O Sistema / The East

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3.0 out of 5.0 stars

Este O Sistema, no original The East, é um filme bem interessante, e por vários motivos. Foi feito por gente bem jovem – com o apoio dos veteranos irmãos Ridley e Tony Scott, que assinam como respectivamente produtor e produtor executivo.

Fala de uma realidade pouquíssimo abordada pelo cinema: os jovens americanos que se empenham no fanatismo do ecoterrorismo. É audacioso, corajoso: questiona muitos valores, mete o dedo em feridas feias.

zzeast2Mas, além de tudo isso, para o mim The East foi surpreendente e fascinante por causa dessa garota Brit Marling (na foto), que ao mesmo tempo interpreta a protagonista da história, assina argumento e roteiro do filme, ao lado do diretor Zal Batmanglij, e é uma das produtoras! Ah, sim: e é muito, muito bonita.

A menina nasceu em 1982! Minha filha já era fã de Spielberg e Hitchcock quando a menina nasceu! Estava portanto com ridículos, ínfimos 31 anos quando escreveu, co-produziu e estrelou essa história complexa, séria, pesada, que fala das agressões ao ambiente, do poder das grandes corporações – e das formas de combater os erros do sistema que acabam sendo elas mesmas criminosas.

Enquanto estudava Economia na Georgetown Universiy, na região da capital federal dos Estados Unidos, Brit Marling se tornou amiga de dois colegas, Zal Batmanglij e Mike Cahil. Após se formarem (e após ela ter recusado uma oferta de emprego no Goldman Sachs, o gigantesco banco de investimentos), os três se mudaram para Los Angeles – e todos conseguiram iniciar promissoras carreiras no cinema. Em 2011, um filme dirigido por Zal Batmanglij, A Seita Misteriosa/Sound of my Voice, e outro dirigido por Mike Cahil, A Outra Terra/Another Earth, ambos com Brit Marling no elenco, foram exibidos no Sundance Film Festival, a grande festa do cinema independente criada por Robert Redford.

O próprio Redford deu a ela um pequeno mas importante papel em seu filme de 2012, Sem Proteção/The Company You Keep. E em A Negociação/Arbitrage, também de 2012, Brit Marling interpretou o que ela poderia ter sido na vida real – uma bem sucedida executiva da área de finanças de Nova York.

Não é um sucesso meteórico, fulgurante, como o de Jennifer Lawrence. Mas também veio com tudo, essa moça. Tanto que, neste The East, enfrenta de igual para igual uma das jovens atrizes mais talentosas do cinema americano, Ellen Page.

A protagonista deixa o FBI e vai para uma agência privada de inteligência

Como é possível já ter feito tanta coisa na vida tendo apenas 31, 32 anos?

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Exatamente a mesma pergunta que merece ser feita a respeito de Brit Marling pode ser feita sobre Sarah Moss, a personagem que ela interpreta em The East. No início da narrativa, Sarah – que já havia trabalhado como agente do FBI – está participando da maratona de provas para tentar ser admitida em um novo emprego, em Washington, D.C. Não fala absolutamente nada sobre a grande empresa na qual está tentando obter uma vaga com o namorado com quem mora, Tim (Jason Ritter). Ele  até comenta que ela está sendo ainda mais calada sobre esse possível trabalho na iniciativa privada do que havia sido nos tempos da polícia federal.

Sarah conseguirá a vaga na grande empresa, a Hiller Brood, que sua presidente, Sharon (interpretada por Patricia Clarkson), define como “a maior agência de inteligência privada de todo o mundo”. Naquele momento em que se passa a ação – não se especifica a data, mas fica claro que é nos dias de hoje, nos dias em que o filme foi feito –, uma das grandes ameaças às corporações clientes da Hiller Brood é o ecoterrorismo, os grupos de ambientalistas fanáticos que atacam os principais executivos de empresas consideradas poluentes ou inimigas do ambiente e do bem estar da população.

A sequência de abertura de The East é – o espectador compreenderá logo – um filmete produzido por um desses grupos radicais, exatamente o que tem o nome de The East. O filmete, feito para ser exibido como propaganda do movimento na internet, mostra cenas de animais cobertos de petróleo no litoral, enquanto a voz suave de uma narradora conta que uma determinada companhia petrolífera, Lorex Oil, foi responsável pelo derramamento de 15 milhões de barris de óleo no Atlântico. Entremeadas às imagens do dano ecológico provocado pelo vazamento, vemos imagens de um grupo de encapuzados invadindo a mansão à beira do mar em que mora Barry Redond, o CEO da Lorex Oil, e derramando nos aposentos litros e litros de óleo cru.

