo da burca e entrega para o garoto.

Chris fala no fone para o comando da operação que é uma granada RKG. Pergunta se o comando pode ver a cena nas imagens feitas por câmaras colocadas estrategicamente para vigiar o local da ação. A resposta é negativa – o comando não está vendo a cena. “Você decide”, diz a voz no rádio. It’s your call. O atirador está autorizado pelos seus superiores – a decisão é dele.

Chris Kyle tem o dom da precisão, do tiro certeiro, desde que era criança

Na mira do fuzil de Chris Kyle está um garoto de não mais que 15 anos. Um garoto – mas que carrega uma granada, e está indo em direção ao tanque e aos soldados americanos.

Chris está pronto para apertar o gatilho.

No momento em que ouvimos um tiro, corta a cena.

Corta a cena – e estamos agora, sem interrupção algum, após o corte rápido, o efeito extraordinário, fantástico, inteligente, magistral de montagem, num belo bosque do país mais rico do mundo. Um pai e um filho, ambos armados de espingardas. Um belo animal pode ser visto à distância. O garoto atirou – o tiro que ouvimos foi o tiro que o garoto deu.

O pai diz: – “Você acertou”.

O garoto corre até o lugar em que jaz o grande animal, um alce. Na pressa de ver o animal, ele joga a espingarda no chão – e aí o pai dá a bronca: – “Nunca jogue o seu rifle no chão”.

O garoto pede desculpas, pega o rifle. O pai chega perto, passa a mão na cabeça dele: – “Foi um belo tiro, filho. Você tem o dom.”

– “It was a hell of a shot, son. You’ve got a gift”.

A legenda traduziu por “você tem talento”. Não é uma tradução exata. É mais que talento – é um dom.

Não tem nada a ver, mas não consegui deixar de lembrar da cena de Doutor Jivago (1965) em que o coronel Yevgraf (Alec Guinness), meio-irmão do poeta Yuri Jivago (Omar Sharif), fica conhecendo uma jovem (interpretada por Rita Tushingham), que talvez seja sua sobrinha, filha de Yuri e sua amante Lara (Julie Christie). O coronel nota que a garota carrega pendurada no ombro uma balalaica, o instrumento típico russo. O namorado da garota diz que ela tem talento. E o coronel diz, mais para si mesmo que para o jovem casal: – “Então é um dom.” “Then it’s a gift.”

Em menos de 5 minutos de filme, Clint Eastwood mostra que Chris Kyle tem o dom da precisão, do tiro certeiro, desde que era criança.

De quebra, dá um show de cinema.

Aquele momento com o garoto na sua mira é a primeira missão de Kyle

O roteiro de Jason Hall usou isso que chamo de narrativa-laço: começa em um ponto-chave da história, um clímax, e em seguida faz um flashback.

Há filmes em que a narrativa fica indo e voltando do presente ao passado, pra lá e pra cá, feito bola de pingue-pongue. Essa estrutura pode ficar um tanto cansativa.

Não é o caso aqui. O roteirista Jason Hall – que se baseou no livro de memórias de Chris Kyle, escrito por ele com a ajuda de Scott McEwen e Jim DeFelice – usou com perfeição a narrativa-laço: abriu naquele momento de tensão absoluta no Iraque e voltou para a infância de Chris. Em seguida, depois desses 3 ou 4 minutos magníficos, magnéticos, da abertura, American Sniper passa uns 20 minutos mostrando, em rigorosa ordem cronológica e pinceladas precisas, alguns fatos básicos da vida do protagonista.

A igreja aos domingos. As refeições da família reunida, a mãe servindo em silêncio, o pai comandando o show. O pai apaixonado por rifles, autoritário, com aquela visão maniqueísta, machista do mundo e das coisas: “Há três tipos de pessoas no mundo: as ovelhas, os lobos e os cães pastores”.

