Martin Scorsese, que, como os personagens, descende de italianos, e é apaixonado por bons filmes e boa música, seguramente deve ter adorado este Jersey Boys.
Bob Fosse, cujo perfeccionismo só permitiu que fizesse cinco filmes, entre um espetáculo musical na Broadway e outro, certamente teria adorado tudo, até mesmo as danças coreografadas por Sergio Trujillo. Bruce Springsteen, ele também um Jersey Boy como os quatro protagonistas da história, com toda certeza adorou. Até Frank Sinatra, citado nos diálogos algumas vezes, umbigocêntrico do jeito que era, pouco afeito a reconhecer qualidades dos outros, teria dito, com certeza, que o filme é bonzinho.
Não há como não se encantar com Jersey Boys: o filme é uma absoluta delícia. Ainda corriam os créditos finais (uma das características de todos os filmes dirigidos por Clint Eastwood é a não existência de créditos iniciais), e Mary, ao meu lado, não se continha e dizia, um tanto como a personagem de Leland Palmer em All That Jazz, diante da genialidade do texto de seu ex-marido, o coreógrafo Joe Gideon: “Filho da puta! A cara faz de tudo – musical, bangue-bangue, guerra, romance – e faz tudo genialmente!”
É isso aí: tudo o que Clint Eastwood faz, faz com absoluto brilho. Fez bons filmes desde sua estréia na direção, em Perversa Paixão/Play Misty for Me, de 1971, quando estava com 41 anos de idade. Ao longo dos 43 anos após essa estréia, fez outros 36 filmes. Muitos deles, em especial a partir de Os Imperdoáveis/Unforgiven (1992), grandes filmes, filmaços.
As Pontes de Madison (1995). Poder Absoluto (1997). Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal (1997). Sobre Meninos e Lobos (2003). Menina de Ouro (2004). A Troca (2008). Gran Torino (2008). Além da Vida (2010).
Este Jersey Boys talvez não mereça ser considerado propriamente um grande filme, um filmaço, porque, a rigor, a rigor, a rigor, não é indispensável, fundamental. Mas é um filme perfeito – é preciso querer mais que isso?
É uma espécie de biografia autorizada – mas mostra muita coisa suja
Jersey Boys é assim uma espécie de biografia autorizada do grupo pop Four Seasons. O grupo pode ser hoje pouco conhecido no Brasil, mas, no finalzinho dos anos 50 e início dos 60, era o conjunto mais popular dos Estados Unidos, rivalizando apenas com os Beach Boys e, a partir de 1963, com os Beatles.
Digo biografia autorizado porque membros do conjunto participaram da produção do filme: Frankie Valli e Bob Gaudio, dois dos membros da formação original, são produtores executivos do filme; Bob Gaudio, que compôs boa parte do repertório do grupo, assina a trilha sonora.
O fato de ser “autorizado”, de ter sido supervisionado por dois dos principais personagens da história, não significa, no entanto, que o filme seja róseo, que tenham sido evitados fatos negativos, coisas sujas, podres. Sobram coisas sujas, podres no filme, porque, ao que tudo indica, a história dos Four Seasons foi cheia de bons momentos, sucesso, glória – mas também houve muita desentendimento, atrito, briga, desfalque, baixaria, até tragédia.
O roteiro é assinado por Marshall Brickman e Rick Elice, e é baseado no musical de teatro escrito por eles mesmos. Como tudo o que diz respeito aos Four Seasons, Jersey Boys, o musical, foi um tremendo sucesso. Estreou na Broadway em 2005, e ainda estava em cartaz em 2014, o ano em que o filme foi lançado; em 9 de abril de 2014, o musical chegou à apresentação de número 3.487 na Broadway, tornando-se o 13º espetáculo com maior número de performances em Nova York – e portanto nos Estados Unidos.
Além da montagem da Broadway, o musical já teve duas turnês pelos Estados Unidos e produções no West End de Londres, em Las Vegas, Chicago, Toronto, Melbourne e Cingapura.
A montagem da Broadway ganhou 4 Tonys, o Oscar do teatro americano, inclusive os de melhor musical e melhor ator para John Lloyd Young, que interpreta Frankie Valli. O mesmo ator faz o papel do cantor do grupo no filme de Clint Eastwood.