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A porta-voz do grupo diz no filmete: “Se envenenarem nosso habitat, envenenaremos o seu. Somos The East, e isto é só o começo. Vamos contra-atacar três corporações nos próximos meses por seu terrorismo mundial.”

A primeira missão de Sarah no seu novo emprego será tentar localizar algum dos membros ou colaboradores dessa organização The East, e se infiltrar nela, para obter informações sobre seus planos e futuras ações.

Os jovens autores do roteiro viveram como hobos e freegans por um tempo

Ao comentar sobre o filme alemão Meninas Não Choram (2002), escrevi, com alguma felicidade, que atravessar a adolescência é como percorrer um campo cheio de minas terrestres. A possibilidade de se pisar numa mina é maior do que de sair ileso. Uma das minas terrestres mais comuns no caminho dos adolescentes são as drogas. Mas há também a atração da violência, da marginalidade, da vida bandida – tão exaltada, glorificada, em tantos e tantos filmes. E há o apelo dos fanatismos – o fanatismo religioso, o ideológico.

Têm sido comuns, infelizmente, desgraçadamente, os casos de jovens que são engolidos pelo fanatismo assassino no Oriente Médio, no Afeganistão, no Paquistão.

Este filme feito por jovens muito jovens focaliza garotos e garotas tragados pelo fanatismo ambientalista, que em geral se confunde com um ódio às corporações, em especial as da área de petróleo e a indústria farmacêutica, mas que na verdade vira um ódio global a todas as grandes empresas, como se fossem, sem exceções ou graduações, assassinas, poluidoras, sem qualquer respeito pelo ambiente e/ou pelos seres humanos.

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Consta – está no absolutamente confiável IMDb, e também na Wikipedia em inglês – que Zal Batmanglij e Brit Marling tiveram experiência real como hobos e freegans. Não sei o eventual leitor, mas euzinho aqui conheço o que são os hobos desde muito tempo, mas jamais na vida tinha ouvido falar em freegans.

Conheço os hobos porque eles são personagens fundamentais das canções folk; o grande Woody Guthrie foi ele mesmo um hobo, e cantou sobre hobos em várias canções. Há décadas ouço, sempre com grande prazer, as gravações de “Hobo’s lullaby” com Joan Baez, Pete Seeger, Emmylou Harris.

Segundo a definição crua, fria, do Dictionary of English Language and Culture, o hobo é “uma pessoa que não tem emprego regular ou casa” – em suma, um vagabundo. Nas canções folk, no imaginário deixado por elas e por filmes sobre a Grande Depressão, como por exemplo Esta Terra é Minha/Bound for Glory (1976), que retrata exatamente parte da vida de Woody Guthrie, antes de ele se tornar conhecido em todo o país, ou Poucas e Boas/Sweet and Lowdown (1999), ou Contrastes Humanos/Sullivan’s Travels, o hobo é o sujeito que perdeu o emprego, a casa, a família, tudo, e perambula pelo país à procura de alguma oportunidade, andando como passageiro clandestino nos trens de carga, nos vagões para transporte de animais.

As coisas eram mais simples. Hoje há uns 245 tipos de movimentos contra o Sistema

Pois então em 2009, bem mais de 60 anos após o fim da Grande Depressão, 40 anos após Woodstock, os garotões Zal Batmanglij e Brit Marling, da classe média, estudados, letrados, diplomados na Georgetown University, saíram pelo país vivendo como hobos e freegans.

Freegans? Que porra é essa? WTF?

Pois é.