Na juventude, os rodeios, juntamente com o irmão mais novo e mais fraco, Jeff (Keir O’Donnell). O choque com notícias de ataques terroristas a embaixadas americanas no final dos anos 90 – e a decisão de se alistar. O duríssimo treinamento para se tornar membro dos SEALS da Marinha americana – uma força de operações especiais, um grupo de elite das forças armadas.

A sorte grande de encontrar, num bar, uma mulher bela, atraente, forte, de personalidade marcante, Toya (o papel de uma Sienna Miller com cabelos negros).

Toya está grávida do primeiro dos dois filhos que teria com o marido e o filme está com uns 25 minutos quando termina o flashback e voltamos para o instante em que Chris está com o fuzil apontado para o garoto que carrega uma granada e caminha em direção ao grupo de soldados americanos.

Ao contrário que se poderia pensar, ao contrário do que eu pensei na hora, naquele momento Chris ainda não era um atirador experiente em combate. Não, de forma alguma. Tinha feito o treinamento duro, rigoroso, todo – e possuía aquele dom da mira perfeita, desde sempre. Mas aquele momento ali é sua prova de fogo, sua primeira experiência real no front de guerra, sua primeira missão.

O filme vai mostrar que Chris teve quatro temporadas no Iraque. Já nesta primeira, tornou-se uma lenda entre a tropa. Era chamado assim, A Lenda. Voltou três vezes a seu país, sua mulher linda, sua família – e voltou três vezes ao Iraque.

Quando o filme já está bem perto do final, um psiquiatra que o examina diz que, segundo os dados da Marinha, Chris havia matado 160 pessoas.

O filme parece fazer questão de não entrar em discussão sobre moral

American Sniper foca muito mais Chris Kyle em ação do que Chris Kyle, a pessoa, junto da família. Há muito mais Iraque do que casa, no filme. Muito, muito mais.

Os questionamentos sobre os efeitos dessa capacidade de matar sobre a mente do protagonista da história não pesam muito na narrativa. Estão lá, de vez em quando – mas não são o mais importante, de forma alguma. Muito ao contrário. Os questionamentos são quase en passant.

O filme foca muito mais, repito, em Chris Kyle em ação.

Faz lembrar aqueles versos de Bob Dylan na canção em que ele descreveu a saga do pugilista Rubin Carter, o Hurricane, preso, julgado e condenado pelo assassinato de três pessoas em um bar em Paterson, Nova Jersey. “Rubin podia derrubar um homem com apenas um soco, mas ele nunca gostava de falar sobre isso. ‘É meu trabalho’, ele dizia, ‘faço isso para viver’.

Chris Kyle poderia perfeitamente dizer quase a mesma coisa. “È meu trabalho.”

Era o trabalho dele matar – ele entendia assim. É isso que o filme mostra. Entendia que era seu trabalho. Mais ainda: era sua missão.

Não se lamentava por ter matado 160 – lamentava-se por não ter matado tantos outros que mataram seus compatriotas.

Isso é um horror? O horror dos horrores?

American Sniper parece fazer absoluta questão de não entrar nisso. A sensação que se tem é de que o filme faz absoluta questão de não fazer julgamento moral, se é certo, se é errado, se é absurdo, se é o horror dos horrores. O filme quer apenas contar a história desse jovem texano que tinha o dom da mira perfeita.

Seis indicações ao Oscar, 24 prêmios, excelente bilheteria

American Sniper recebeu seis indicações ao Oscar 2015, inclusive nas categorias de melhor filme e melhor ator para Bradley Cooper. Só levou o prêmio técnico de melhor edição de som. (As outras três indicações ao Oscar foram para roteiro adaptado, montagem – por Joel Cox e Gary Roach – e mixagem de som.)

Ao todo, o filme teve 24 prêmios, fora outras 42 indicações.

Foi uma produção cara – custou US$ 58,8 milhões. Mas pagou-se com folga e deu lucro – US$ 350 milhões de renda nos Estados Unidos, US$ 547 milhões no total. Até 2015, era o filme de guerra de maior bilheteria nos Estados Unidos, em termos nominais, sem ajuste pela inflação, batendo o recordista anterior, O Resgate do Soldado Ryan, (1998), de Steven Spielberg.