No filme, o compositor (e também cantor) Bob Gaudio é interpretado por Erich Bergen, que também fez o mesmo papel em uma das montagens do espetáculo nos Estados Unidos.
Aliás, praticamente todos os atores do filme são desconhecidos do público brasileiro, e devem provavelmente ter vindo do teatro. A única exceção, o único nome conhecido do elenco é Christopher Walken (na foto acima).
Volta e meia os atores se viram para a câmara e conversam com o espectador
Consta que foi de Bob Gaudio a idéia original de se fazer um espetáculo teatral a partir das canções do Four Seasons – boa parte delas, como já foi ditto, de autoria dele, com letras do produtor de discos Bob Crewe (no filme, interpretado por Mike Doyle), o sujeito que primeiro contratou o conjunto. No início dos anos 2000, Gaudio procurou os escritores Marshall Brickman e Rick Elice e ofereceu a eles a idéia de criar um espetáculo. Brickman adorou: “It’s a classic American story. It’s rags to riches, and back to rags” – uma história clássica da América, da miséria à riqueza e depois de volta à miséria.
Àquela altura, o grupo não existia mais. Em 1990, os quatro membros da formação original – Frankie Valli, Bob Gaudio, Tommy DeVitto e Nick Massi – haviam se reunido pela primeira vez em muitos para a cerimônia de entronização dos Four Seasons no Rock’n’Roll Hall of Fame.
Os dois escritores fizeram então diversas entrevistas com os três sobreviventes (Nick Massi já havia morrido) e com parentes deles, além, é claro, de pesquisa sobre tudo o que a imprensa havia publicado sobre o grupo na época.
E eles perceberam que cada um dos membros do grupo contava a história de uma maneira um tanto diferente da visão dos demais. Resolveram, então, escrever o texto do musical dessa forma, com os fatos sendo contados primeiro por um, depois por outro, depois por outro – quatro versões um tanto diferentes da mesma história, seguindo o estilo do maravilhoso clássico Rashomon, do mestre Akira Kurosawa, de 1950.
No filme, os dois autores não mantiveram exatamente essa estrutura. A história vem sendo contada cronologicamente, desde 1951, até exatamente a cerimônia do Rock’n’Roll Hall of Fame, em 1990. O que ficou da estrutura original foi que volta e meia um dos personagens vira-se para a câmara, para os olhos do espectador, e conta um pouco da história – enquanto, na tela, vai-se reproduzindo o que está descrevendo.
Foi o amor pela música que afastou aqueles garotos do crime
Era uma vez, em 1951, em Belleville, pequena localidade do Estado de Nova Jersey, três amigos – Frankie, Tommy e Nick –, todos filhos de imigrantes italianos. Frankie, na pia batismal Francesco Stephen Castelluccio, tinha uma bela voz, e trabalhava como auxiliar num salão de barbeiro. Tommy (Vincent Piazza) e Nick (Michael Lomenda), principalmente o primeiro, tinham uma queda acentuada pelo outro lado da lei.
Como jovens descendentes de italianos de outras localidades vizinhas de Nova York mostrados nos filmes de Martin Scorsese, Tommy e seus amigos flertavam – apaixonadamente – com a marginalidade. Deve de fato ter sido uma doença contagiosa entre os filhos e netos de italianos: seja mafioso, seja herói.
A imensa admiração dos garotos pelos chefões mafiosos é mostrada de cara no filme, exatamente através da figura de Angelo DeCarlo, que todos naquela região de Nova Jersey conheciam, admiravam, respeitavam e temiam como Gyp – é o papel de Christopher Walken, e ele parece feito para interpretar don Gyp. Está à vontade no papel, parece feliz como pinto no lixo.
Gyp tinha simpatia por aqueles garotos; era assim uma espécie de santo protetor deles. Adorava a voz de Frankie – chegava a chorar ao ouvi-lo cantar as canções prediletas da mãe dele, Gyp.
Tommy foi preso várias vezes – por roubo, invasão de propriedade, coisinhas assim. Alguns de seus amigos também. Foi muito provavelmente o gosto deles pela música que acabou os afastando do chamado forte do crime. É o que mostra o filme.