Há quem tenha problemas com a Wikipedia. Eu não tenho. Vejo na Wikipedia que “freeganismo é a prática de encontrar e comer comida que foi descartada. Freegans e freeganismo são em geral vistos como uma parte de uma ideologia ‘anti-consumista’ mais ampla, e freegans em geral usam um arco de estratégias de vida alternativas baseadas em participação limitada na economia convencional e no consumo mínimo de recursos. Os freegans abraçam comunidade, generosidade, preocupação social, liberdade, cooperação, em oposição a uma sociedade baseada em materialismo, apatia moral, competição, conformidade, cobiça. A palavra freegan é derivada de ‘free’ e ‘vegan’. O freeganismo começou em meados dos anos 1990, dos movimentos antiglobalização e ambientalismo. O movimento também tem elementos dos Diggers, um grupo de teatro de rua anarquista da região da Haight-Ashbury de San Francisco dos anos 1960, que distribuía comida descartada.”

Diacho.

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As coisas costumavam ser mais simples. Nos anos 50, quem era contra os valores do Establishment, quem não queria aquilo, quem rejeitava aquilo, quem defendia uma contracultura, era chamado de beatnik. Nos anos 60, passou a ser hippie. Fomos todos hippies, de uma maneira ou de outra. Milos Forman viu a peça Hair na sua então Checoslováquia em primavera, e lá mesmo começou a sonhar em filmar a peça que foi um dos símbolos do hippismo. Jacques Demy esteve em Los Angeles, viu o hippismo de perto, e seu Pele de Asno (1970) é um filme que exala hippismo, que cheira hippismo. O sueco Bo Widerberg filmou uma história de amor real acontecida por volta de 1870 como se fosse uma paixão hippie, no lindo Elvira Madigan.

Fomos todos hippies, de uma maneira ou de outra. Gostávamos de uma coisa genérica chamada rock.

Como diria Bob Dylan, things have changed. Muita água passou embaixo da ponte, e agora temos uns 18 nomes diferentes para qualificar o tipo de música que toca no rádio, na TV, nos filmes.

E uns 245 tipos de movimentos que querem lutar contra o Sistema, seja por dentro, como Leonard Cohen canta em “First we take Manhattan”, seja do lado de fora, como os freegans e os ecoterroristas.

A protagonista passa a duvidar das certezas que havia acumulado na vida

Como são muito jovens, jovens demais, Zal Batmanglij e Brit Marling cometem errinhos, na minha opinião. Há sequências mostrando  detalhadamente rituais do grupo radical The East que são bastante nojentas, e mesmo incompreensíveis, inaceitáveis, como aquela da refeição com  todos usando camisa de força. É possível até que, em suas experiências como hobos e freegans, eles tenham testemunhado coisas semelhantes, mas de fato há sequências passadas no lugar onde vivem os membros do grupo que parecem implausíveis e até um tanto gratuitas. Como se estivessem propositadamente querendo provocar náusea nos espectadores.

Mas os errinhos são pequenos, e pouco importantes. Esses dois garotos fizeram um belo filme.

Tiveram a maravilhosa capacidade de construir uma história em que a protagonista passa a duvidar das certezas que havia acumulado até aquele momento.

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Jane Owens, a personagem de Brit Marling, é em tudo o oposto daquelas pessoas do grupo The East. Estudou, ralou, lutou por um lugar ao sol; conseguiu ser admitida pelo FBI, mas decidiu passar para a iniciativa privada, muito provavelmente porque seu salário na agência de inteligência seria muitíssimo maior do que o pago pelo governo. Jane é pessoa do Sistema, do Establishment – exatamente o oposto de Izzy (o papel da sempre fantástica Ellen Page, à esquerda na foto acima), Doc (Toby Kebbell) e todos os outros membros do grupo.

Mas Jane se sentirá atraída por Benji (Alexander Skarsgård, na foto abaixo), o líder do grupo ecoterrorista, uma figura carismática, firme, poderosa.

zzeast6Não por isso, não por mistura de estações, mas por ver de perto exemplos de ações criminosas das grandes corporações, ela passará a perceber, talvez pela primeira vez na vida, que há motivação justa para que se lute contra esses crimes.

Não que ela vá aceitar a forma de luta dos grupos radicais – já que elas incluem também atentados, crimes, ações ilegais. Mas Jane passará a combater as corporações que cometem crimes ambientais e outros – um combate dentro da legalidade, o que, afinal de contas, é possível.

É uma história que tem uma moral – e uma bela moral.