Assim como Chris Kyle, Clint Eastwood não erra o tiro.

Clint Eastwood faz uma participação especial à la Hitchcock

A página de Trivia– informações sobre a produção, as filmagens, curiosidades – do IMDb sobre o filme tem nada menos que 98 itens. Dá até preguiça, mas vou colocar aqui algumas das mais interessantes.

* Chris Kyle nasceu em 1974. Estava com 25 anos em 1999 quando se alistou na Marinha, e não com 30, como é dito no filme.

* Chris Kyle disse que, se fosse para ser feito um filme sobre sua vida, o diretor teria que ser Clint Eastwood. Já Taya Kyle achava, inicialmente, que Sandra Bullock deveria fazer o papel dela. Consta, no entanto, que acabou gostando muito da escolha de Sienna Miller.

* Clint Eastwood faz uma pequena participação especial no filme, à la Hitchcock: quem prestar muita atenção poderá vê-lo entrando na igreja em que o garoto Chris rouba uma pequena Bíblia, no início do filme.

* Bradley Cooper teve que engordar cerca de 20 quilos para ficar fisicamente mais parecido com o Chris Kyle da vida real. A preparação foi dura: além de superalimentação e muito exercício físico, o ator viu e reviu filmes que mostravam Chris. E praticou tiro com um sniper, um membro da SEAL, Kevin Lacz, que na vida real serviu ao lado de Chris e trabalhou como consultor da produção do filme.

* Foi a terceira indicação consecutiva de Bradley Cooper ao Oscar, depois de O Lado Bom da Vida (2012) e Trapaça (2013).

* Como em geral acontece com os filmes de Clint Eastwood, as filmagens foram bem rápidas: levaram apenas 42 dias. E, com exceção de duas semanas no Marrocos – onde foram feitas as sequências passadas no Iraque –, todo o resto das filmagens foi na Califórnia.

* Steven Spielberg esteve ligado ao projeto de fazer American Sniper, e chegou a dar idéias, sugestões, para o roteirista Jason Hall – como, por exemplo, a existência de um atirador magistral lutando contra os americanos. Foi apenas em agosto de 2013, pouco tempo antes da data marcada para o início das filmagens, que Spielberg desistiu do projeto. Dias depois, ainda no mesmo mês, a produção anunciou a escolha de Clint Eastwood.

Falei que Clint volta e meia faz filmes baseados em fatos e pessoas reais. Só para citar alguns entre os mais recentes: A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima (2006), Invictus (2009), J. Edgar (2011), Jersey Boys: Em Busca da Música (2014), Sully: O Herói do Rio Hudson (2016) e 15h17 – Trem Para Paris (2018).

O bicho é fodinha.

Anotação em fevereiro de 2018

Sniper Americano/American Sniper

De Clint Eastwood, EUA, 2014

Com Bradley Cooper (Chris Kyle)

e Sienna Miller (Taya), Cole Konis (Chris Kyle garoto), Ben Reed (Wayne Kyle, o pai), Elise Robertson (Deby Kyle, a mãe), Luke Sunshine (Jeff Kyle garoto), Keir O’Donnell (Jeff Kyle), Marnette Patterson (Sarah), Brandon Salgado Telis (Bully), Jake McDorman (Biggles), Cory Hardrict (Dandridge), Eric Ladin (Squirrel)

Roteiro Jason Hall

Baseado no livro de Chris Kyle, Scott McEwen e Jim DeFelice

Fotografia Tom Stern

Montagem Joel Cox e Gary Roach

Casting Geoffrey Miclat

Produção Warner Bros., Village Roadshow Pictures, RatPac-Dune Entertainment, Mad Chance, 22 & Indiana Production, Malpaso Productions.

Cor, 133 min (2h13)

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