No essencial, o fiel é bem fiel à verdade histórica. Mas há errinhos
Aparentemente, a história que se conta em Jersey Boys, o filme, é bem próxima do que realmente aconteceu na vida dos rapazes que viriam a formar o conjunto musical The Four Seasons. Não houve, como já foi dito, preocupação em tornar a história rósea. O espírito da coisa parece – é o que tudo indica – bem próximo da realidade. Mas não houve grande preocupação em transcrever os fatos com exatidão, com precisão, na ordem cronológica exata.
Me parece de fato isso: os autores do musical e também do roteiro quiseram ser fiéis à essência da história, ao caráter dos personagens. Essa preocupação foi maior do que os cuidados com as minudências.
Isso fica claro quando a gente vê as páginas de trivia e goofs – trivialidades e erros, equívocos – do filme no IMDb. Há diversos itens, mas muitos, muitos, dizendo que tal coisa não aconteceu na ordem em que aparecem no filme. Por exemplo:
* Quando canta “Walk Like a Man” no programa de TV Bandstand, o conjunto é chamado de Frankie Valli and The 4 Seasons. Isso é errado: o nome da banda só deixou de ser Four Seasons para Frankie Valli and The 4 Seasons em 1970, derpois que Tommy DeVitto e Nick Massi saíram.
* No apartamento de Bob Crewe, no final dos anos 50, aparecem, bem visíveis, LPs de platina. A entrega de discos de platina para os mais vendidos pela associação americana das gravadoras só começou em 1976.
Coisas assim – detalhinhos, coisículas.
E então aqui vão mais alguns detalhinhos.
* Lá pelas tantas, no aparelho de TV que está em uma sala qualquer, aparece, numa rapidíssima tomada, um Clint Eastwood muito, mas muito jovem. É uma imagem de Rawhide, uma série de TV de 1959.
* Na casa dos pais de Frankie pode ser vista uma foto de Frank Sinatra. Frankie sempre dizia que queria ser maior que Sinatra. Mas a informação mais sensacional vem agora: se o IMDb não estiver errado (e essa possibilidade é bem difícil), os dois Franks, o que adotou o nome artístico de Sinatra e o que adotou o nome de Valli, começaram suas carreiras cantando num night club de propriedade de Gyp de Carlo, o chefão mafioso interpretado no filme por Christopher Walken.
* É impressionante como na trama de Jersey Boys as mulheres têm pouca importância, ou, no mínimo, aparecem pouco. Das atrizes que aparecem no filme (e em geral aparecem apenas durante umas poucas sequências), há uma que me impressionou. Chama-se Renée Marino (nas fotos), nunca havia trabalhado no cinema – é atriz de teatro. Faz o papel de Mary Delgado, que come Frankie e se casa com ele. É uma bela mulher. Mulherão.
Pode-se até não gostar da música dos Four Seasons, mas eles foram grandes
Sou apaixonado por música pop, ouço muito, sempre li bastante sobre, até acho que conheço alguma coisinha. No entanto, nunca tive nenhuma ligação com The Four Seasons, não tenho disco deles. Nem sabia que eles tinham sido tão importantes. Depois de ver o filme e de começar esta anotação, dei uma lida sobre eles em alguns livros e fiquei impressionado. Eles colocaram nada menos que 29 discos entre os 40 mais vendidos nos Estados Unidos, no período de 1962 a 1976. Quase o mesmo que os Beach Boys, que botaram 32. Perdem para os Beatles (48 discos, incluindo, é claro, os compactos simples, os discos de apenas duas músicas), (Esses números são do The Billboard Book of U.S. Top 40 Hits, uma edição de 1983.)
“The Four Seasons foram o mais bem sucedido grupo americano da era do rock, com uma notável história de sucesso que se prolonga por 14 anos. Pela conta mais recente, venderam mais de 80 milhões de discos”, diz The Illustrated Encyclopedia of Rock, edição de 1976.
O som dos Four Seasons é um popzinho suave, quase adocicado. A voz de Frankie Valli é a marca registrada do grupo – ele é tenor, e canta em falsete. Parece muitas vezes uma voz feminina, e o filme mostra bem isso, quando o grupo começa finalmente a fazer sucesso. Ao ouvir agora algumas das canções do grupo que fizeram estrondoso sucesso nos anos 60 – “Sherry”, “Big Girls Don’t Cry”, “Walk Like a Man” –, minha sensação foi de que os Four Seasons estão muito mais para Abba do que para, digamos, Buddy Holly, o jovem gênio texano que fazia fantástico sucesso em 1958, quando os garotos de Jersey estavam começando.