Zal Batmanglij, Brit Marling, É bom guardar esses nomes

Um pouquinho sobre Zal Batmanglij, o diretor e co-autor da história e do roteiro. É pouco mais velho que a atriz Brit Marling; nasceu em 1980 ou 1981 – a Wikipedia traz as duas datas – na França, filho de iranianos, que se mudaram para os Estados Unidos quando ele era bem criança. Depois de estudar antropologia e língua inglesa na Georgetown University, frequentou aulas no American Film Institute, já em Los Angeles. Escreveu e dirigiu um curta em 2007, The Recordist; A Seita Misteriosa/Sound of My Voice, de 2001, foi seu primeiro longa; este O Sistema/The East foi o segundo. No final de 2014, estava dirigindo episódios de uma série de TV, Wayward Pínes, na qual trabalham diversos atores de prestígio – Melissa Leo, Terrence Howard, Toby Jones, Matt Dillon, Carla Gugino, Juliette Lewis.

zzeastjuliaDetalhinho: a maravilhosa Julia Ormond (na foto) faz um pequeno papel no filme, como a porta-voz de uma grande indústria farmacêutica que é atacada pelos ecoterroristas. Aparece na tela não mais que dois minutos. Fantástico: em meados dos anos 90, parecia que essa mulher lindérria e talentosíssima seria uma das principais estrelas do cinema, e hoje tem pequenos papéis sem importância.

Jason Buchanan escreveu uma bela crítica sobre o filme no AllMovie. Transcrevo o início e o fim de seu texto:

“Muitas vezes parece que os realizadores se envolvem tanto na trama que se esquecem de que estão trabalhando no meio perfeito para a exploração de idéias. Não é o caso de Zal Batmanglij e Brit Marling, cuja primeira colaboração, The Sound of My Voice, examinava profundamente os conceitos de percepção e realidade ao contar a história de um jovem casal que se infiltra em uma seita enigmática. Um raro filme independente que usou seu orçamento modesto para obter um grande efeito, focando as atuações e a atmosfera, The Sound of My Voice foi de alguma maneira eclipsado por outro drama sobre seita – o também impressionante Martha Marcy May Marlene. Agora, Batmanglij e Marling estão de volta com The East, um filme que tem bastante em comum com o anterior na temática, mas é superior ao outro tanto em termos de alcance quanto em estilo e qualidade.”

Claro: me lembrei bastante de Martha Marcy May Marlene enquanto via o filme, e também depois, ao pensar sobre ele e sobre o que escreveria aqui. Acabei não citando esse filme – que também traz uma jovem atriz de grande talento e beleza, Elizabeth Olsen –, que, como este aqui, como o citado Garotas Não Choram, fala dos perigos da adolescência, e como é fácil pisar numa das muitas minas terrestres que são colocadas no caminho dos jovens.

Jason Buchanan termina assim seu longo texto:

The East é um filme provocativo que pode se mostrar como apaixonadamente político, mas fixar-se no aspecto político do filme é deixar de lado o tema principal – que os seres humanos são criaturas complicadas, cujas crenças podem evoluir com a informação que obtêm (ou que tentam impedir que obtenham), e que esses pontos de vista que podem mudar têm um efeito transformador no modo como vivemos nosso dia-a-dia. Se isso soa um pouco cabeção demais para uma noite no cinema, deve-se dizer que The East é também um thriller crepitante que manterá você sem saber o que virá a seguir até o último segundo.”

Está certo ele.

Zal Batmanglij, Brit Marling. É preciso ficar atento ao que esses garotos vão fazer.

Anotação em dezembro de 2014

O Sistema/The East

De Zal Batmanglij, EUA-Inglaterra, 2013

Com Brit Marling (Jane Owen/Sarah Moss)

e Alexander Skarsgård (Benji), Ellen Page (Izzy), Toby Kebbell (Doc), Shiloh Fernandez (Luca), Aldis Hodge (Thumbs), Danielle Macdonald (Tess), Hillary Baack (Eve),  Patricia Clarkson (Sharon), Jason Ritter (Tim),

Julia Ormond (Paige Williams), Billy Magnussen (Porty McCabe), Wilbur Fitzgerald (Robert McCabe)

Argumento e roteiro Zal Batmanglij e Brit Marling

Fotografia Roman Vasyanov

Música Halli Cauthery e Harry Gregson-Williams

Montagem Bill Pankow e Andrew Weisblum

Produção Scott Free Productions.

Cor, 116 min.

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