A maravilhosa Glenn Close está brilhante, extraordinária, no papel que dá o título do filme A Esposa. Foi sua sétima – sétima! – indicação ao Oscar, e a sétima vez em que não levou a estatueta. Mas isso de fato não importa: a interpretação dela é magnifica, e o Oscar que se dane.
É uma produção extremamente caprichada, em todos os quesitos. O grande Jonathan Pryce, que faz o marido, o outro protagonista da história, está excelente como sempre.
O filme foi muito bem recebido pela crítica, fez sucesso nos festivais mundo afora: ganhou 13 prêmios e teve outras 21 indicações.
O londrino The Guardian, por exemplo, deu 5 estrelas em 5, e derramou-se pelo filme já no título e na linha filha, o olhinho: “Glenn Close está brilhante como esposa de autor mergulhada na crise da velhice.” “Como a aparentemente perfeita esposa de um escritor vencedor do Prêmio Nobel, Close dá a possivelmente melhor interpretação de sua vida na adaptação da novela de Meg Wolitzer.”
Meg Wolitzer é uma escritora americana nascida em 1959, no Brooklyn, Nova York, filha de uma novelista e um psicólogo; The Wife foi seu sexto romance, publicado em 2003. O romance foi adaptado para o cinema pela roteirista Jane Anderson, que fez os roteiros de um episódio de Mad Men e de quatro dos oito episódios de Olive Kitteridge.
Eis o primeiro parágrafo da crítica do filme assinada por Peter Bradshaw no Guardian:
“’Não há nada mais perigoso do que um escritor cujos sentimentos foram feridos.’ A frase é de Joan Castleman, a esposa charmosa, enigmaticamente discreta e prestativa do famosíssimo leão literário Joe Castleman, de Nova York. É uma atuação fascinante e cheia de bravura de Glenn Close, nessa imensamente agradável comédia de humor negro do diretor Björn Runge (…). Talvez seja a melhor da carreira de Close – enervantemente sutil, incrivelmente calma, em ebulição mas com autocontrole. É um retrato para ser colocado ao lado das interpretações de Close em Dangerous Liaisons e Fatal Attraction. Sua Joan é um estudo da dor conjugal, da falsidade e das políticas sexuais do prestígio. Este é um filme imperdível para os fãs de Glenn Close. Na verdade, você não conseguirá vê-lo sem se transformar em fã dela – se é que você ainda não era.”
“Glenn Close é sutilmente devastadora”
“Ela pensa em tudo”, escreve Christy Lemire no site RogerEbert.com, que dá ao filme 3 estrelas em 4. “Onde estão os óculos dele, a hora de ele tomar os remédios, o que ele deveria comer no almoço. Depois de três décadas juntos, a esposa se antecipa às necessidades do marido e o provê de tudo antes mesmo que ele perceba que as tem – e certamente muito antes de ela mesma sequer pensar em satisfazer às suas próprias necessidades.
“É uma dinâmica eficiente, mesmo que pouco sadia, e que fez o casamento se manter atravé de dois filhos e um neto que está para chegar, através de casos de infidelidade, através do sucesso literário espetacular e prolongado do marido, até sua maior conquista: o Prêmio Nobel. Essa deveria ser uma ocasião festiva para os dois, uma chance de dar uma descansada e comemorar com orgulho a vida que eles construíram juntos. Em vez disso, transforma-se em uma oportunidade para que a esposa se confronte com aalgumas verdades desconfortáveis, duramente escondidas.
“O processo de obter clareza é algo fascinante de se observar ao longo de alguns poucos dias em que se passa a ação de The Wife. E, no papel do personagem título, Glenn Close é sutilmente drevastadora, indicando uma vida inteira de repressão e ressentimento em cada pequeno sorriso irônico e olhar seco. Close e Jonathan Pryce têm uma química crepitante, e os dois veteranos têm prazer em cada brincadeira esperta ou batalhas lacerantes. Mas enquanto o personagem de Pryce se mantém firme em seu narcisismo e carência, o de Close passa por uma transformação suavemente poderosa de esposa devotada para uma inflamada força da natureza. Aquele tipo de cenas em que Close brilha com vigor demora a aparecer, mas, quando elas aparecem, são fantásticas. Observar as mudanças em seu personagem até chegar ao ápice nos dá um tipo diferente de prazer.”
A filha da atriz faz o personagem da mãe quando o jovem
Esses parágrafos iniciais das críticas de Peter Bradshaw no Guardian e de Christy Lemire no RogerEbert.com – corretíssimos, precisos, exatos – são belas definições do filme dirigido pelo sueco Björn L Runge, aliás seu primeiro falado em inglês. (The Wife é uma co-produção Inglaterra-Escócia-Suécia-EUA.)
São também, é claro, uma apresentação geral do filme muitíssimo melhor do que eu saberia fazer. Até porque, apesar de todas as muitas óbvias qualidades do filme – as maravilhosas atuações dos atores, a fotografia, a direção de arte, a trilha sonora –, eu não gostei dele, por causa de duas características sobre as quais falo um pouquinho mais adiante.
Antes, gostaria de registrar algumas informações interessantes sobre o filme e sua produção.
Eu não sabia enquanto via o filme, mas a atriz Annie Starke, que faz a Joan jovem, é filha de Glenn Close e do produtor John H. Starke. Nasceu em 1988, no Estado de Connecticut – exatamente aquele em que se passa parte da história. Joe e Joan, na meia idade, moram numa bela casa em Connecticut; é lá que recebem o telefone da Academia Sueca informando que Joe ganhou o Nobel.
Interessante escolha da filha para interpretar a personagem que a mãe faz na meia idade – só que Annie Starke não se parece nada com Glenn Close.