Essa distância do rock’n’roll mais vigoroso, essa coisa suave, delicada dos Four Seasons, mais as letrinhas adolescents sobre amor e perda da garota, seguramente explicam por que o verbete sobre o conjunto no The Rolling Stone Record Guide edição 1979 é tão sucinto e seco. “No início dos 60, os Four Seasons enfrentavam a Motown, os Beach Boys e os Beatles pela supremacia nas paradas pop. Liderados pelo valsete agudo do vocalista Frankie Valli, eles lançaram diversos sucessos.”
Fascinantemente, uma nova edição da mesma obra, de 2004, com o título de The New Rolling Stone Album Guide, “completamente revista e atualizada”, trouxe um verbete absolutamente diferente, e bem mais extenso, sobre The Four Seasons. A lição que se tira disso é bem simples: a gente pode até não gostar dos Four Seasons, mas não adianta brigar contra os fatos – eles foram muito importantes.
A reconstituição de época é um espanto, a fotografia é um brilho
O pop não é propriamente a praia musical de Clint Eastwood. O cara é muito chegado ao jazz – em 1988, lançou Bird, uma biografia de Charlie Parker – e à grande música americana, os standards dos grandes autores. Em Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal, faz uma elegia ao compositor Johnny Mercer, autor das letras de todas as diversas canções apresentadas ao longo do filme.
Mas é como disse a Mary: ele é bom em tudo que faz. Já tinha até feito um dueto com um grande nome da música country, Merle Haggard, na canção “Barrom buddies”, no filme Bronco Billy (1980). Por que não filmar a história do grupo pop de maior sucesso dos Estados Unidos nos anos da invasão britânica?
A reconstituição de época feita pelos diretores de arte de Jersey Boys é um espanto. A fotografia é um bilho: não consigo exprimir direito, mas o diretor de fotografia Tom Stern conseguiu criar um tom particular para as cores; é algo meio flu, meio fosco, quase impressionista, que tem um efeito semelhante ao que o sépia teria – dá um tom de coisa do passado. É espantoso.
O coreógrafo Sergio Trujillo é o mesmo da montagem original da Broadway. Ao longo da narrativa, não há muita dança – apenas a coreografia dos próprios músicos, durante as apresentações. Mas, para o encerramento, para o grand finale, Clint Eastwood quis botar todo mundo para dançar. Ao som de “Sherry”, e, em seguida, de “Oh, what a night”, todos os atores – os principais e os secundários todos – cantam e dançam na rua, enquanto começam a rolar os créditos finais. É belíssimo, é emocionante, é para aplaudir de pé como na ópera.
Anotação em janeiro de 2015
Jersey Boys: Em Busca da Música/Jersey Boys
De Clint Eastwood, EUA, 2014
Com John Lloyd Young (Frankie Valli), Erich Bergen (Bob Gaudio), Michael Lomenda (Nick Massi), Vincent Piazza (Tommy DeVito), Christopher Walken (Angelo “Gyp” DeCarlo), Mike Doyle (Bob Crewe), Renée Marino (Mary Delgado), Freya Tingley (Francine aos 17 anos), Steven R. Schirripa (Vito), Kathrine Narducci (a mãe de Frankie), Lou Volpe (o pai de Frankie), John Cannizzaro (Nick DeVito), Lacey Hannan (Angela),
Roteiro Marshall Brickman e Rick Elice, baseado no musical escrito por eles
Fotografia Tom Stern
Música Bob Gaudio
Montagem Joel Cox e Gary Roach
Coreografia Sergio Trujillo
Produção Four Seasons Partnership, GK Films, Malpaso Productions, RatPac Entertainment. DVD Warner Bros.
Cor, 134 min
****
Esse filme só ganha 4 estrelas por não ser possível dar 1000000.
Hêhê… É bem isso.
Diga uma coisa, Senhorita: assim, na vida, você é tão sintética quanto nos comentários?
Abração!
Sérgio
Eu faço o que posso rsrsrs