Assim como o ator Harry Lloyd, que faz Joe mais jovem, não tem absolutamente nada a ver, fisicamente, com Jonathan Pryce.
O ator que faz David Castleman, o filho de Joe e Joan que aspira ser escritor, é Max Irons. Vem a ser filho de Jeremy Irons, o grande ator inglês que contracenou com Glenn Close em O Reverso da Fortuna (1990), um dos filmes mais importantes das carreiras dos dois.
Coincidências, coincidências.
Elogios demais à prosa do escritor fictício
Depois de apresentar outras opiniões e alguns fatos, agora dou minha opinião.
Duas características importantes, fundamentais da história, da trama, da construção dos personagens. me incomodaram profundamente.
A primeira delas foi o absoluto endeusamento que se faz da prosa de Joseph Castleman – o papel de Jonathan Pryce.
Todas as referências aos romances escritos por Joe Castleman são superlativas demais da conta. Tipo o escritor que revolucionou para sempre o modo de se escrever romance.
Não sei se esse tipo de exagero está no romance The Wife, da autoria de Meg Wolitzer, ou se é de responsabilidade da roteirista Jane Anderson – mas as seguidas referências à absoluta genialidade da prosa de Joe Castleman me deixaram um tanto nauseado.
Há mais elogios à prosa de Joe Castleman no filme do que toda a humanidade fez nos últimos séculos todos a Liev Tolstói, Thomas Hardy, Charles Dickens, James Joyce, Ernest Hemingway, Eça de Queiróz, Machado de Assis – juntos!
Um defensor do filme poderia talvez argumentar que isso é um detalhe. Não, não é um detalhe. É algo fundamental dentro da trama. É da qualidade literária dos livros assinados por Joe Castleman que se trata, afinal de contas. É a essência, é o fulcro da questão – e é pateticamente exagerado.
Um escritor que revolucionou para sempre o modo de se escrever romance! Ah… Que besteira monumental! Que sandice!
Atenção: a partir daqui, spoiler bravo, violento
Sobre a segunda característica do filme que me incomodou profundamente, só é possível falar depois de deixar muito claro que se trata de spoiler, de sério, violento spoiler.
A partir de agora, este texto vai revelar o fim da história, o fim do filme. É spoiler bravo.
Não tem sentido um eventual leitor que não tenha visto ainda o filme ler a partir daqui.
Spoiler! Comenta-se aqui sobre o fim da história
É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha…
Minha mãe costumava usar muito essa imagem bíblica. Ela é perfeita para a história de Joan Castleman.
É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que uma mulher que tem o dom de escrever muito bem permitir que o marido assine seus textos.
É mais fácil todos os camelos do mundo passarem uns em cima dos outros ao mesmo tempo pelo buraco de uma agulha que um ser humano viver três décadas vendo o marido/a mulher brilhar por assinar os textos que não escreveu.
Isso não existe. Isso é impossível. Não tem sentido. Não tem lógica.
Perdão, mas isso é coisa de literatura ruim.
Com todo o respeito que possam merecer a escritora Meg Wolitzer e a roteirista Jane Anderson.
E não adianta a tentativa de justificar a docilidade de 30 anos de Joan com a mentira com as frases da escritora Elaine Mozell, de que, naquela época específica, final dos anos 1950, inicinho dos 1960, os livros assinados por mulheres simplesmente não seriam lidos. – “Afinal, o importante, para um escritor, é escrever ou ser lido?”, pergunta a tal escritora à jovem Joan. Elaine Mozell é o papel da maravilhosa Elizabeth McGovern, em uma participação especialíssima: ela só aparece nessa sequência, obviamente na tentativa dos autores de se dar a Joan uma motivação para escrever e ser lida, mesmo não tendo seu nome divulgado.
Isso não existe. Passar 30 anos escrevendo na sombra absoluta, para que outro tenha toda a glória, todo o reconhecimento – isso não existe, nem aqui, nem na China, nem na Conchinchina, nem na mais distante galáxia. Isso só acontece em literatura ruim.
Bem, mas esta é apenas minha opinião. Milhares e milhares de pessoas gostaram do filme e não acharam nada demais nisso que eu digo que é o mais completo absurdo.
Cada cabeça, uma sentença. Graças a Deus.
Anotação em março de 2019
A Esposa/The Wife
De Björn L Runge, Inglaterra-Escócia-Suécia-EUA, 2017
Com Glenn Close (Joan Castleman), Jonathan Pryce (Joe Castleman)
e Max Irons (David Castleman, o filho), Christian Slater (Nathanial Bone, o biógrafo), Harry Lloyd (Joe jovem), Annie Starke (Joan jovem), Elizabeth McGovern (Elaine Mozell, escritora), Johan Widerberg (Walter Bark), Karin Franz Körlof (Linnea, a fotógrafa), Richard Cordery (Hal Bowman), Jan Mybrand (Arvid Engdahl), Anna Azcárate (Mrs. Lindelöf), Peter Forbes (James Finch), Fredric Gildea (Mr. Lagerfelt), Jane Garda (Constance Finch), Alix Wilton Regan (Susannah Castleman, a filha), Nick Fletcher (rei Gustav), Mattias Nordkvist (Dr. Ekeberg), Suzanne Bertish (Dusty Berkowitz), Grainne Keenan (Carol Castleman, a primeira mulher de Joe)
Roteiro Jane Anderson
Baseado no romance homônimo de Meg Wolitzer
Fotografia Ulf Brantås
Música Jocelyn Pook
Montagem Lena Runge
Casting Elaine Grainger e Susanne Scheel
Ptodução Silver Reel, Meta Film, Anonymous Content, Tempo Productions, Embankment Films.
Cor, 99 min (1h39)
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